sábado, 6 de novembro de 2010

Adaptação de "OS LUSÍADAS" ao Português Atual - Canto V

Notas à Edição


1. Correções ortográficas foram feitas apenas nas Estrofes Adaptadas por motivos óbvios. Essa adaptação não é uma tradução, até porque o idioma é único. Destarte, o leitor notará que as estrofes adaptadas não brilham pela perfeição da métrica ou do sistema rimático. E se tal não se dá o motivo é simples: é impossível copiar a genialidade do bardo, sendo, pois, a proposta dessa obra a de ser mero instrumento para auxiliar a compreensão do Épico de Camões.

2. No texto original, provavelmente escrito em 1556 e publicado pela primeira vez em 1572 (pouco depois do descobrimento do Brasil), Camões emite conceitos e Juízos (ou Julgamentos) que eram apropriados à sua época, mas que atualmente são considerados ofensivos. Por fidelidade ao texto, o autor da Adaptação conta com a compreensão dos (as) leitores (as) por ter transposto alguns desses Conceitos, os quais não são, obviamente, endossados pelo mesmo.

3. Os deuses gregos são chamados pelos seus nomes em latim. Embora incorreto, o autor da adaptação optou por tal modo em vista de estarem mais popularizados dessa maneira.

4. Sugere-se que a Estrofe Adaptada seja lida em primeiro lugar, para que ao se ler a Estrofe Original toda a genialidade de Camões possa ser desfrutada integralmente, quer no tocante ao esquema rimático, quer à perfeição de sua métrica e a todos os outros elementos que o bardo expôs com maestria singular.

5. Por último, o autor dessa Adaptação coloca-se ao inteiro dispor para fazer eventuais e fundamentadas correções, acréscimos ou subtrações, pois o Monumento erguido por Camões merece cuidados que nunca serão excessivos.


Dedicado aos Poetas Portugueses

Inês Dupas e Giraldoff

Canto V


ESTAS sentenças tais o velho honrado

Vociferando estava, quando abrimos

As asas ao sereno e sossegado

Vento, e do porto amado nos partimos.

E, como é já no mar costume usado,

A vela desfraldando, o céu ferimos,

Dizendo:- «Boa viagem!»; logo o vento

Nos troncos fez o usado movimento.



1o Essas palavras o velho honrado

Vociferava com ardor quando abrimos

As velas ao sereno e sossegado

Vento, e do amado porto partimos.

E como é um hábito arraigado,

Com os nossos gritos, o Céu ferimos

Dizendo: - Boa viagem! E logo o vento

Fez nos navios o esperado movimento.



«Entrava neste tempo o eterno lume

No animal Nemeio truculento;

E o Mundo, que co tempo se consume,

Na sexta idade andava, enfermo e lento.

Nela vê, como tinha por costume,

Cursos do Sol catorze vezes cento,

Com mais noventa e sete, em que corria,

Quando no mar a armada se estendia.



2o Nesses dias o Sol, o eterno lume,

Ia ao signo zodiacal do Nemeio (1) truculento;

E o Mundo, que com o correr do tempo se consome,

Já em avançada idade seguia enfermo e lento.

Na idade já se vê, como é de costume,

Que quatorze voltas vezes cento (2)

E mais noventa e sete, era o ano que transcorria,

Quando a nossa frota do porto se despedia.



1- Nemeio: alusão ao leão que Hércules matou na Neméia. O signo de Leão.

2- (14x100)+97 = 1.497. O ano em que a expedição de Vasco partiu.

«Já a vista, pouco e pouco, se desterra

Daqueles pátrios montes, que ficavam;

Ficava o caro Tejo e a fresca serra

De Sintra, e nela os olhos se alongavam;

Ficava-nos também na amada terra

O coração, que as mágoas lá deixavam;

E, já despois que toda se escondeu,

Não vimos mais, enfim, que mar e céu.



3o Logo de nossas vistas se afastava a terra,

Aqueles pátrios montes, que longe já ficavam;

Ficava o amado rio Tejo e a fresca serra

De Sintra (1), na qual os nossos olhos se alongavam.

Também ficavam na terra amada

Os nossos corações e as mágoas que lá deixavam.

E depois que toda terra se escondeu,

Não vimos mais nada, apenas o Mar e o Céu.



1- Sintra: cidade serrana próxima a Lisboa. É famosa no Brasil graças a Jorge Amado que a cita em várias de suas obras.



«Assi fomos abrindo aqueles mares,

Que geração algüa não abriu,

As novas Ilhas vendo e os novos ares

Que o generoso Henrique descobriu;

De Mauritânia os montes e lugares,

Terra que Anteu num tempo possuiu,

Deixando à mão esquerda, que à direita

Não há certeza doutra, mas suspeita.



4o Assim fomos desbravando aqueles mares,

Que nenhuma outra nação abriu,

Vendo as novas ilhas e sentindo os novos ares

Que o pródigo Henrique (1) descobriu;

Na Mauritânia (2) vimos os montes e os lugares,

Da terra que na Antiguidade Anteu (3) possuiu;

Seguindo sempre pela esquerda (4), pois à direita

Não há a certeza de haver outra terra, só a suspeita.



1- Henrique: o Infante Dom Henrique, filho de Dom João I e grande impulsionador das navegações.

2- Mauritânia: África do norte, onde hoje se situam Marrocos, Argélia e Tunísia.

3- Anteu: um dos gigantes, filho de Netuno e da Terra. Era invencível enquanto os seus pés tocassem a terra. Para vencê-lo Hércules teve que erguê-lo para sufocar-lhe.

4- O “lado direito” em referência às Estrelas usadas como referência nas navegações; onde estavam as terras e caminhos ainda desconhecidos, isto é, as Américas, pois não havia certeza de sua existência, apenas uma suposição.



«Passámos a grande Ilha da Madeira,

Que do muito arvoredo assi se chama;

Das que nós povoámos a primeira,

Mais célebre por nome que por fama.

Mas, nem por ser do mundo a derradeira,

Se lhe aventajam quantas Vénus ama;

Antes, sendo esta sua, se esquecera

De Cipro, Gnido, Pafos e Citera.



5o Ultrapassamos a grande Ilha da Madeira,

Que por ter muitas árvores assim se chama;

Dentre as terras que povoamos, foi a primeira,

Mais célebre por nome de que pela pouca fama,

Pois nem sendo no Mundo a derradeira (1),

É exaltada como aquelas que Vênus (2) ama;

Mas se ela fosse da deusa, o Mundo já se esquecera

De Cipro (3), Gnido (4), Pafos (5) e Citera (6).



1- Na época de Camões era considerada a última ilha do Mundo.

2- Vênus: deusa da beleza e do amor.

3- Cipro: atual Chipre, ilha do Mediterrâneo Oriental cuja beleza foi cantada pelos gregos.

4- Gnido: Cidade na Grécia onde existia um templo de Vênus.

5- Pafos: cidade na ilha de Chipre.

6- Citera: atual ilha Cérigo. Na Antiguidade era dedicada a Vênus.



«Deixámos de Massília a estéril costa,

Onde seu gado os Azenegues pastam,

Gente que as frescas águas nunca gosta,

Nem as ervas do campo bem lhe abastam;

A terra a nenhum fruto, enfim, disposta,

Onde as aves no ventre o ferro gastam,

Padecendo de tudo extrema inópia,

Que aparta a Barbaria de Etiópia.



6o Ultrapassamos Massilia (1), de estéril costa,

Onde o seu gado, os Azenegues (2) pastam,

Gente para quem a água fresca nunca está exposta

E tampouco de ervas do campo eles se fartam;

Pois ali, a nenhuma plantação a terra dá resposta.

Lugar em que até de ferro as aves se sustentam,

Carente de tudo, em extrema penúria,

Entre a Barbaria (2) e a Etiópia (3), infinda lamúria.



1-Massilia: grande região da África oriental compreendendo a Numidia e a Mauritânia.

2-Azenegues: povo Africano que vivia ao sul do Saara, em uma região deserta e árida.

3- Barbária: região da África do norte.

4- Etiópia: nome antigo que se dava à parte da África que fica ao sul do

Egito.



«Passámos o limite aonde chega

O Sol, que pera o Norte os carros guia;

Onde jazem os povos a quem nega

O filho de Climene a cor do dia.

Aqui gentes estranhas lava e rega

Do negro Sanagá a corrente fria,

Onde o Cabo Arsinário o nome perde,

Chamando-se dos nossos Cabo Verde.



7o Ultrapassamos o limite aonde chega

O Sol, que rumo ao norte os carros guia;

Lugar onde vivem os povos a quem nega

O filho de Climene (1) a cor clara, igual a do dia.

Ali, um povo estranho, lava e rega

Do negro rio Sanagá (2) a água fria,

Onde o Cabo Arsinario (3) o nome perde,

Pois o batizamos de Cabo Verde.



1-O filho de Climene e de Apolo: Fáeton, que guiando desastradamente o carro de seu pai, o Sol, aproximou-se demais da Terra queimando a pele dos africanos.

2- Sanagá: rio africano que nasce no Fuja-Djalão e deságua no Atlântico. Atual rio Senegal.

3- Cabo Arsinario: Na África ocidental que Camões identifica como o Cabo Verde, sendo, no entanto, contestado por alguns estudiosos que julgam tratar-se do Cabo Branco.



«Passadas tendo já as Canárias ilhas,

Que tiveram por nome Fortunadas,

Entrámos, navegando, polas filhas

Do velho Hespério, Hespéridas chamadas;

Terras por onde novas maravilhas

Andaram vendo já nossas armadas.

Ali tomámos porto com bom vento,

Por tomarmos da terra mantimento.



8o Já tendo passado as Canárias Ilhas,

Que já foram chamadas de Fortunadas (1),

Entramos navegando pelas Ilhas

Do velho Hespério; as Hespéridas (2) afamadas;

Nas quais novas maravilhas

Já andaram vendo as nossas armadas.

Ali, chegamos ao porto com bons ventos,

Para na terra nos abastecermos de suprimentos.



1- Fortunadas: antigo nome da ilhas Canárias, em homenagem à deusa romana da Fortuna (boa sorte).

2- Hespéridas: as ilhas de Cabo Verde.



«Àquela ilha aportámos que tomou

O nome do guerreiro Santiago,

Santo que os Espanhóis tanto ajudou

fazerem nos Mouros bravo estrago.

Daqui, tanto que Bóreas nos ventou,

Tornámos a cortar o imenso lago

Do salgado Oceano, e assi deixámos

A terra onde o refresco doce achámos.



9o Aportamos naquela ilha que tomou

O nome do guerreiro Santiago (1),

Santo que aos espanhóis tanto ajudou

A fazerem nos mouros um grande estrago.

Dali, de tanto que o Bóreas (2) assoprou,

Retornamos para singrar o imenso lago

Do salgado Oceano, e assim deixamos

A terra onde doce repouso nós achamos.





1- Santiago: a ilha de Santiago que foi descoberta em 1o de Maio, dia de Santiago de Compostela, padroeiro da Espanha.

2- Bóreas: vento do norte.



«Por aqui rodeando a larga parte

De África, que ficava ao Oriente

(A província Jalofo, que reparte

Por diversas nações a negra gente;

A mui grande Mandinga, por cuja arte

Logramos o metal rico e luzente,

Que do curvo Gambeia as águas bebe,

As quais o largo Atlântico recebe),



10o Por ali fomos rodeando a vasta parte

Da África que fica no lado do oriente,

A província de Jalofo (1), que se reparte

Em várias nações da negra gente;

A enorme Mandinga (2), por cuja arte

Conseguimos o metal rico e luzente,

E que do curvo Gambéia (3) as águas bebe,

As quais o Atlântico também recebe;



1- Jalofo: região africana que ia da foz do rio Senegal até o Cabo Verde.

2-Mandinga: antigo reino da África ocidental ao sul de Gâmbia.

3-Gambéia – rio que atualmente situa-se no território da Gâmbia e que deságua no Oceano Atlântico.



«As Dórcadas passámos, povoadas

Das Irmãs que outro tempo ali viviam,

Que, de vista total sendo privadas,

Todas três dum só olho se serviam.

Tu só, tu, cujas tranças encrespadas

Neptuno lá nas águas acendiam,

Tornada já de todas a mais feia,

De bívoras encheste a ardente areia.



11o Passamos as Dórcadas, antes habitadas

Pelas Irmãs (2) que na Antiguidade ali viviam,

E que por serem das vistas privadas,

Todas três de um único olho se serviam.

Só tu, Netuno, com as tranças encrespadas,

Que até na sua superfície subiam,

Poderia tê-la tornado a mais feia,

Pois de serpentes encheste a quente areia.



1-As ilhas Dórcadas: embora pelo contexto pareçam estar no arquipélago de Bijagós, optamos por considerá-las como as Górgodas, ilhas fabulosas que foram habitadas pelas Górgonas. Baseamo-nos nas outras referências que Camões usa, como por exemplo, a quantidade das irmãs, o pavor que inspiravam e as serpentes.



2- Irmãs: alusão as Górgonas. Eram três, Esteno, Euríale e Medusa. Todas com as cabeças cercadas por serpentes e tão feias que espantavam não apenas aos homens, mas até aos deuses. Ou então uma alusão as Gréias que eram as irmãs mais velhas das Górgonas, também chamadas de Gréias ou Velhas, porque já nasceram de cabelos brancos. Também eram três: Enio, Pefredo e Dino. Diz a lenda que só tinham um olho e um dente para todas as três.



«Sempre, enfim, pera o Austro a aguda proa,

No grandíssimo gôlfão nos metemos,

Deixando a Serra aspérrima Lioa,

Co Cabo a quem das Palmas nome demos.

O grande rio, onde batendo soa

O mar nas praias notas, que ali temos,

Ficou, co a Ilha ilustre, que tomou

O nome dum que o lado a Deus tocou.



12o Sempre inclinando ao sul a aguda proa,

No imenso golfo (1) nos metemos,

Deixando para trás a árida Serra Leoa,

E o Cabo (3), cujo nome de “Palmas” nós demos.

O grande rio (4), que batendo ecoa

Nas notáveis praias que ali temos,

Para trás ficou, como a Ilha ilustre (5) que tomou

O nome do Apóstolo que o lado de Deus tocou.



1- Referência ao Golfo de Guiné.

2- Cabo das Palmas: próximo à Libéria e Costa do Marfim.

3- O grande rio: provavelmente o Níger, na Nigéria.

4- Ilha ilustre: a ilha de São Tomé. O apostolo Tomé, por ser incrédulo, só acreditou na ressurreição de Jesus quando tocou em seu corpo, no lado perfurado pela lança do soldado Longino.



«Ali o mui grande reino está de Congo,

Por nós já convertido à fé de Cristo,

Por onde o Zaire passa, Claro e longo,

Rio pelo antigos nunca visto.

Por este largo mar, enfim, me alongo

Do conhecido PóIo de Calisto,

Tendo o término ardente já passado

Onde o meio do Mundo é limitado.



13o Perto dali, está o grande reino do Congo (1),

Que já foi, por nós, convertido à fé de Cristo,

Por lá corre o rio Zaire (2), claro e longo,

E que pelos antigos nunca foi visto.

Finalmente, por este vasto mar me alongo

Onde brilha a constelação de Calisto (3),

Já tendo a linha ardente (4) ultrapassado

Onde o meio do Mundo é delimitado.



1- Congo: região da África ocidental descoberta em 1.484, por Diogo Cão.

2- Rio Zaire: rio africano, também conhecido por rio Congo.

3- Calisto: constelação da Ursa Maior

4- A linha do Equador.



«Já descoberto tínhamos diante,

Lá no novo Hemispério, nova estrela,

Não vista de outra gente, que, ignorante,

Alguns tempos esteve incerta dela.

Vimos a parte menos rutilante

E, por falta de estrelas, menos bela,

Do Pólo fixo, onde inda se não sabe

Que outra terra comece ou mar acabe.



14o Já tínhamos visto adiante,

No novo hemisfério, uma nova estrela,

Desconhecida pelo povo ignorante,

Só há pouco se teve certeza sobre ela.

Vimos a parte menos brilhante

E, por falta doutra estrela, menos bela,

Daquele ponto ainda não se sabe

Se há outra terra, ou se o mar ali acabe.



«Assi, passando aquelas regiões

Por onde duas vezes passa Apolo,

Dous Invernos fazendo e dous Verões,

Enquanto corre dum ao outro Pólo,

Por calmas, por tormentas e opressões,

Que sempre faz no mar o irado Eolo,

Vimos as Ursas, a pesar de Juno,

Banharem-se nas águas de Neptuno.



15o Assim, passando por aquelas regiões

Onde por duas vezes passa Apolo (1),

Ocasionando dois invernos e dois verões,

Enquanto corre de um para outro pólo,

Enfrentamos calmarias, tormentas e furacões,

Presentes no mar por culpa do irado Eolo (2),

E vimos as Ursas (3), que apesar de Juno (4),

Banham-se nas águas do deus Netuno (5).

1-Apolo: do deus do Sol. O sol. Por faltar o rigoroso inverno a que Camões via na Europa e noutras partes do Hemisfério do Norte, julgou que na zona do Equador ocorriam essas duas estações no mesmo ano.

2- Eolo: o deus dos ventos.

3-As constelações da Ursa Maior e Ursa Menor.

4- Júpiter amou uma ninfa chamada Calisto de quem teve um filho. Juno, enciumada, transformou em ursos a mãe e o filho, os quais Júpiter colocou no céu criando estas constelações.

5- Netuno: o deus do mar.



«Contar-te longamente as perigosas

Cousas do mar, que os homens não entendem,

Súbitas trovoadas temerosas,

Relâmpados que o ar em fogo acendem,

Negros chuveiros, noites tenebrosas,

Bramidos de trovões, que o mundo fendem,

Não menos é trabalho que grande erro,

Ainda que tivesse a voz de ferro.



16o Relatar-lhe detalhadamente as perigosas

Coisas do mar, que a humanidade não compreende,

Como as súbitas trovoadas pavorosas,

Relâmpagos, que o ar como fogo acende,

Escuras tempestades, noites tenebrosas,

Rugidos de trovões, que o Mundo fende,

Seria desnecessário e um grande erro,

Mesmo que eu tivesse uma voz de ferro.



«Os casos vi, que os rudos marinheiros,

Que têm por mestra a longa experiência,

Contam por certos sempre e verdadeiros,

Julgando as cousas só pola aparência,

E que os que têm juízos mais inteiros,

Que só por puro engenho e por ciência

Vêm do mundo os segredos escondidos,

Julgam por falsos ou mal entendidos.



17o Vi acontecimentos que os rudes marinheiros,

Apoiados em suas largas experiências,

Contam como se fossem materiais e verdadeiros,

Julgando os fatos apenas pela aparência.

Mas, quem tem conhecimentos mais inteiros,

E que só pela racionalidade e pela ciência,

Enxergam os mistérios do mundo, tão escondidos,

Sabe que são tolas crendices ou fatos incompreendidos.



«Vi, claramente visto, o lume vivo

Que a marítima gente tem por santo,

Em tempo de tormenta e vento esquivo,

De tempestade escura e triste pranto.

Não menos foi a todos excessivo

Milagre, e cousa, certo, de alto espanto,

Ver as nuvens, do mar com largo cano,

Sorver as altas águas do Oceano.



18o Vi claramente o lume (1) que parece estar vivo

E que os marujos julgam como se fosse Santo,

Quando aconteciam as tormentas e o vento esquivo,

As tempestades escuras e o triste pranto.

E também vi o que me pareceu um excessivo

Milagre e me causou um grande espanto:

As nuvens, como se fossem um largo cano,

Sorverem as águas do vasto oceano (2).



1-Lume: o fogo de Santelmo, produzido por certos organismos marítimos.

2-Provavelmente um Furacão.



«Eu o vi certamente (e não presumo

Que a vista me enganava): levantar-se

No ar um vaporzinho e sutil fumo

E, do vento trazido, rodear-se;

De aqui levado um cano ao Pólo sumo

Se via, tão delgado, que enxergar-se

Dos olhos fàcilmente não podia;

Da matéria das nuvens parecia.



19o Eu vi claramente (e presumo

Que a vista não me enganava): levantar-se

No ar um pequeno vapor e um sutil fumo (1).

Trazido pelo vento, com o qual estava a rodear-se

Erguia-se, como se fosse um tubo, ao céu sumo,

Mas era tão estreito, que enxergar

Quase que não se conseguia,

Pois com a matéria das nuvens se parecia.





«Ia-se pouco e pouco acrecentando

E mais que um largo masto se engrossava;

Aqui se estreita, aqui se alarga, quando

Os golpes grandes de água em si chupava;

Estava-se co as ondas ondeando;

Em cima dele ua nuvem se espessava,

Fazendo-se maior, mais carregada,

Co cargo grande d'água em si tomada.



20o Aos poucos ia aumentando

E mais que um largo mastro logo engrossava;

Ali se estreita, acolá se alarga, quando

Uma grande porção de água para si tomava;

Ao sabor das ondas ia ondulando,

Em cima dele uma nuvem se espessava,

Tornando-se maior, mais carregada,

Com a grande carga de água para si canalizada.



«Qual roxa sangues[s]uga se veria

Nos beiços da alimária (que, imprudente,

Bebendo a recolheu na fonte fria)

Fartar co sangue alheio a sede ardente;

Chupando, mais e mais se engrossa e cria,

Ali se enche e se alarga grandemente:

Tal a grande coluna, enchendo, aumenta

A si e a nuvem negra que sustenta.



21o Igual uma rubra sanguessuga se veria,

Nos beiços de uma cavalgadura (que, imprudente,

Recolheu-a enquanto bebia na fonte fria)

Saciando com o sangue alheio a sua sede ardente;

Sugando cada vez mais se engrossa e procria,

E aí se enche e se alarga grandemente;

Assim a grande coluna, enchendo, aumenta

A si mesma e à nuvem negra que alimenta.



«Mas, despois que de todo se fartou,

O pé que tem no mar a si recolhe

E pelo céu, chovendo, enfim voou,

Por que co a água a jacente água molhe;

Às ondas torna as ondas que tomou,

Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe.

Vejam agora os sábios na escritura

Que segredos são estes de Natura!



22o Depois que completamente se fartou,

O ponto que encostava ao mar em si se recolhe

E pelo céu, chovendo, finalmente voou,

Para que com a água recolhida a tudo molhe;

Para as ondas devolve as águas que tomou,

Mas o sabor do sal, ela tira e tolhe.

Que os sábios e as Escrituras, com destreza,

Expliquem que prodígios são esses da Natureza.



«Se os antigos Filósofos, que andaram

Tantas terras, por ver segredos delas,

As maravilhas que eu passei, passaram,

A tão diversos ventos dando as velas,

Que grandes escrituras que deixaram!

Que influïção de sinos e de estrelas!

Que estranhezas, que grandes qualidades!

E tudo, sem mentir, puras verdades.



23o Se os antigos sábios que andaram

Por tantas terras para verem os segredos delas,

Tivessem visto o que vi e que pouco mudaram

Nestes lugares aonde fui levado pelas velas,

Mais saberes deixariam além dos que deixaram!

Estudos sobre os sinais e sobre as estrelas,

E outras curiosidades, outras capacidades!

Tudo real e concreto, em puras realidades.



«Mas já o Planeta que no Céu primeiro

Habita, cinco vezes, apressada,

Agora meio rosto, agora inteiro,

Mostrara, enquanto o mar cortava a armada,

Quando da etérea gávea, um marinheiro,

Pronto co a vista: «Terra! Terra!» brada.

Salta no bordo alvoroçada a gente,

Cos olhos no horizonte do Oriente.



24o O Planeta (1) que no Céu Primeiro

Aparece já se mostrara por cinco vezes; apressada

Exibiu meio rosto e depois o rosto inteiro (2),

Enquanto o mar era singrado pela armada;

Então na gávea (3) suspensa, um marinheiro

Atento com a vista: - Terra, terra, brada.

Salta alvoroçada no convés toda gente

Mirando as primeiras terras do Oriente.



1- Na época de Camões a Lua era considerada um planeta. O primeiro, segundo o sistema ptolomaico.

2- Referência às fases da Lua.

3- Gávea: ponto de observação no alto dos mastros.



«A maneira de nuvens se começam

A descobrir os montes que enxergamos;

As âncoras pesadas se adereçam;

As velas, já chegados, amainamos.

E, pera que mais certas se conheçam

As partes tão remotas onde estamos,

Pelo novo instrumento do Astrolábio,

Invenção de sutil juízo e sábio,



25o Primeiro, como se fossem nuvens, começam

A se mostrar os montes que, depois, enxergamos;

As pesadas âncoras se arremessam;

E as velas, pois já tínhamos chegado, amainamos.

E para que melhor se conheçam

A distante região em que estamos,

Usamos o novo instrumento chamado de Astrolábio (1),

Esplêndida invenção do raciocínio sábio.



1- Astrolábio: instrumento astronômico inventado por Hiparco, astrônomo e matemático grego. Mede a altura de um astro acima da linha do horizonte.



«Desembarcamos logo na espaçosa

Parte, por onde a gente se espalhou,

De ver cousas estranhas desejosa,

Da terra que outro povo não pisou.

Porém eu, cos pilotos, na arenosa

Praia, por vermos em que parte estou,

Me detenho em tomar do Sol a altura

E compassar a universal pintura.



26o Logo desembarcamos na espaçosa

Região, por onde a tropa se espalhou,

Para ver as estranhezas, como estava desejosa,

Daquela terra que outro povo não pisou.

Porém, eu e os pilotos na arenosa

Praia não vamos, pois nos restou,

A tarefa essencial de medir a altura

Do sol; e nos situarmos naquela estrutura.



«Achámos ter de todo já passado

Do Semícapro Pexe a grande meta,

Estando entre ele e o circulo gelado

Austral, parte do mundo mais secreta.

Eis, de meus companheiros rodeado,

Vejo um estranho vir, de pele preta,

Que tomaram per força, enquanto apanha

De mel os doces favos na montanha.



27o Concluímos já ter ultrapassado

Do Trópico de Peixes (1) a grande meta,

E que estávamos entre o Trópico e o Pólo gelado

No sul, que é a parte do Mundo mais secreta.

De repente, pelos lusos vejo estar aprisionado,

Um nativo estranho de escura pele preta,

O qual prenderam enquanto ele apanhava

Na montanha, o mel e a doce fava.



1- Na verdade, o “Semicapro Peixe” é o Trópico de Capricórnio, representado por uma figura que é metade cabra e metade peixe, daí o nome.



«Torvado vem na vista, como aquele

Que não se vira nunca em tal extremo;

Nem ele entende a nós, nem nós a ele,

Selvagem mais que o bruto Polifemo.

Começo-lhe a mostrar da rica pele

De Colcos o gentil metal supremo,

A prata fina, a quente especiaria:

A nada disto o bruto se movia.



28o Perturbado logo o vejo, tal como aquele

Que nunca se vira em perigo tão extremo;

Nem ele nos entende e nem nós a ele,

Pois é mais selvagem que o rude Polifemo (1).

Começo por lhe mostrar a rica pele

Adornada com o Colco (2) metal supremo,

A refinada prata, a ardente especiaria:

E a nada disto o selvagem se movia.

1- Polifemo: filho de Netuno, um dos ciclopes, morto por Ulisses.

2- Colco: oriundo da Cólquida, na Ásia, onde os Argonautas foram buscar o Velocino de Ouro. Por exemplo, o tecido recamado com ouro, ou dourado.



«Mando mostrar-lhe peças mais somenos:

Contas de cristalino transparente,

Alguns soantes cascavéis pequenos,

Um barrete vermelho, cor contente;

Vi logo, por sinais e por acenos,

Que com isto se alegra grandemente.

Mando-o soltar com tudo e assi caminha

Pera a povoação, que perto tinha.



29o Então lhe mostramos peças de menos

Valor: conta cristalina e transparente,

Alguns sonoros chocalhos pequenos,

Um chapéu vermelho, de cor brilhante

E logo vi, pelos seus sinais e acenos,

Que estas peças o alegravam grandemente.

Liberto-o com esses presentes e ele se encaminha

Para a povoação que perto dali tinha.



«Mas, logo ao outro dia, seus parceiros,

Todos nus e da cor da escura treva,

Decendo pelos ásperos outeiros,

As peças vêm buscar que estoutro leva.

Domésticos já tanto e companheiros se nos

mostram, que fazem que se atreva

Fernão Veloso a ir ver da terra o trato

E partir-se co eles pelo mato.



30o Logo noutro dia seus parceiros,

Todos nus e da cor da escura treva,

Descendo pelos rudes outeiros,

Buscam as peças que o primeiro leva.

Muitos dóceis e companheiros

Já se mostram, e fazem com que se atreva

Fernão Veloso (1) a ir ver a terra e seu trato

E com eles embrenhar-se pelo mato.



1-Fernão Veloso: um dos tripulantes da Armada.



«É Veloso no braço confiado

E, de arrogante, crê que vai seguro;

Mas, sendo um grande espaço já passado,

Em que algum bom sinal saber procuro,

Estando, a vista alçada, co cuidado

No aventureiro, eis pelo monte duro

Aparece e, segundo ao mar caminha,

Mais apressado do que fora, vinha.



31o Veloso segue na força do braço confiado

E, arrogante, crê que vai seguro;

Mas um grande tempo já havia passado

E dele nenhum sinal; e então o procuro

Com a vista apurada e com bastante cuidado,

E eis que vejo o aventureiro, pelo monte duro

Descer e que para o mar se encaminha,

Com maior pressa do que fora, ele vinha.



«O batel de Coelho foi depressa

Polo tomar; mas, antes que chegasse,

Um Etíope ousado se arremessa

A ele, por que não se lhe escapasse;

Outro e outro lhe saem; vê-se em pressa

Veloso, sem que alguém lhe ali ajudasse;

Acudo eu logo, e, enquanto o remo aperto,

Se mostra um bando negro, descoberto.



32o Com o bote, Coelho (1) foi depressa

Para o mar, mas antes que chegasse,

Um etíope (2) ousado se arremessa

Contra Veloso, para que não lhe escapasse.

Outros saem e ele se vê apurado e com pressa

Se ninguém o socorresse e lhe ajudasse.

Eu acudo logo e o ritmo dos remos aperto,

Pois vejo um bando de negros a descoberto.



1- Coelho: Nicolau Coelho, um dos companheiros de Vasco da Gama e comandante de uma das caravelas.

2- Etíope: nativo africano.



«Da espessa nuvem setas e pedradas

Chovem sobre nós outros, sem medida;

E não foram ao vento em vão deitadas,

Que esta perna trouxe eu dali ferida.

Mas nós, como pessoas magoadas,

A reposta lhe demos tão tecida

Que em mais que nos barretes se suspeita

Que a cor vermelha levam desta feita.



33o Espessa nuvem de flechas e de pedradas

Choveu sobre nós, sem medida;

E não foram em vão atiradas,

Pois essa perna, dali eu trago ferida.

Mas nós, como pessoas afrontadas,

Demos-lhes uma resposta tão dolorida,

Que o vermelho de suas cabeças se suspeita,

Não eram chapéus, mas das feridas feitas.



«E, sendo já Veloso em salvamento,

Logo nos recolhemos pera a armada,

Vendo a malícia feia e rudo intento

Da gente bestial, bruta e malvada,

De quem nenhum milhor conhecimento

Pudemos ter da Índia desejada

Que estarmos inda muito longe dela.

E assi tornei a dar ao vento a vela.



34o Já estando Veloso em salvamento,

Logo nos recolhemos na Armada,

Revendo a malícia e o malévolo intento

Daquela gente bestial, bruta e malvada,

De quem nenhum bom conhecimento

Obtivemos sobre a Índia tão desejada,

Exceto o de estarmos muito longe dela.

Assim, tornamos a dar ao vento a vela.



«Disse então a Veloso um companheiro

(Começando-se todos a sorrir):

- «Oulá, Veloso amigo! Aquele outeiro

É milhor de decer que de subir!»

- «Si, é (responde o ousado aventureiro);

Mas, quando eu pera cá vi tantos vir

Daqueles cães, depressa um pouco vim,

Por me lembrar que estáveis cá sem mim.»



35o Então disse a Veloso um companheiro

(O que nos levou a sorrir):

- Ora, ora, Veloso amigo, aquele outeiro

É melhor para descer do que para subir.

- Sim, (responde o ousado aventureiro);

Mas quando olhei para cá, vocês estavam a vir

Daqueles cães, com um pouco de pressa eu vim,

Mas só por me lembrar que vocês estavam sem mim.



«Contou então que, tanto que passaram

Aquele monte os negros de quem falo,

Avante mais passar o não deixaram,

Querendo, se não torna, ali matá-lo;

E tornando-se, logo se emboscaram,

Por que, saindo nós pera tomá-lo,

Nos pudessem mandar ao reino escuro,

Por nos roubarem mais a seu seguro.



36o Depois, contou que logo que passaram

Aquele monte, os negros de quem eu falo,

Que ele fosse mais à frente não deixaram,

Querendo, se ele não fugisse ali matá-lo;

E logo que ele retornou, eles se emboscaram,

Para que ao sairmos para procurá-lo,

Eles nos mandassem para o Reino Escuro,

Para nos roubar de modo mais seguro.



«Porém já cinco Sóis eram passados

Que dali nos partíramos, cortando

Os mares nunca d'outrem navegados,

Pròsperamente os ventos assoprando,

Quando üa noute, estando descuidados

Na cortadora proa vigiando,

üa nuvem que os ares escurece,

Sobre nossas cabeças aparece.

37o Cinco vezes o sol já tinha passado



Desde que dali nós partimos, cortando

O mar que nunca fora por outro navegado.

Favoravelmente os ventos iam soprando,

Quando numa certa noite, despreocupados,

Na cortante e aguda proa vigiando,

Vimos uma nuvem que o céu escurece,

E que sobre as nossas cabeças aparece.



«Tão temerosa vinha e carregada,

Que pôs nos corações um grande medo;

Bramindo, o negro mar de longe brada,

Como se desse em vão nalgum rochedo.

- «Ó Potestade (disse) sublimada:

Que ameaço divino ou que segredo

Este clima e este mar nos apresenta,

Que mor cousa parece que tormenta?»



38o Tão pavorosa vinha e tão carregada,

Que pôs nos corações um grande medo;

Rugindo, o negro mar de longe brada,

Como se em vão batesse n’algum rochedo.

- Ó divindade, eu disse, sublimada:

Que ameaça divina ou que segredo

Esta adversidade representa,

Que será isto, maior que uma tormenta?



«Não acabava, quando üa figura

Se nos mostra no ar, robusta e válida,

De disforme e grandíssima estatura;

O rosto carregado, a barba esquálida,

Os olhos encovados, e a postura

Medonha e má e a cor terrena e pálida;

Cheios de terra e crespos os cabelos,

A boca negra, os dentes amarelos.



39o Nem bem eu acabava, quando uma figura

Mostra-se no ar: robusta, sólida e desarrumada,

Com uma deformada e imensa estatura;

Tinha o rosto carregado e a barba desalinhada,

Os olhos eram opacos e a sua postura

Era assustadora, malévola, marrom e pálida;

Cheio de terra e crespos eram os cabelos,

A boca era escura e os dentes amarelos.





«Tão grande era de membros que bem posso

Certificar-te que este era o segundo

De Rodes estranhíssimo Colosso,

Que um dos sete milagres foi do mundo.

Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,

Que pareceu sair do mar profundo.

Arrepiam-se as carnes e o cabelo,

A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!



40o Tão grandes seus membros que bem posso

Certificar-te de que era um segundo,

Ou uma cópia do magnífico Colosso

De Rodes (1), uma das “Sete Maravilhas” do Mundo.

Fala-nos com um tom de voz horrendo e grosso,

Que pareceu vir do mar profundo.

Arrepiam-se as peles e os cabelos

De todos, apenas por ouvir-lhe e vê-lo!



1- Colosso de Rodes: estátua de Apolo, feita com bronze e com mais de trinta metros, situada na ilha de Rodes, no Mediterrâneo. Considerada uma das “Sete Maravilhas” da Antiguidade.



«E disse: - «Ó gente ousada, mais que quantas

No mundo cometeram grandes cousas,

Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,

E por trabalhos vãos nunca repousas,

Pois os vedados términos quebrantas

E navegar meus longos mares ousas,

Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,

Nunca arados d'estranho ou próprio lenho;



41o Ele nos disse: - Ó gente ousada, mais que tantas

Outras, que no Mundo fizeram grandes feitos,

Tu, que das duras guerras santas

E das árduas dificuldades nunca repousa nos doces leitos;

Agora, os proibidos limites do mar quebrantas;

E navegas meu mar, com tanta ousadia e de tal jeito,

Que devassam o mar que guardo e tenho

E que nunca foram singrados por outro lenho (1):



1- Lenho: navio.



«Pois vens ver os segredos escondidos

Da natureza e do húmido elemento,

A nenhum grande humano concedidos

De nobre ou de imortal merecimento,

Ouve os danos de mi que apercebidos

Estão a teu sobejo atrevimento,

Por todo o largo mar e pola terra

Que inda hás-de sojugar com dura guerra.



42o Agora vens conhecer os mistérios escondidos

Na natureza e no liquido elemento,

E que a nenhum grande humano foram permitidos

Ainda que tivessem nobre e imortal merecimento.

Ouçam de mim os danos que preparados

Aguardam-te pelo insolente atrevimento,

E por todo o vasto mar e pela vasta terra

Que conquistará com uma dura guerra.



«Sabe que quantas naus esta viagem

Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,

Inimiga terão esta paragem,

Com ventos e tormentas desmedidas;

E da primeira armada que passagem

Fizer por estas ondas insofridas,

Eu farei de improviso tal castigo

Que seja mor o dano que o perigo!



43o Saiba que a todas as naus que esta viagem

Que tu fazes, fizerem por serem atrevidas,

Inimiga lhes será esta paragem,

Com ventos e tormentas desmedidas!

E com a primeira frota que esta passagem

Fizer por estas ondas enfurecidas,

Eu farei de improviso tal castigo

Que o dano superará o presumido perigo!



«Aqui espero tomar, se não me engano,

De quem me descobriu suma vingança;

E não se acabará só nisto o dano

De vossa pertinace confiança:

Antes, em vossas naus vereis, cada ano,

Se é verdade o que meu juízo alcança,

Naufrágios, perdições de toda sorte,

Que o menor mal de todos seja a morte!





44o Aqui espero revidar, se não me engano,

A quem me descobriu, com terrível vingança.

E não ficará apenas nisto o pretendido dano

Contra a tua insolente autoconfiança:

Pois vereis em vossas naus, a cada ano,

Se for verdade o que a minha percepção alcança,

Naufrágios e prejuízos de toda sorte,

Que o menor dos males será a morte!



«E do primeiro Ilustre, que a ventura

Com fama alta fizer tocar os Céus,

Serei eterna e nova sepultura,

Por juízos incógnitos de Deus.

Aqui porá da Turca armada dura

Os soberbos e prósperos troféus;

Comigo de seus danos o ameaça

A destruída Quíloa com Mombaça.



45o Assim será com o ilustre (1), cuja bravura

Tornará tão famoso que tocará os Céus,

Para ele serei a triste e eterna sepultura.

Por decisão misteriosa de Deus

Aqui ficarão após vencer a Turca (2) Armada dura,

Os imponentes e ricos troféus;

Comigo e com os seus próprios danos lhe ameaça

A destruída Quíloa (3) e Mombaça (4).



1- Alusão a Dom Francisco de Almeida, Vice-Rei na Índia, que morreu no Cabo da Boa Esperança, em luta contra os Cafres, quando voltava a Portugal.

2- Alusão aos muçulmanos de Constantinopla.

3- Quíloa: ilha da costa oriental da África. Vide Canto I.

4- Mombaça: Cidade na costa oriental da África.



«Outro também virá, de honrada fama,

Liberal, cavaleiro, enamorado,

E consigo trará a fermosa dama

Que Amor por grão mercê lhe terá dado.

Triste ventura e negro fado os chama

Neste terreno meu, que, duro e irado,

Os deixará dum cru naufrágio vivos,

Pera verem trabalhos excessivos.





46o Outro também virá, com honrada fama,

Liberal, cavaleiro e enamorado,

E consigo trará uma linda dama

Que o generoso Cupido pôs-lhe ao lado.

Triste sorte e negro destino lhe chama

Neste meu lugar, rude e irado,

Onde de terrível naufrágio escaparão vivos,

Mas só para viverem desgostos sucessivos.



«Verão morrer com fome os filhos caros,

Em tanto amor gerados e nacidos;

Verão os Cafres, ásperos e avaros,

Tirar à linda dama seus vestidos;

Os cristalinos membros e perclaros

À calma, ao frio, ao ar, verão despidos,

Despois de ter pisada, longamente,

Cos delicados pés a areia ardente.



47o Verão morrer de fome os filhos caros,

Que com amor foram gerados e criados;

Verão os Cafres (1), rudes e bárbaros,

Tirar da linda dama os seus vestidos;

Os cristalinos membros tão claros

A calmaria, o frio, o ar, verão despidos,

Depois de ser obrigada a pisar longamente,

Com os delicados pés na areia ardente.



1- Cafres: natural da Cafraria, antigo nome de parte da África habitada pelos não muçulmanos e que hoje designa duas regiões da África do Sul.



«E verão mais os olhos que escaparem

De tanto mal, de tanta desventura,

Os dous amantes míseros ficarem

Na férvida, implacábil espessura.

Ali, despois que as pedras abrandarem

Com lágrimas de dor, de mágoa pura,

Abraçados, as almas soltarão

Da fermosa e misérrima prisão.»



48o E verão mais os olhos que escaparam

De tanta maldade e de tanta desventura;

Os olhos dos pobres amantes que ficaram

Na tórrida e implacável tortura.

Ali, depois que até as pedras amoleceram,

Com lágrimas de dor e de mágoa pura,

Abraçados, as pobres almas se soltarão,

Da triste, escura e tenebrosa prisão.



«Mais ia por diante o monstro horrendo,

Dizendo nossos Fados, quando, alçado,

Lhe disse eu: - «Quem és tu? Que esse estupendo

Corpo, certo me tem maravilhado!»

A boca e os olhos negros retorcendo

E dando um espantoso e grande brado,

Me respondeu, com voz pesada e amara,

Como quem da pergunta lhe pesara:



49o Mais adiante ia o monstro horrendo

Falar de nossos destinos quando, exaltado,

Eu lhe disse: - Quem és tu? O quê está dizendo?

Imenso Ser cujo corpo me deixa atordoado!

A boca e os negros olhos retorcendo

E soltando um espantoso e imenso brado,

Responde-me, com a voz grave e queixosa,

Como se a pergunta lhe fosse desgostosa.



«Eu sou aquele oculto e grande Cabo

A quem chamais vós outros Tormentório,

Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,

Plinio e quantos passaram fui notório.

Aqui toda a Africana costa acabo

Neste meu nunca visto Promontório,

Que pera o Pólo Antártico se estende,

A quem vossa ousadia tanto ofende.



50o Eu sou aquele oculto e grande Cabo

Que vocês chamam de Tormentório (1),

E que nunca a Ptolomeu (2), Pompônio (3), Estrabo (4),

Plínio (5) e outros que aqui estudaram, fui notório.

Aqui, toda a Costa africana termina.

Neste meu desconhecido promontório,

Que para o Pólo Antártico (1) se estende

E a quem vossa ousadia tanto ofende!



1- Cabo Tormentório: Cabo das Tormentas, depois mudado por Dom João II para Cabo da Boa Esperança. Situado no extremo sul da África.

2- Ptolomeu: Cláudio Ptolomeu, astrônomo grego cujo sistema do Mundo durou até Copérnico.

3- Pompônio: Pompônio Mela, geógrafo romano, autor de “De Sittu Orbis” que inspirou a obra de Duarte Pacheco Esmeraldo autor de “Sitti Orbis”.

4- Estrabo: geógrafo grego que, aproximadamente viveu entre 58 e 21 aC.

5- Plínio: Caio Plínio Segundo, autor da “Naturalis Historia”, espécie de enciclopédia de ciências na antiguidade.

6- Pólo Antártico: o Pólo Sul.



«Fui dos filhos aspérrimos da Terra,

Qual Encélado, Egeu e o Centimano;

Chamei-me Adamastor, e fui na guerra

Contra o que vibra os raios de Vulcano;

Não que pusesse serra sobre serra,

Mas, conquistando as ondas do Oceano,

Fui capitão do mar, por onde andava

A armada de Neptuno, que eu buscava.



51o Fui um dos Gigantes (1), filhos da Terra,

Irmão de Encélado (2), Egeu (2) e Centimano (2);

Chamei-me Adamastor (3) e fui para a guerra

Contra aquele (4) que lança os raios de Vulcano (5);

Não cheguei a mover serra sobre serra,

Mas, conquistando as ondas do Oceano (6),

Fui capitão no mar, por onde andava

A Armada de Netuno (7), que eu procurava.



1- Gigantes: Titãs, os filhos da Terra que tentaram atingir o Olimpo, mas foram derrotados por Júpiter que os soterrou sob os montes que eles usaram para a escalada.

2- Encélado, Egeu e Centimano: Gigantes filhos da Terra.

3- Adamastor: um dos Gigantes, que foi transformado no Cabo da Boa Esperança. Aqui simboliza a luta dos portugueses contra a natureza.

4- Referência a Júpiter, o Pai dos deuses.

5- Vulcano: o deus do fogo e o fabricante das armas de Júpiter.

6- Oceano: o mais velho dos Titãs, filho de Urano e Gaia, personificava o mar.

7- Netuno: deus do Mar, filho de Saturno e Cibele e irmão de Júpiter e de Plutão.



«Amores da alta esposa de Peleu

Me fizeram tomar tamanha empresa;

Todas as Deusas desprezei do Céu,

Só por amar das águas a Princesa.

Um dia a vi, co as filhas de Nereu,

Sair nua na praia e logo presa

A vontade senti de tal maneira

Que inda não sinto cousa que mais queira.



52o Amores pela sublime esposa de Peleu (1)

Fizeram-me tomar tamanha empresa.

Eu desprezei todas as deusas do céu,

Por amor à que do Reino das Águas, é princesa

Desde que a vi, junto com as filhas de Nereu (2),

Sair nua na praia; imediatamente ficou presa

A minha alma e meu coração e de tal maneira

Que ainda não vejo outra que eu mais queira.



1-Peleu: rei da Tessália, pai de Aquiles e marido da deusa Tétis. Na realidade o Gigante apaixonara-se por uma das filhas de Peleu, cujo nome também era Tétis.

2- Filhas de Nereu: as Nereidas. Filhas de Nereu, divindade marinha e de Doris. Eram as ninfas do mar.



«Como fosse impossíbil alcançá-la,

Pola grandeza feia de meu gesto,

Determinei por armas de tomá-la

E a Dóris este caso manifesto.

De medo a Deusa então por mi lhe fala;

Mas ela, cum fermoso riso honesto,

Respondeu: - «Qual será o amor bastante

De Ninfa, que sustente o dum Gigante?



53o Como fosse impossível conquistá-la

Devido à grande feiúra do meu rosto,

Decidi, pelas armas, tomá-la.

E a Doris (1) este desejo eu manifesto;

Amedrontada, a deusa em meu nome lhe fala:

Mas ela, como um riso belo e honesto,

Respondeu-me: - Qual será o amor bastante

De uma ninfa, que sustente o de um Gigante?



1- Doris: filha do Oceano e de Tétis, casada com Nereu e mãe das Nereidas. Doris, mãe de Tétis, avisada pelo Gigante de sua intenção, acalma-o mentindo-lhe que lhe traria a filha.



«Contudo, por livrarmos o Oceano

De tanta guerra, eu buscarei maneira

Com que, com minha honra, escuse o dano.»

Tal resposta me torna a mensageira.

Eu, que cair não pude neste engano

(Que é grande dos amantes a cegueira),

Encheram-me, com grandes abondanças,

O peito de desejos e esperanças.



54o Contudo, para livrarmos o Oceano

De tal guerra, eu procurarei uma maneira

De com a minha honra evitar esse dano;

Tal resposta me trouxe a mensageira.

Eu não pude deixar de cair neste engano

(Pois é grande nos amantes a cegueira),

Encheu-se a alma e o meu coração,

De desejos, esperança e emoção.



«Já néscio, já da guerra desistindo,

üa noite, de Dóris prometida,

Me aparece de longe o gesto lindo

Da branca Tétis, única, despida.

Como doudo corri de longe, abrindo

Os braços pera aquela que era vida

Deste corpo, e começo os olhos belos

A lhe beijar, as faces e os cabelos.



55o Já inerte, e da guerra desistindo,

Uma noite, quem por Doris me foi prometida,

Aparece-me ao longe como um sonho lindo:

A clara Téthis (1), só e despida.

Como um doido eu corri, abrindo

Os braços para aquela que era a vida

Deste meu corpo, e começo pelos belos olhos

A beijar-lhe, seguindo para as faces e cabelos.



1- Téthis: uma das Nereidas, filha de Nereu e de Doris, e uma das mais belas ninfas. Não confundir com a outra, a deusa Téthis, filha do Céu e Terra.



«Oh que não sei de nojo como o conte!

Que, crendo ter nos braços quem amava,

Abraçado me achei cum duro monte

De áspero mato e de espessura brava.

Estando cum penedo fronte a fronte,

Qu'eu polo rosto angélico apertava,

Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo

E, junto dum penedo, outro penedo!



56o Oh! Apesar da dor, é preciso que eu lhe conte:

Crendo ter nos braços quem eu amava,

Vi, que na verdade, abraçava um duro monte

De áspero mato e espessura brava.

Estava com um penedo em minha fronte,

Imaginando que era o rosto angelical que apertava.

Não me humanizei não; mas mudo e quedo

Junto do penedo, tornei-me também um rochedo.



«Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,

Já que minha presença não te agrada,

Que te custava ter-me neste engano,

Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?

Daqui me parto, irado e quási insano

Da mágoa e da desonra ali passada,

A buscar outro mundo, onde não visse

Quem de meu pranto e de meu mal se risse.



57o Ó ninfa, a mais bela do Oceano,

Já que a minha presença não te agrada,

O que te custava ser minha neste engano,

Que não sei se foi monte, nuvem, sonho ou nada?

Dali eu parti, irado e quase insano

Pela mágoa e desonra ali passada,

E fui buscar um lugar no Mundo onde não visse

Quem do meu pranto e de minha dor risse.



«Eram já neste tempo meus Irmãos

Vencidos e em miséria extrema postos,

E, por mais segurar-se os Deuses vãos,

Alguns a vários montes sotopostos.

E, como contra o Céu não valem mãos,

Eu, que chorando andava meus desgostos,

Comecei a sentir do Fado imigo,

Por meus atrevimentos, o castigo:



58o Nesse tempo, já os meus irmãos (1)

Estavam vencidos e na miséria estavam postos,

E para melhor se assegurarem os deuses vãos,

Colocam sobre eles vários montes sobrepostos.

E como contra o Olimpo não bastam as mãos,

Eu, que andava chorando os meus desgostos,

Comecei a sentir do destino inimigo,

Pelos meus atrevimentos, o severo castigo.

1- Referência aos Gigantes que tentaram atingir o Olimpo, mas foram vencidos por Júpiter que os soterrou sob os montes que tinham usado na escalada.



Converte-se-me a carne em terra dura;

Em penedos os ossos se fizeram;

Estes membros que vês, e esta figura,

Por estas longas águas se estenderam.

Enfim, minha grandíssima estatura

Neste remoto Cabo converteram

Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,

Me anda Tétis cercando destas águas.»



59o A minha carne se transformou em terra dura;

Em rochedos os meus ossos se fizeram;

Estes membros que vês, esta figura,

Por estas vastas águas se estenderam.

Finalmente, a minha imensa estatura,

Neste Cabo os deuses converteram

E para aumentar as minhas mágoas,

Téthis vive rodeando estas águas.



«Assi contava; e, cum medonho choro,

Súbito d'ante os olhos se apartou;

Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro

Bramido muito longe o mar soou.

Eu, levantando as mãos ao santo coro

Dos Anjos, que tão longe nos guiou,

A Deus pedi que removesse os duros

Casos, que Adamastor contou futuros.



60o Enquanto contava com medonho choro,

Subitamente dos nossos olhos se afastou.

Desfez-se a nuvem negra e com um sonoro

Rugido, de muito longe o mar ecoou.

Eu, levantando as mãos ao Divino Coro,

Que a tão longe nos guiou,

Pedi a Deus que afastasse o duro

Vaticínio que ele previu para o nosso futuro.



«Já Flégon e Piróis vinham tirando,

Cos outros dous, o carro radiante,

Quando a terra alta se nos foi mostrando

Em que foi convertido o grão Gigante.

Ao longo desta costa, começando

Já de cortar as ondas do Levante,

Por ela abaixo um pouco navegámos,

Onde segunda vez terra tomámos.



61o Nisto, Flegon (1) e Pirois (1) já iam retirando,

Junto com os outros dois, o carro do Sol radiante,

Foi então que a terra alta foi-se mostrando

Em que fora transformado o grande Gigante.

Ao longo dessa costa, já começando

A cortar as águas do Oriente,

Um pouco mais abaixo navegamos,

Onde pela segunda vez em terra aportamos.



1- Flegon e Pirois: os cavalos que puxavam o carro do Sol. Os outros dois são Eôo e Eton.



«A gente que esta terra possuía,

Posto que todos Etiopes eram,

Mais humana no trato parecia

Que os outros que tão mal nos receberam.

Com bailos e com festas de alegria

Pela praia arenosa a nós vieram,

As mulheres consigo e o manso gado

Que apacentavam, gordo e bem criado.



62o O povo que esta terra possuía,

Rudes Etíopes também eram,

Mas muito mais generoso nos parecia

Se comparado aos que mal nos receberam.

Com bailados, festas e alegria,

Pela arenosa praia até nós vieram,

Traziam consigo as mulheres e o manso gado

Que ali perto pastava gordo e bem criado.



«As mulheres, queimadas, vêm em cima

Dos vagarosos bois, ali sentadas,

Animais que eles têm em mais estima

Que todo o outro gado das manadas.

Cantigas pastoris, ou prosa ou rima,

Na sua língua cantam, concertadas

Co doce som das rústicas avenas,

Imitando de Títiro as Camenas.



63o As mulheres bronzeadas vêm em cima

De lentos bois, confortavelmente sentadas;

São animais que eles têm com mais estima

Que a qualquer outro de suas manadas.

Cantigas bucólicas, em prosa ou rima,

Cantavam na sua língua, todas bem arranjadas

E acompanhadas pelo som das rudes avenas (1),

Imitando de Títiro (2) as Camenas (3).



1-Avenas: flautas feitas com talos de aveia.

2- Títiro: pastor citado por Virgilio.

3- Camenas: ninfas que depois foram associadas às musas inspiradoras da poesia do campo.



«Estes, como na vista prazenteiros

Fossem, humanamente nos trataram,

Trazendo-nos galinhas e carneiros

A troco doutras peças que levaram;

Mas como nunca, enfim, meus companheiros

Palavra sua algüa lhe alcançaram

Que desse algum sinal do que buscamos,

As velas dando, as âncoras levamos.



64o Eles, como se podia ver, eram hospitaleiros

E amistosamente nos trataram;

Trouxeram-nos galinhas e carneiros

Em troca das poucas peças que levaram.

Mas como sempre, os meus companheiros

Nenhuma palavra do que diziam, entenderam

E não se tivemos orientação sobre o que buscamos,

Assim, soltamos as velas e a âncora nós levantamos.



«Já aqui tínhamos dado um grão rodeio

À costa negra de Africa, e tornava

A proa a demandar o ardente meio

Do Céu, e o Pólo Antártico ficava.

Aquele ilhéu deixámos onde veio

Outra armada primeira, que buscava

O Tormentório Cabo e, descoberto,

Naquele ilhéu fez seu limite certo.



65o Já tínhamos dado um grande volteio,

Em toda Costa da África negra e tornava

A proa a navegar rumo ao ardente meio (1)

Desenhado no céu; para trás o Pólo Antártico ficava.

Aquela ilha nós deixamos, para onde veio

Antes outra Armada que buscava

O Cabo Tormentório, o qual sendo descoberto

Fez daquela ilha o extremo do Mundo mais certo.



1- Ardente Meio: a Linha do Equador.



«Daqui fomos cortando muitos dias,

Entre tormentas tristes e bonanças,

No largo mar fazendo novas vias,

Só conduzidos de árduas esperanças.

Co mar um tempo andámos em porfias,

Que, como tudo nele são mudanças,

Corrente nele achámos tão possante,

Que passar não deixava por diante:



66o Dali fomos navegando por muitos dias,

Entre tormentas e generosas bonanças.

No vasto mar fomos criando novas vias

Movidos apenas por crédulas esperanças.

Contra o mar andamos em longas porfias,

Pois nele há constantes mudanças,

Achamos até uma correnteza tão possante,

Que não nos deixava seguir adiante:





«Era maior a força em demasia,

Segundo pera trás nos obrigava,

Do mar, que contra nós ali corria,

Que por nós a do vento que assoprava.

Injuriado Noto da porfia

Em que co mar (parece) tanto estava,

Os assopros esforça iradamente,

Com que nos fez vencer a grão corrente.



67o Sua força era enorme e talvez em demasia,

Pois para trás violentamente nos empurrava

Num estranho mar que, ali, contra nós corria.

Só contávamos com a força do vento que soprava

E injuriado o Noto (1) com aquela porfia,

Parecia que contra o mar uma luta travava;

Em certa hora aumentou o sopro furiosamente,

E só então é que vencemos a grande corrente.



1- Noto: o vento do sul.



«Trazia o Sol o dia celebrado

Em que três Reis das partes do Oriente

Foram buscar um Rei, de pouco nado,

No qual Rei outros três há juntamente;

Neste dia outro porto foi tomado

Por nós, da mesma já contada gente,

Num largo rio, ao qual o nome demos

Do dia em que por ele nos metemos.



68o O sol trazia o dia consagrado

Aos três Santos Reis do Oriente (1)

Que homenagearam o Rei chegado,

O qual era mais três (2) simultaneamente.

Neste dia outro porto, por nós foi visitado,

Era habitado pela mesma raça de gente,

Nele entramos por largo rio, a que demos

O nome daquele dia (3), quando nele nos metemos.



1-Santos Reis do Oriente: os Reis Magos.

2-Alusão à Santa Trindade, contida em Jesus.

3- Menção ao dia dos Santos Reis.



«Desta gente refresco algum tomámos

E do rio fresca água; mas contudo

Nenhum sinal aqui da Índia achámos

No povo, com nós outros cási mudo.

Ora vê, Rei, quamanha terra andámos.

Sem sair nunca deste povo rudo,

Sem vermos nunca nova nem sinal

Da desejada parte Oriental.



69o Desta gente, algum conforto nós recebemos,

Assim como a água fresca do rio; mas, contudo,

Nenhuma orientação sobre a Índia nós tivemos

Pois aquele povo, para nós, era quase que mudo.

Veja ilustre Rei, quanta terra nós andamos,

Sem nunca sair da terra daquele povo bruto,

Sem termos tido uma noticia ou mero sinal

Da tão desejada região Oriental.



«Ora imagina agora quão coitados

Andaríamos todos, quão perdidos

De fomes, de tormentas quebrantados

Por climas e por mares não sabidos,

E do esperar comprido tão cansados

Quanto a desesperar já compelidos,

Por céus não naturais, de qualidade

Inimiga de nossa humanidade!



70o Agora imagine como estávamos amargurados,

Pobres navegantes sem rumo, tão perdidos,

Com fome e por tempestades quebrantados,

Errando por mares e climas desconhecidos!

E da longa espera estávamos tão cansados

Que quase ao desespero fomos impelidos.

Sob tantos céus de diferentes qualidades,

E contrários à nossa sensibilidade!



«Corrupto já e danado o mantimento,

Danoso e mau ao fraco corpo humano

E, além disso, nenhum contentamento,

Que sequer da esperança fosse engano.

Crês tu que, se este nosso ajuntamento

De soldados não fora Lusitano,

Que durara ele tanto obediente,

Porventura, a seu Rei e a seu regente?



71o Já estava deteriorado o nosso suprimento,

E até nocivo ao já enfraquecido corpo humano;

E, além disso, sem nenhum contentamento,

Uma esperança, ainda que fosse fruto de um engano.

Tu acreditas, que se esse nosso agrupamento

Não fosse constituído pelo soldado lusitano,

Seria, por tanto tempo, tão obediente

Ao seu rei e a mim, seu regente?





«Crês tu que já não foram levantados

Contra seu Capitão, se os resistira,

Fazendo-se piratas, obrigados

De desesperação, de fome, de ira?

Grandemente, por certo, estão provados,

Pois que nenhum trabalho grande os tira

Daquela Portuguesa alta excelência

De lealdade firme e obediência.



72o Tu acreditas que não teriam se rebelado

Contra o seu Capitão, se a eles resistira?

Tornando-se um bando pirata e desvairado,

Insuflados pelo desespero, pela fome e pela ira.

Certamente estão grandemente aprovados,

Pois nenhuma dificuldade lhes tira

A portuguesa alta excelência

Da firme lealdade e nobre obediência.



«Deixando o porto, enfim, do doce rio

E tornando a cortar a água salgada,

Fizemos desta costa algum desvio,

Deitando pera o pego toda a armada;

Porque, ventando Noto, manso e frio,

Não nos apanhasse a água da enseada

Que a costa faz ali, daquela banda

Donde a rica Sofala o ouro manda.



73o Finalmente, deixando o porto do doce rio

E tornando a singrar a água salgada,

Fizemos nessa Costa certo desvio,

Virando para o lado mais fundo a Armada,

Para que ventando o Noto (1), manso e frio,

Não nos aprisionasse nas águas da enseada

Que a costa faz naquela banda (2)

Onde a rica Sofala (3) o ouro manda.



1- Noto: o vento sul.

2- banda: lado, direção, lugar.

3- Sofala: cidade e antigo reino da África oriental.



«Esta passada, logo o leve leme

Encomendado ao sacro Nicolau,

Pera onde o mar na costa brada e geme,

A proa inclina düa e doutra nau;

Quando, indo o coração que espera e teme

E que tanto fiou dum fraco pau,

Do que esperava já desesperado,

Foi düa novidade alvoroçado.



74o Ultrapassada a enseada, o frágil leme

É consagrado a São Nicolau (1),

E para onde o mar na Costa bate e geme,

Viram-se todas as proas, nau por nau;

Foi aí que o coração que espera e teme,

Que tanto confiou num fraco pau (2),

E que já se mostrava desesperançado,

É por uma boa novidade, alvoroçado.



1- São Nicolau: padroeiro dos navegantes.

2-Pau: referência à madeira de que as Caravelas eram feitas.



«E foi que, estando já da costa perto,

Onde as praias e vales bem se viam,

Num rio, que ali sai ao mar aberto,

Batéis à vela entravam e saíam.

Alegria mui grande foi, por certo,

Acharmos já pessoas que sabiam

Navegar, porque entre elas esperámos

De achar novas algüas, como achámos.



Foi quando soubemos da Costa por perto,

Pois até as praias e os vales já se viam.

Num rio, que ali deságua no mar aberto,

Vimos que leves botes entravam e saiam.

A alegria foi muito grande decerto,

Por encontrarmos pessoas que já sabiam

Navegar, pois com elas esperávamos

Achar nosso rumo, como de fato achamos.



«Etíopes são todos, mas parece

Que com gente milhor comunicavam;

Palavra algüa Arábia se conhece

Entre a linguagem sua que falavam;

E com pano delgado, que se tece

De algodão, as cabeças apertavam;

Com outro, que de tinta azul se tinge,

Cada um as vergonhosas partes cinge.



76o Eram todos Etíopes (1), mas parece

Que conosco melhor se comunicavam;

Algumas palavras em árabe ali se conhece

Em meio ao idioma que falavam;

Com um fino pano que se tece

De algodão, as cabeças envolviam;

Com outro tecido, que de azul se colore,

A parte vergonhosa, cada qual se cobre.



«Pela Arábica língua que mal falam

E que Fernão Martins mui bem entende,

Dizem que, por naus que em grandeza igualam

As nossas, o seu mar se corta e fende;

Mas que, lá donde sai o Sol, se abalam

Pera onde a costa ao Sul se alarga e estende,

E do Sul pera o Sol, terra onde havia

Gente, assi como nós, da cor do dia.



77o Dizem em árabe, que mal falam,

Mas que Fernão Martins (1) bem entende,

Que só em navios que aos nossos se igualam

É possível navegar, pois ali o mar se fende;

E que onde o Sol nasce outros navios se abalam;

Seguindo a Costa sul que se alarga e estende,

E do sul para o Oriente chega-se a terra onde havia

Gente da nossa raça, de cor clara como o dia.



1- Fernão Martins: tripulante da esquadra e intérprete para a língua árabe.



«Mui grandemente aqui nos alegrámos

Co a gente, e com as novas muito mais.

Pelos sinais que neste rio achámos

O nome lhe ficou dos Bons Sinais.

Um padrão nesta terra alevantámos,

Que, pera assinalar lugares tais,

Trazia alguns; o nome tem do belo

Guiador de Tobias a Gabelo.



78o Ali, com os nativos, nos alegramos;

E com aquela boa novidade, muito mais.

Pelas boas novas que neste rio achamos

Demos-lhe o nome de “Bons Sinais”.

Um monumento na terra nós levantamos,

Pois para assinalar lugares iguais,

Alguns trazíamos; e a este demos o belo

Nome do condutor de Tobias a Gabelo (1).



1- Referência a São Rafael Arcanjo que levou Tobias (o filho) através de muitos perigos até a casa do Ninivita Gabelo, que devia certa importância a Tobias (o pai).



«Aqui de limos, cascas e d'ostrinhos,

Nojosa criação das águas fundas,

Alimpámos as naus, que dos caminhos

Longos do mar vêm sórdidas e imundas.

Dos hóspedes que tínhamos vizinhos,

Com mostras aprazíveis e jocundas,

Houvemos sempre o usado mantimento,

Limpos de todo o falso pensamento.



79o Ali, o limo, as cascas e os ostrinhos,

Nojenta criação das águas profundas,

Limpamos das naus, que nos longos caminhos

Do mar foram sujando-se e se tornando imundas.

Dos anfitriões que tínhamos por vizinhos,

Com mostras de amizades fecundas,

Sempre recebemos o necessário mantimento,

Isentos de qualquer mau pensamento.



«Mas não foi, da esperança grande e imensa

Que nesta terra houvemos, limpa e pura

A alegria; mas logo a recompensa

A Ramnúsia com nova desventura.

Assi no Céu sereno se dispensa;

Co esta condição, pesada e dura,

Nacemos: o pesar terá firmeza,

Mas o bem logo muda a natureza.



80o Porém a esperança feliz e intensa

Que tivemos, não foi limpa nem pura,

Pois com a alegria, uma triste recompensa:

Trouxe-nos a Ramnusia (1) nova desventura,

Pois disto o céu sereno não nos dispensa,

Com esta condição, pesada e dura,

Nós nascemos: o pesar terá muita firmeza,

Mas o prazer, logo perde a sua grandeza.



1-Ramnusia: sobrenome de Nêmesis, uma das Fúrias, assim chamada porque o seu maior santuário ficava em Ramnos, na Ática.



«E foi que, de doença crua e feia,

A mais que eu nunca vi, desempararam

Muitos a vida, e em terra estranha e alheia

Os ossos pera sempre sepultaram.

Quem haverá que, sem o ver, o creia,

Que tão disformemente ali lhe incharam

As gingivas na boca, que crecia

A carne e juntamente apodrecia?



81o Assim, uma doença (1) brutal e feia,

Como eu nunca vira, fez muitos se separaram

Da vida e em terra estrangeira e alheia

Os seus ossos para sempre ficaram.

Quem haverá, que sem ter visto, creia

Como terrivelmente lhes incharam

As gengivas nas bocas, onde crescia

A carne que, simultaneamente, apodrecia?



1- A doença citada por Camões é o Escorbuto, ocasionada por deficiência de vitamina C, presente nas frutas cítricas.



«Apodrecia cum fétido e bruto

Cheiro, que o ar vizinho inficionava.

Não tínhamos ali médico astuto,

Cirurgião sutil menos se achava;

Mas qualquer, neste ofício pouco instruto,

Pela carne já podre assi cortava

Como se fora morta, e bem convinha,

Pois que morto ficava quem a tinha.



«Enfim que nesta incógnita espessura 83o Finalmente, nesta desconhecida amargura



82o Degenerava com um fétido e bruto

Cheiro, que o ar vizinho infeccionava.

Ali, não tínhamos um médico astuto,

Nem cirurgião competente se achava;

Então, qualquer um, mesmo que pouco arguto,

Aquela carne fétida e apodrecida cortava,

E isso, a todos os outros, muito convinha,

Pois quase morto já estava, quem a tinha.



Deixámos pera sempre os companheiros

Que em tal caminho e em tanta desventura

Foram sempre connosco aventureiros.

Quão fácil é ao corpo a sepultura!

Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros

Estranhos, assi mesmo como aos nossos,

Receberão de todo o Ilustre os ossos.



Deixamos para sempre os companheiros

Que em nossos caminhos e em tanta desventura

Sempre estiveram conosco, bravos aventureiros.

Como é fácil dar a um corpo, a triste sepultura!

Qualquer onda do mar, quaisquer outeiros

Estranhos, assim como aos nossos,

De todos recebem os ilustres ossos.



«Assi que deste porto nos partimos

Com maior esperança e mor tristeza,

E pela costa abaixo o mar abrimos,

Buscando algum sinal de mais firmeza.

Na dura Moçambique, enfim, surgimos,

De cuja falsidade e má vileza

Já serás sabedor, e dos enganos

Dos povos de Mombaça, pouco humanos.



84o Enfim, deste porto nós partimos

Com esperança, mas também com tristeza,

E pela costa abaixo seguimos,

Buscando algum sinal de maior clareza.

A dura Moçambique (1) nós descobrimos,

De cuja falsidade e grande vileza

Em breve saberás, e dos enganos

Do povo de Mombaça (2), tão desumano.



1- Moçambique: ilha da costa oriental, descoberto por Vasco da Gama, nesta expedição.

2- Mombaça: cidade na costa oriental da África.





«Até que aqui, no teu seguro porto,

Cuja brandura e doce tratamento

Dará saúde a um vivo e vida a um morto,

Nos trouxe a piedade do alto Assento.

Aqui repouso, aqui doce conforto,

Nova quietação do pensamento,

Nos deste. E vês aqui, se atento ouviste,

Te contei tudo quanto me pediste.



85o Até que aqui, no teu seguro porto,

Cuja generosidade e doce tratamento

Dão saúde a um vivo e vida a um morto,

Trouxe-nos a Divina Piedade do Firmamento.

Aqui encontramos repouso e um doce conforto,

Paz de espírito, de pensamento e de sentimento

Nos destes. E veja, que se com atenção me ouviste,

Contei-lhe tudo, conforme, ó rei, tu me pediste.



«Julgas agora, Rei, se houve no mundo

Gentes que tais caminhos cometessem?

Crês tu que tanto Eneias e o facundo

Ulisses pelo mundo se estendessem?

Ousou algum a ver do mar profundo,

Por mais versos que dele se escrevessem,

Do que eu vi, a poder d'esforço e de arte,

E do que inda hei-de ver, a oitava parte?



86o Agora julgas ilustre Rei, se houve no Mundo

Outro povo que por tais caminhos se aventurassem?

Tu acreditas que Enéas (1) e o facundo

Ulisses (2) por esse Mundo tanto navegassem?

Algum outro herói avistou do mar profundo,

Por mais que sobre ele versos se escrevessem,

Mais do que eu vi, a poder de esforço e arte,

E do que verei, mesmo sendo apenas a oitava parte (3)?



1- Enéas: príncipe troiano, herói de Virgilio em “Eneida”.

2-Ulisses: rei de Ìtaca. Um dos heróis grego na guerra de Tróia e o protagonista de “A Odisséia” de Homero.

3-Ainda considerando o Sistema Ptolomaico que estipulava as dimensões do Mundo.







«Esse que bebeu tanto da água Aónia,

Sobre quem têm contenda peregrina,

Entre si, Rodes, Smirna e Colofónia,

Atenas, Ios, Argo e Salamina;

Essoutro que esclarece toda Ausónia,

A cuja voz, altíssona e divina,

Ouvindo, o pátrio Míncio se adormece

Mas o Tibre co som se ensoberbece:



87o Que o poeta (1) que bebeu da água Aônia (2),

E com a qual imaginou uma guerra ferina,

Entre Rodes (3), Smirna (4), Colofônia (5)

Atenas (6), Ios (7), Argo (8) e Salamina (9);

Ou esse outro (10) que enaltece a Ausônia (11)

E cuja voz grave, poderosa e divina,

Ouvida por Míncio (12), logo o adormece,

Enquanto que o Tibre (13) se envaidece:



1- O poeta: referência a Homero, poeta grego e criador dos épicos “Odisséia” e da “Ilíada”.

Aônia: “a água aônia” provinha da fonte de Aganipe, que inspirava os poetas. Ficava situada na Beócia.

3- Rodes: ilha no Mediterrâneo onde havia uma estátua de Apolo com mais de trinta metros. O famoso “Colosso de Rodes”.

4- Smirna: cidade na costa da Ásia Menor.

5- Colofônia: cidade na Lídia, Ásia Menor.

6- Atenas: capital grega.

7- Ios: uma das ilhas Cícladas, entre Naos e Santorim.

8- Argo: cidade da Grécia situada no Peloponeso.

9- Salamina: ilha no mar Egeu. Celebre pela vitória de Temístocles na batalha naval contra os persas de Xerxes em 480 A. C.

10- Referência a Virgilio, poeta italiano.

11- Ausônia: nome de uma parte da Itália antiga, aplicado pelos poetas à Itália inteira.

12- Míncio: afluente do rio Pó que banha Mantua, pátria de Virgilio, autor de “Eneida”.

13- Tibre: rio italiano que banha Roma e deságua no Tirreno.



«Cantem, louvem e escrevam sempre extremos

Desses seus Semideuses e encareçam,

Fingindo magas Circes, Polifemos,

Sirenas que co canto os adormeçam;

Dêm-lhe mais navegar à vela e remos

Os Cícones e a terra onde se esqueçam

Os companheiros, em gostando o loto;

Dêm-lhe perder nas águas o piloto;



88o Cantem e exaltem e escrevam extremos

Sobre esses seus “Semideuses” e os enalteçam,

Criando ilusórias feiticeiras Circe (1), Polifemos (2),

Ou Sirenas (3) que com seus cantos os adormeçam;

Que inventem para eles mais navegações à vela e a remos,

E lutas contra os Cícones (4) e a Terra onde se esqueçam

Dos companheiros, satisfazendo ao povo loto (5),

Que relatem a fábula de perder nas águas o piloto;



1- Circes: filha do sol, feiticeira que desempenha importante papel na “Odisséia” de Homero. Para reter Ulisses junto dela, transformou seus companheiros em porcos e metamorfoseou em monstro a ninfa Cila, que posteriormente, personificou o famoso rochedo da Sicília, que junto com Caribis, constituía um grande perigo à navegação.

2- Polifemos: filho de Netuno e um dos Ciclopes que foi cegado e depois morto por Ulisses.

3- Sirenas: seres fabulosos, metade mulher e metade ave (ou peixe) que atraía os navegantes com o seu canto melodioso fazendo-os naufragar. As Sereias.

4- Cícones: povo da Trácia que lutou contra Ulisses.

5- Relativo à terra dos Lotófagos, na África do norte. Segundo a “Odisséia”, ali haveria frutos que provocavam o completo esquecimento. Os marujos de Ulisses os comeram e se esqueceram de tudo, inclusive de voltar para o navio.



«Ventos soltos lhe finjam e imaginem

Dos odres, e Calipsos namoradas;

Harpias que o manjar lhe contaminem;

Decer às sombras nuas já passadas:

Que, por muito e por muito que se afinem

Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas,

A verdade que eu conto, nua e pura,

Vence toda grandíloca escritura!»



89o Finjam que há ventos terríveis contra eles e imaginem

Que pegam barris de ouro; que Calipso (1) lhe seja enamorada:

Inventem as Hárpias (2) que a sua comida contaminem:

Ou então, que já foram até na infernal morada (3);

Contudo, por mais louvores que vocês lhes destinem,

Nessa fábula vazia, ainda que bem imaginada,

O que eu relato é apenas a verdade nua e pura,

História real que supera a sua vibrante literatura.



1- Calipso: ninfa da Ilha Ogígia. Apaixonada por Ulysses (Odisseu) impediu-o durante sete anos de voltar à pátria.

2- Harpias: monstro alado que poluía o alimento que tocava.

3- Alusão à descida de Ulisses, na Odisséia, ao reino dos mortos.





Da boca do fecundo Capitão

Pendendo estavam todos, embebidos,

Quando deu fim à longa narração

Dos altos feitos, grandes e subidos.

Louva o Rei o sublime coração

Dos Reis em tantas guerras conhecidos;

Da gente louva a antiga fortaleza,

A lealdade d'ânimo e nobreza.



90o Da boca do eloqüente Capitão

Todos estavam ouvindo embevecidos,

Quando ele finalizou a longa narração

Dos grandes feitos, sublimes e erguidos.

O rei nativo louva o sublime coração

Dos reis lusitanos, em guerras celebrados;

Do povo luso, louva a eterna fortaleza,

A lealdade, a obediência e a nobreza.



Vai recontando o povo, que se admira,

O caso cada qual que mais notou;

Nenhum deles da gente os olhos tira

Que tão longos caminhos rodeou.

Mas já o mancebo Délio as rédeas vira

Que o irmão de Lampécia mal guiou,

Por vir a descansar nos Tétios braços;

E el-Rei se vai do mar aos nobres paços.



91o O povo reconta os trechos que mais admira,

Cada um vai repetindo o fato que mais lhe tocou,

Mas nenhum deles os olhos tira

Daquela gente que tanto navegou.

Porém, o jovem Délio (1) o carro do Sol vira,

Que o irmão de Lampacéia (2) tão mal guiou,

Para vir descansar nos Thétios (3) braços;

O nobre rei deixou a armada e voltou aos Paços.



1- Délio: um dos nomes de Apolo, o deus do Sol.

2- Lampacéia: ninfa, filha do Sol e irmã de Fáeton, que aproximando em demasia o Sol da Terra, queimou os africanos.

3- Thétios braços: nas águas do oceano.



Quão doce é o louvor e a justa glória

Dos próprios feitos, quando são soados!

Qualquer nobre trabalha que em memória

Vença ou iguale os grandes já passados.

As envejas da ilustre e alheia história

Fazem mil vezes feitos sublimados.

Quem valerosas obras exercita,

Louvor alheio muito o esperta e incita.



92o Como são doces o louvor e a merecida glória

Das próprias proezas, quando são ecoadas!

Qualquer nobre trabalha visando ficar na memória,

E que os seus feitos superem as proezas passadas.

A inveja da ilustre e alheia história

Faz com que aconteçam novas façanhas sublimadas.

Aquele que nas valorosas obras se exercita,

Sempre espera ser louvado, o que mais lhe incita.



Não tinha em tanto os feitos gloriosos

De Aquiles, Alexandro, na peleja,

Quanto de quem o canta os numerosos

Versos: isso só louva, isso deseja.

Os troféus de Milcíades, famosos,

Temístocles despertam só de enveja;

E diz que nada tanto o deleitava.

Como a voz que seus feitos celebrava.



93o Não foram tão grandes os feitos gloriosos

De Aquiles (1) e Alexandre (2) na peleja,

Como foram cantados em numerosos

Versos, que os louvam para que o Mundo os veja.

Os êxitos de Milcíades (3), tão famosos,

Temístocles (4) os deseja apenas por inveja,

Pois sempre dizia que o que mais gostava

Era ouvir a quem os seus feitos celebrava.



1- Aquiles: herói grego.

2- Alexandre: Alexandre Magno, rei da Macedônia, que conquistou a Pérsia e a Índia.

3- Milcíades: general ateniense que derrotou os persas na batalha de Maratona.

4- Temístocles: vencedor da batalha de Salamina, contra os persas. Segundo a tradição invejava as vitórias de Milcíades.







Trabalha por mostrar Vasco da Gama

Que essas navegações que o mundo canta

Não merecem tamanha glória e fama

Como a sua, que o Céu e a Terra espanta.

Si; mas aquele Herói que estima e ama

Com dões, mercês, favores e honra tanta

A lira Mantuana, faz que soe

Eneias, e a Romana glória voe.



94O Assim argumentava Vasco da Gama,

Sobre as obras dos heróis que o mundo canta,

Alegando que não merecem tanta glória e fama

Pois são menos que à lusa, a qual Céu e Terra espanta.

Todavia, aquele herói da antiga Roma,

Recebeu tantos louvores e tanta

Honra nos versos de Virgilio que ecoam,

Que a fama de Enéas e de Roma longe voam.



Dá a terra Lusitana Cipiões, Césares,

Alexandros, e dá Augustos;

Mas não lhe dá contudo aqueles dões

Cuja falta os faz duros e robustos.

Octávio, entre as maiores opressões,

Compunha versos doutos e venustos

(Não dirá Fúlvia, certo, que é mentira,

Quando a deixava António por Glafira).



95o A terra lusitana gera heróis como Cipiões (1),

Césares (2), Alexandres (3) e Augustos (4);

Mas não os grandes poetas que tenham os dons

De exaltá-los, ficam anônimos mesmo que robustos.

Octavio (5), mesmo entre as maiores opressões,

Compunha versos graciosos e astutos,

(E não dirá Fúlvia (6), certamente, que é mentira

Que Marco Antonio (7) a traía com Glafira (8)).



1- Cipião: Cipião Emiliano, que, diz a tradição, colaborou nas peças de Terêncio.

2- Césares: generais e imperadores romanos.

3- Alexandres: Alexandre Magno.

4- Augustos: Imperador romano e sobrinho e herdeiro de César.

5- Octávio: o outro nome de Augusto.

6- Fúlvia: mulher de Marco Antonio.

7- Antonio: Marco Antonio, triúnviro romano.

8- Glafira: esposa do Sumo Sacerdote Arquelau, da Capadócia, e segundo Camões, amante de Marco Antonio. Entretanto há controvérsias sobre a sua real identidade.



Vai César sojugando toda França

E as armas não lhe impedem a ciência;

Mas, nüa mão a pena e noutra a lança,

Igualava de Cícero a eloquência.

O que de Cipião se sabe e alcança

É nas comédias grande experiência.

Lia Alexandro a Homero de maneira

Que sempre se lhe sabe à cabeceira. iss



96o César ia subjugando toda a França

Mas isso não lhe impedia de estudar ciência,

Numa mão levava a pena e noutra a dura lança

E dizem que com Cícero (1) se igualava em eloqüência.

De Cipião se sabe, até onde o conhecimento alcança,

Que nas Comédias tinha uma grande experiência.

Alexandre lia Homero (2) de tal maneira

Que sempre o tinha na cabeceira.



1- Cícero: escritor e orador romano.

2- Homero: poeta grego. Camões cita os dois, para lamentar que os portugueses não tenham poetas como eles para perpetuar as suas glórias.



Enfim, não houve forte Capitão

Que não fosse também douto e ciente,

Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,

Senão da Portuguesa tão somente.

Sem vergonha o não digo: que a razão

De algum não ser por versos excelente

É não se ver prezado o verso e rima,

Porque quem não sabe arte, não na estima.



97o Enfim, não houve nem um forte Capitão

Que também não fosse culto e inteligente,

Seja na Lácia (1), ou na grega ou na bárbara nação,

Apenas na portuguesa é que existiram, infelizmente.

Não é sem envergonhar-me que digo: a razão

De nenhum deles ser um poeta excelente

É que desprezam o verso e a rima,

Pois quem que não sabe fazer arte, não a estima.



1- Lácia: a Itália. A nação italiana.



Por isso, e não por falta de natura,

Não há também Virgílios nem Homeros;

Nem haverá, se este costume dura,

Pios Eneias nem Aquiles feros.

Mas o pior de tudo é que a ventura

Tão ásperos os fez e tão austeros,

Tão rudos e de engenho tão remisso,

Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso.



98o Por isso, e não por defeito da natureza,

É que não há poetas como Virgilio ou Homero;

E nem haverá, se perdurar esta rudeza,

Heróis como o casto Enéas e o Aquiles severo.

Mas o pior de tudo é que a aventura

Os fez tão ásperos e tão austeros,

Tão rudes e de brilhantismo tão omisso,

Que a muito deles nem se dá por isso.



Às Musas agardeça o nosso Gama

O muito amor da pátria, que as obriga

A dar aos seus, na lira, nome e fama

De toda a ilustre e bélica fadiga;

Que ele, nem quem na estirpe seu se chama,

Calíope não tem por tão amiga

Nem as filhas do Tejo, que deixassem

As telas d'ouro fino e que o cantassem.



99o Às musas (1) deve agradecer Vasco da Gama:

O amor que elas tem à pátria é que as obriga,

A dar aos lusos, em seus cantos, renome e fama,

Por toda a ilustre e guerreira fadiga.

Pois ele, e ninguém que de sua família chama,

Não tem na musa Calíope uma grande amiga

Ainda que as filhas do rio Tejo cantem seu valor

E de suas telas de ouro, exaltem-no com louvor.



1- As musas: aqui Camões refere-se às Tágides, ninfas do rio Tejo.

2- Calíope: musa da poesia épica.



Porque o amor fraterno e puro gosto

De dar a todo o Lusitano feito

Seu louvor, é somente o pros[s]uposto

Das Tágides gentis, e seu respeito.

Porém não deixe, enfim, de ter disposto

Ninguém a grandes obras sempre o peito:

Que, por esta ou por outra qualquer via,

Não perderá seu preço e sua valia.



100o Porque o amor fraterno e o puro gosto

De dar a todo heróico lusitano êxito

O devido louvor é o suave jeito

Das gentis Tágides (1) mostrarem seu respeito.

Porém, não deixe ninguém de estar disposto

Para as grandes obras que exigem valente peito:

Pois, por essa ou por outra via,

A proeza não deixará de ter valor ou serventia.



1- Tágides: ninfas do rio Tejo.

2 comentários:

  1. Caro Fábio,
    Vejo e sinto que é um Camoniano nato.Parabéns.
    Portugal vive hoje numa encruzilhada e,sinceramente, precisamos como de pão para a boca, encontrar soluções que o nosso Camões há muito nos indicou nos seus cantos.Sublimar o talento nas artes e ofícios de bem governar.Um abraço amigo,

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  2. A ortografia adaptada realmente ajuda muito a entender os Lusíadas.

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