segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Descartes e o Racionalismo - Parte XII - A Metafísica



Como dissemos anteriormente, o “Método Cartesiano” foi elaborado muito mais para atender as questões cientificas, materiais, que para os assuntos classificados como “metafísicos”, “espirituais”, “abstratos” etc.

Assim, para melhor se degustar o ideário de Descartes acerca desses temas é preciso estudar a sua obra “Metafísica”, a qual, obviamente, serve de base para as digressões que seguem.

Antes de tudo será oportuno alertar ao leitor para esteja aberto para a mudança nos conceitos que serão observados, pois a genialidade do filósofo conseguiu abarcar com a mesma eficiência todo o conjunto da mente humana.

Desse modo, observa-se primeiramente que a célebre sentença “Cogito, ergo, sun” ou “Penso, logo, existo” deixa de ser tratada como um produto do raciocínio e passa a ser vista como uma intuição; ou seja, aquele tipo superior de sabedoria que habita a alma ou a mente do homem. O conhecimento que está além da reflexão, do aprendizado e que para os crédulos é uma dádiva divina e para os incrédulos é a resultante da “memória da espécie” e/ou de propriedades ainda ignoradas do sistema nervoso, do cérebro etc.

Mas, independentemente da crença sobre a sua origem, o fato é que a intuição é uma realidade. Uma forma de Saber que todos utilizam em momentos determinados, ainda que de modo inconsciente ou involuntário. E foi, pois, a intuição o elemento chave que Descartes utilizou para montar o seu Sistema Metafísico, sem abdicar, é claro, de sua principal ferramenta: a “dúvida sistemática”, a qual ele transformou em “instrumento auxiliar” para a sua investigação, haja vista que nessa quadra o “ato de duvidar de tudo” tem um alcance muito maior de que aquela “dúvida metodológica” que os cientistas usam em suas reflexões. O filósofo utilizou-o para questionar sistematicamente absolutamente tudo que seja concreto e abstrato, mesmo que o motivo para duvidar fosse insignificante.

Ele iniciou seus estudos, duvidando dos próprios Sentidos (1) (tato, visão, audição, paladar e olfato), os quais, a seu ver “nos enganam frequentemente”. Em suas palavras:

“Duvidemos dos sentidos, uma vez que eles frequentemente nos enganam, pois, nunca tenho certeza de estar sonhando ou de estar desperto! (...) Quantas vezes acreditei-me vestido com o robe de chambre, ocupado em escrever algo junto à lareira; (e) na verdade, estava despido em meu leito”.

Na sequência as suas dúvidas voltaram-se para as “Certezas Cientificas (2)” e para as próprias “Evidências Matemáticas (2)” sob o argumento de que “um gênio do mal ou a até mesmo a divindade poderia estar enganando-o por simples galhofa ou por motivos desconhecidos”.

Um argumento que à primeira vista pode soar como bizarro, pois, afinal, do chamado “Pai do Racionalismo” não se esperaria essa aproximação com crenças religiosas, ou míticas ou mitológicas. Todavia, novamente se faz necessário recordar que Descartes tratava a existência de Deus como um fato consumado, sobre o qual não se admitia sequer que fosse questionado, tanto por crença genuína, quanto por temer as represálias dos Católicos, já que o poder da Igreja não podia ser subestimado.

Seria preciso fazer algumas concessões para que se pudesse preservar o conjunto. Um comportamento, aliás, que não nos é distante, como se pode ver na história verídica que se conta abaixo, a qual serve para exemplificar algumas contradições aparentes nos pensamentos dos grandes sábios.

“Há cerca de quarenta anos, no Brasil, corria-se o risco de se ter confiscada uma obra de arte da Escola Cubista (de gênio como Picasso, por exemplo), porque os Ditadores burgueses e militares que usurparam o poder no País imaginavam que tais obras “Cubistas” traziam mensagens subversivas da Ilha de Cuba (sic). A concessão feita por marchands, proprietários e apreciadores daquele tipo de pintura foi a de classificá-las genericamente como Arte Moderna”.

Ademais, é preciso reconhecer o acerto do filósofo em duvidar das “Certezas Cientificas”, pois como se sabe, cada avanço na tecnologia implica na negação de “verdades” que até então eram absolutas. As recentes descobertas dos “exo-planetas” é um belo exemplo disso, haja vista que enterra as crenças absurdas a respeito da exclusividade de vida na Terra, que só vigoravam graças à ignorância a que o “gênio do mal” da desinformação condenava a humanidade. E o mesmo acontece na Matemática, embora de forma menos aparente, que frequentemente é confrontada pelas “Ciências Quânticas”; o que leva as mentes superiores a concordarem que os seus pilares não são tão graníticos como sempre se acreditou.

Dessa sorte, vê-se a grandiosidade mental de Descartes ao eleger a dúvida como a única ponte confiável para a verdade, pois se de tudo se pode (e se deve) duvidar; é impossível questionar essa mesma “capacidade de duvidar” e, por consequência, a existência do proprietário dessa capacidade.

Mesmo que o citado “gênio do mal” colocasse falsidade em todas as outras conclusões, nessa, ele não lograria êxito.

Assim sendo, considerando-se a sua amplitude, o célebre “Cogito” ultrapassa o “reino das ideias” e não deve ser considerado como a origem (2) do chamado “Idealismo Filosófico”, cujo cerne é o sujeito que pensa e as suas ideias, como a base de todo conhecimento.

Na verdade, a sua associação é com a Ontologia, já que ele comprova a efetividade de Ser, de Existir; para além das simples aparências, do mero conjunto de “pensamentos e homem que pensa”.

Nesse nível mais “espiritual”, mais “essencial”, Descartes assumiu uma face, digamos, mais Solipsista (3), pois a “sua certeza” restringia-se a si mesmo, ao seu próprio existir, ser. Ele só tinha a certeza de que o seu “ser pensante” existia indubitavelmente, mas não poderia ter a mesma convicção em relação aos demais. Em suas palavras:

“Pois, sempre duvido desse objeto que é (o) meu corpo; a alma é mais fácil de ser conhecida que o corpo”.

E como o Solipsismo remete à solidão, foi através do aprofundamento da mesma que ele conseguiu escapar-lhe, pois, surgiu-lhe, então, a extraordinária ideia da “Perfeição”, do “Infinito” e de Deus. A partir daí a sua solidão termina, já que outro Ser passa a ter a sua existência reconhecida como absolutamente certa. No mínimo, “dois Seres” existiriam de forma inquestionável: ele mesmo e Deus.

Mas como ele conseguiu deduzir essa segunda existência comprovada, usando apenas o raciocínio? Vejamos:

(Peço licença ao leitor (a) para usar a “primeira pessoa” nesse trecho com o objetivo de facilitar a exposição)

“Mesmo sendo finito e imperfeito, ainda assim tenho a clara noção de que existe um Ser perfeito e infinito e por isso eu tenho que admitir que foi ‘Ele’ quem colocou esta noção sobre ‘Si’ em minha mente, logo, ‘Ele’ existe indubitavelmente. E, note-se, que sendo um “Ser Perfeito” é um “Ser Bondoso” e que por isso não colocaria falsas ideias em minha mente, o que me garante que elas são verdadeiras. Assim sendo, eu posso crer na efetiva existência de tudo”.

Perceba-se que Descartes fez o caminho inverso ao de Santo Tomaz, que pretendeu comprovar a existência divina através da existência do Universo que os Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato) captam; enquanto que Descartes abdicou das Sensações, por saber de suas fragilidades, e se utilizou apenas do exercício reflexivo para escorar a sua conclusão. Em suas palavras:

“Compreenda-se que, para tanto, não tenho o direito de guiar-me pelos sentidos (cujas mensagens permanecem confusas e que só tem um valor de sinal para os instintos do ser vivo). Só posso crer no que me é claro e distinto (por exemplo: na matéria, o que existe verdadeiramente “é” o que é claramente pensável, isto é, a extensão e o movimento)”.

Contudo, como não poderia deixar de ser, a argumentação de Descartes encontrou oposições e alguns o criticam sob a alegação de que ele se limitou a um círculo vicioso, onde: A evidência me conduz a Deus e Deus me garante a evidência. Porém, os seus adeptos logo rebateram, dizendo que a “evidência” cartesiana seria de outra natureza; seria a “evidência ontológica” que através do “cogito” – da dúvida sistemática –também fundamenta os objetos matemáticos (2+2=4, sempre) graças ao seu rigor.

Ainda sobre essa questão, na “5ª Meditação”, Descartes atualiza com cores mais claras e nítidas o famoso “argumento ontológico” de Santo Anselmo (Anselmo de Aosta ou da Cantuária, Itália atual, 1033-1109) ao afirmar que:

“Não mais se trata de partir de mim, que tenho a ideia de Deus, mas antes da ideia de Deus que há em mim. (...) Apreender (ou captar) a ideia de perfeição e afirmar a existência do Ser perfeito é a mesma coisa. (...) Pois uma perfeição não existente não seria uma perfeição”.

§§§

Aqui chegados, damos por findas as considerações sobre Descartes e o Racionalismo, registrando nossa profunda admiração por esse genial Pensador que contribuiu vigorosamente para que o homem se libertasse das amarras do obscurantismo e vislumbrasse a realidade com mais veracidade.

Na sequência, convidamos o amigo leitor (a) para nos acompanhar no apêndice que segue e que trata do Empirismo, o sistema filosófico desenvolvido em oposição ao Racionalismo e que por muito tempo balizou as concepções do Pensamento moderno do Ocidente.


Rio de Janeiro, 29 de Dezembro de 2014.

Nota do Autor 1 – ao contrário dos “Empiristas” que lhe foram antagônicos incensavam como a fonte exclusiva do Saber. Veja apêndice sobre o Empirismo, que segue.

Nota do autor 2 – e também porque o Idealismo tem a sua origem nos primórdios da Filosofia grega, sendo as suas versões “modernas”, a rigor, uma atualização daqueles postulados.

Nota do Autor 3 – Solipsista – a situação ou o indivíduo que se volta completamente para o seu interior, desprezando qualquer contato externo.


Lettré, l´art ET la Culture. Rio de Janeiro, Verão de 2014.

Descartes e o Racionalismo - Parte XI - O Método


Ao desenvolver o seu “método”, Descartes visou mais aos assuntos científicos que aos metafísicos e, por isso, algumas questões não foram contempladas pelo mesmo, as quais, no entanto, estão soberbamente tratadas no livro “Metafísica”.

Como já se disse, o livro que contém essas suas considerações, “Discurso sobre o Método”, foi alvo de variados elogios e ainda hoje é visto e consultado com regularidade por todos que buscam meios de pesquisas e de estudos que estejam isentos de elementos questionáveis.

Inicialmente exporemos de forma sintética os quatro pontos em que se baseiam a metodologia e logo adiante voltaremos aos mesmos para complementar as observações. A saber:

1) Verificar
2) Analisar
3) Sintetizar
4) Enumerar

O célebre “método cartesiano”, a princípio, pode parecer óbvio tal é o nosso costume com ele. Geralmente esquecemos que essa maneira de analisar e de se chegar a conclusões seguras praticamente inexistia antes de Descartes, cabendo-lhe, portanto, o mérito de ter organizado na Filosofia Moderna as funções racionais, colocando-as a serviço da “Verdade”.

Ao criar o seu “método”, o filósofo pretendeu estabelecer uma metodologia universal que pudesse ser utilizada em qualquer assunto. Que fosse capaz de provar com rigor as teses que vão da “existência de Deus”, do “primado da alma sobre o corpo” até o “mecanismo da corrente sanguínea”.

Ele buscava, desse modo, preparar os seus contemporâneos para que aceitassem os novos fatos que as Ciências demonstravam e que, à época, eram verdadeiros tabus, como, por exemplo, “o movimento da Terra girando ao redor do Sol”.

E por serem temas tabus, ele sabia que o seu sistema só poderia ser inspirado pela Matemática para que o rigor que nela se observa, pudesse predominar no mesmo. Sabia da necessidade de que ao seu sistema, nenhuma objeção real ou irracional pudesse ser contraposta. Seria, portanto, imperioso que o presidisse “as longas cadeias da Razão”.

A partir dessa necessidade, ele propôs que (voltando às quatro regras):

a) A primeira regra seria a Evidência; ou seja, só admitir como “verdadeiro” aquilo que for evidentemente indubitável. Consequentemente não admitir que “nenhuma coisa, ou fato, seja considerada verdadeira se não puder ser reconhecida como tal”; e, para tanto, deve-se evitar toda precipitação de julgamento, bem como toda prevenção e todo preconceito ou pré-julgamento, pois tais atitudes poderiam induzir ao erro.

b) A segunda regra é a análise que deverá ser feita em cada uma das partes que formam o “Todo”, previamente desmembrado.

c) A terceira regra é a da síntese, organizando a reflexão a partir das partes mais simples e fáceis de conhecer e progredir conforme o grau de dificuldade até se conseguir analisar o “todo” reagrupado.

d) Por fim, a quarta regra, que consiste em catalogar minuciosamente os princípios e as conclusões para se ter a certeza de que nada foi omitido ou esquecido.

Com essas quatro regras, Descartes legou ao mundo uma forma de se buscar a “Verdade” que é reconhecida como válida e importante, até nos dias atuais.

Para muitos, nela está a mais pura manifestação do “Racionalismo”, pois, se antes, sentenças do tipo: “Aristóteles afirmou que...” eram consideradas absolutamente exatas, apenas por terem sido proferidas pelo estagiarita, partir da assunção de sua Filosofia, estabeleceu-se que nem Aristóteles poderia ter a pretensão da infabilidade, não obstante o respeito devido aos grandes mestres.

Tudo, absolutamente tudo, para ser considerado verdadeiro e válido, deveria passar pelo crivo da racionalidade.

A ele, pois, se deve o “direito” de se questionar o que era inquestionável.

Contudo, seus críticos não deixaram de notar que ele excluiu dessa obrigatoriedade dois assuntos da maior importância: a Política e a Religião, que só foram submetidos ao julgamento da Razão através dos Filósofos posteriores, como Voltaire, por exemplo.

É, certamente, uma omissão grave e que provavelmente decorreu de sua posição conservadora em Política e de sua firme convicção religiosa.

Porém, ainda assim, o seu Sistema conservou todo o seu valor, pois ao descartar as informações oriundas das Sensações (captadas pelos Sentidos [tato, visão, audição, paladar e olfato]) ele livrou o homem dos enganos que são típicos das falsas percepções.

As evidências sensíveis e empíricas (captadas pelos Sentidos e só depois racionalizadas) não são, realmente, confiáveis, haja vista o quanto os Sentidos podem ser ludibriados.

Apenas as “ideias da Razão (ie. os pensamentos racionais)” são claras e seguras. O ato de racionalizar1 é a única maneira de se chegar à “Verdade essencial ou primeira”.

No próximo capítulo falaremos sobre Metafísica de Descartes e sondaremos as suas opiniões acerca das questões mais fundamentais do homem.

Nota do Autor-1 – o “ato de racionalizar” se inicia quando a Intuição percebe diretamente os “princípios primeiros” e a Dedução veicula a evidência da “natureza simples (ie. da essência)” de algo ou de um fato.


Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro. Verão de 2014.

Descartes e o Racionalismo - Parte X - A Geometria Analítica



Desde a primeira infância, Descartes já dava mostras de seu apego às coisas da matemática. Não era raro encontrá-lo absorvido em atividades lúdicas com jogos aritméticos, em montagem de conjuntos, em adições, subtrações etc.

Posteriormente, no colégio em La Flèche, esse gosto progrediu e se consolidou, mas, então, a afeição pela Matemática já não era apenas pela matéria em si, mas, principalmente, por ser a mesma um tipo de espelho no qual a Filosofia deveria se mirar para produzir respostas tão exatas e passíveis de comprovação quanto são as matemáticas.

E o seu interesse não se esgotou na vida escolar, por isso, ao entrar na casa dos vinte anos, frequentou várias “Sociedades de Matemática” em Paris e noutras localidades, além de manter o mesmo entusiasmo enquanto servia na vida militar.

Depois, em 1637, num pequeno texto chamado de “Geometria”, inserido no livro “Discurso sobre o Método”, ele deu à humanidade a célebre “Geometria Analítica”, cuja importância ainda hoje é reconhecida.

No próximo capítulo abordaremos o “O Método”, que para muitos é marco inicial da Filosofia Moderna.


Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro. Primavera de 2014.

Descartes e o Racionalismo - Parte IX O primeiro filósofo moderno - Cogito Ergo Sun



Como já foi dito em várias ocasiões, o significado original do termo “filósofo” remete ao conceito de “amigo do saber, dos estudos” e é desse modo que o título dado a Descartes deve ser entendido, pois a sua genialidade não ficou limitada à Filosofia teórica, abstrata, voltada para as questões metafísicas, elementares, primeiras, essenciais etc.; embora, a sua contribuição nesse campo tenha sido de tal magnitude que fica difícil imaginar o desenvolvimento da disciplina sem a sua participação.

Antes, porém, de falarmos sobre a sua enorme contribuição à disciplina do pensamento, falaremos de seu trabalho no campo das ciências, onde ele imperou absoluto até a chegada de Sir Isaac Newton (Grã Bretanha, 1643-1727) com suas geniais descobertas e soluções.

Para Descartes, o universo seria completamente preenchido, inexistindo, portanto, qualquer forma de vazio. Tese, aliás, que atualmente é defendida pelos adeptos da “matéria escura”, que permearia todos os espaços existentes entre os corpos luminosos e os iluminados.

E fiel às suas convicções religiosas, ele afirmava ser o cosmo uma criação de Deus, dotado de mecanismos capazes de controlá-lo perpetuamente, sem a necessidade de Sua intervenção direta. Argumento que posteriormente serviu de base para que Spinoza desenvolvesse seu magistral ideário.

Outra contribuição importante no campo das ciências foi a atualização que ele fez do conceito platônico de divisão da realidade em:

Res Cogitans – relativa à mente (cogito, cogitar), à consciência, ao espírito, à alma.

Res extensa – relativa à matéria, ao físico, ao concreto.

E foi no terreno da matemática que o seu contributo atingiu o máximo, tanto que os antigos e atuais próceres do assunto não hesitam em reconhecer a importância de sua “Geometria Analítica”, já que antes de sua descoberta, a álgebra e a geometria eram consideradas ramos totalmente separados, impossibilitando a resolução de vários problemas teóricos e de várias questões práticas, como as de engenharia, por exemplo.

Ao ensinar como transpor os problemas da geometria para a álgebra, através de um sistema de coordenadas, ele, seguramente, proporcionou inumeráveis avanços nas ciências, como bem comprova o fato de que seu sistema serviu de base para as pesquisas de homens como Leibniz e o próprio Newton.

E a grandiosidade de sua inteligência fica ainda mais evidente quando se recorda que essas descobertas foram citadas por ele sem qualquer vaidade, cerimônia ou pompa, sendo colocadas em sua obra “Discurso sobre o método”, apenas como simples “exemplos”.

Por fim, retomando a Filosofia teórica, veremos que o seu “ceticismo metodológico”, vai além do embasamento científico e se constitui em poderosa ferramenta para as investigações metafísicas, filosóficas.

O seu sistema (totalmente diferente do antigo sistema dos céticos) parte do pressuposto de que o “ato de duvidar” existe realmente; mas, o restante só pode ser considerado efetivamente existente se puder ser comprovado de maneira absoluta, por intemédio de reflexões e de deduções lógicas, racionais. 

Baseado nessa premissa, o filósofo buscou provar a efetiva existência do próprio “eu” através do exercício da dúvida, dando origem ao famoso: Cogito, ergo Sun; ou seja, porque eu tenho a capacidade de duvidar, eu sou (eu existo).

Contudo, a “dúvida sistemática” não foi a sua única ferramenta e, por isso, em relação à efetiva existência de Deus, ele partiu da constatação de que há naturalmente na mente do homem a ideia de um “Ser perfeito”, mesmo sendo ele, o homem, um Ser imperfeito. Esse reconhecimento de que existe uma “perfeição” já seria, a seu ver, a comprovação suficiente da existência da divindade. Uma conclusão absolutamente crível por ser oriunda de uma dedução racional e lógica e não uma ideia imposta com base apenas em suposições religiosas. 

Aqui importa notar que mesmo que se discorde dessa sua conclusão, há que se louvar o fato dele buscar essa comprovação racional, o que foi um considerável avanço para a época. Uma respeitável ruptura de paradigma que apenas por si justifica o epíteto de “Pai da Filosofia moderna” que lhe foi conferido.

No próximo capítulo trataremos de outra de suas grandes contribuições ao saber do homem, a geometria.


Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro. Primavera de 2014.

Descartes e o Racionalismo - Parte VIII - A época e o ideário básico.


Descartes nasceu e viveu em uma sociedade feudal, que vivia sob o jugo da nobreza e sob a absoluta influência da igreja católica, baseada exclusiva-mente nas teses que Aristóteles legou ao mundo e que foram resgatas pelos Filósofos escolásticos – com destaque para Santo Agostinho, prócer dessa tendência.

Completando esse quadro desfavorável, a sua existência foi marcada pelas guerras religiosas entre Católicos e Protestantes – especialmente a “Guerra dos Trinta Anos” – e pela consequente inexistência de qualquer produção de saber ou de conhecimento, tanto em nível científico, quanto filosófico e/ou artístico.

Dessa sorte, sufocado por essa conjunção adversa, tão logo pôde, Descartes viajou em buscas de novas aberturas e doutras luzes e, assim, teve a oportuni-dade de conhecer vários lugares e diversas sociedades, observando suas diferentes práticas e crenças e vendo o quanto essas mesmas crenças condiciona-vam o modo de vida das pessoas.

Viu como os “costumes e as tradições” formatam a história dos povos e como são capazes de gerar os antagonismos de que resultam os mais diversos conflitos entre os indivíduos e entre os grupos sociais.

Assim sendo, não lhe restou alternativa que não fosse a de recrudescer as censuras, que já fazia des-de a adolescência, à tradição “aristotélica escolástica” que definia a ideologia dos povos. Ao atingir a maturidade, suas críticas se consolidaram e aumentou continuamente o seu repúdio à concepção de que “as coisas existem e são como são, porque pre-cisam existir dessa forma”.

Ao instituir a “dúvida” ou o “ato de duvidar” de todas as afirmativas, de todas as teses, de todas as crenças etc. ele elevou a importância que deveria ser dada ao raciocínio humano e, por extensão, ao próprio homem. Fez, de certo modo, uma bela apologia aoHumanismo que, naquela quadra, estava obscurecido pela superstição religiosa.

Contudo, o seu apelo à Lógica e à Racionalidade não significou que ele tivesse abandonado as suas convicções religiosas, já que permaneceu fiel ao Catolicismo até o fim da vida. O objeto de sua critica não era a religiosidade em si, mas o péssimo uso que dela faziam os ignorantes ou mal intencionados, que não titubeavam em utilizar a mesma apenas como um simples instrumento de dominação e de exploração.

De modo mais discreto do que aquele que futuramente seria usado pelos Iluministas, ele começou a questionar o “automatismo absoluto” que fazia do homem um mero fantoche, obediente ao que fora pré-determinado por algum demiurgo.

Tendo como objetivo central de seu ideário filosó-fico chegar à “Verdade Insofismável”, ele empre-gou o seu oposto, a “Dúvida Sistemática” para a-tingir esse fim. E foi, realmente, essa contraposição que o tornou pioneiro da Filosofia Moderna, a qual já não poderia contentar-se com tolas ilações base-adas em crendices ignotas ou sórdidas.

Esse será o assunto do próximo capítulo.


Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro. Primavera de 2014.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Descartes e o Racionalismo - Parte VII - Notas biográficas




René Descartes nasceu na localidade chamada La Haye, atualmente rebatizada com seu nome, no Distrito de Indre-et-Loire, a cerca de trezentos quilômetros da capital, Paris.

Sua mãe, Jeanne Brochard, faleceu antes que ele completasse um ano de idade e, por isso, os primeiros cuidados que recebeu foram de familiares próximos e das criadas e amas de leite, que a boa situação financeira da família permitia manter na casa.

Dessa sorte, amparado materialmente e com acesso à informação e ao Saber, René já possuía alguns conhecimentos antes mesmo da vida escolar.
Aos oito anos de idade ingressou no Colégio de Jesuítas “Royal Henry Le Grand”, na localidade de La Flèche, onde foi aluno de grandes mestres, dentre os quais merece destaque o Padre Estevão de Noel que lhe ministrou as primeiras aulas de Lógica, que, posteriormente, exerceram enorme influência em sua ideologia.

Em La Flèche permaneceu de 1604 a 1614; e, embora viesse no futuro a fazer críticas contra a sua pedagogia, calcada nos métodos de ensino dos filósofos Escolásticos, pode-se depreender de suas anotações que ali ele aprendeu valiosas lições.

Ademais, as suas insatisfações eram compensadas por alguns privilégios que os Padres lhe concediam, como, por exemplo, o direito de levantar-se quando quisesse – o que, aliás, criou-lhe o hábito de ficar meditando na cama até o horário do almoço. Além disso, as suas boas maneiras e, principalmente, a sua inteligência superior cativaram os mestres e consolidaram o apreço que eles lhe dedicaram, embora o achassem “deficiente em filosofia (sic)”.

E, realmente, apesar das boas condições gerais, ele tinha muita dificuldade em se submeter ao formato de ensino da Instituição por considerar que a sua matriz, a Filosofia Escolástica, não produzia nenhuma certeza, ao contrário da Matemática que permite a comprovação de todas as suas teses. E essa insatisfação ficou explícita na crítica que ele fez àquele modelo ensino em sua obra “O Discurso sobre o Método”. Em suas palavras:

“Não encontramos aí nenhuma coisa sobre a qual não se dispute (...). Só as Matemáticas demonstram o que afirmam (...). As Matemáticas agradavam-me, sobretudo, por causa da certeza e da evidência de seus raciocínios”.
Desse modo, sentindo crescer a insatisfação, tão logo pôde, o jovem abandonou a escola. Segundo ele:

“Assim que a idade me permitiu sair da sujeição a meus preceptores, abandonei inteiramente o estudo das letras; e resolvendo não procurar outra ciência que aquela que poderia ser encontrada em mim mesmo ou no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha juventude em viajar, em ver cortes e exércitos, conviver com pessoas de diversos temperamentos e condições”.
Porém, antes de encerrar definitivamente os seus estudos regulares, ele ainda cursou Direito na Universidade de Poitiers, onde se graduou em 1616, embora jamais tenha exercido a advocacia, preferindo correr o mundo em busca de sabedoria.

Mas, antes de se aventurar, o jovem passou uma prazerosa temporada de férias com a família, desfrutando de elitistas lazeres como a equitação, a esgrima, os banquetes, as festas etc. Nessa época, aliás, escreveu um pequeno livro sobre a arte dos sabres que acabou se perdendo.

Findo o delicioso descanso em Rennes, Descartes partiu para a Holanda e se alistou no exército do Príncipe Mauricio de Nassau (o mesmo que tomou a cidade de Recife, no nordeste brasileiro) onde viveu uma rotina extravagante, haja vista não aceitar receber nenhum soldo, comprar com seus recursos o seu equipamento e as suas armas e comportar-se mais como um “aluno de escola militar” de que um oficial de um exército regular.

Vivia, então, o auge de seus vinte e três anos de idade e dedicava a maior parte de seu tempo ao estudo de Matemática em companhia de seu amigo Isaac Beeckman. Foi nessa ocasião que adotou a divisa “Larvatus Prodeo”; ou seja, “Caminho Mascarado”, numa provável alusão, segundo Pierre Frederix, à sua condição de “jovem sábio disfarçado de soldado”.

Em 1619, colocou-se a serviço do Duque da Baviera, na Alemanha, e passou o inverno aquartelado às margens do rio Danúbio, gozando o conforto que a sua fortuna permitia e da tranquilidade que o período de paz proporcionava a todos.

E nesse tranquilo dolce fair nient, na noite de 10 de novembro de 1619 ele teve um sonho “profético” no qual lhe chegou “a mensagem” de que a ele caberia unificar todos os saberes por meio de uma “ciência admirável” de sua invenção (sic).

Recorte - Enquanto escrevia o último parágrafo, eu quase que pude vislumbrar o assombro do leitor (a) ao ler que o “Pai do Racionalismo” acreditava com tanto fervor em sonhos, mensagens milagrosas, profecias e quejandos; mas o fato é que ele acreditava, sim, e embora tenha aguardado até 1628 para publicar o seu primeiro escrito “Regras para a direção do espírito”, aquele sonho definiu a sua inclinação e formatou o seu ideário.
Nem os gênios escapam das contradições da vida e por isso, antes de lhe censurar é oportuno dar-lhe algum desconto, tanto pela imaturidade típica de sua idade, quanto pela religiosidade supersticiosa que a todos e a tudo impregnava naquela época. Ademais, esse paradoxo foi regiamente compensado com a consistência e validade de sua argumentação nos anos seguintes.

Nesse seu trabalho de estreia, Descartes colocou a ideia de que a unidade do espírito (da mente) humano seria capaz de inventar um método único (universal) e suficiente para esclarecer todas as dúvidas, por mais difusas e complexas que fossem.

Uma proposta eivada de misticismo, motivada muito mais pela fé irracional na capacidade do homem, de que por reflexões lógicas. Mas, como se disse, foi um deslize que lhe deve ser perdoado.
Em seguida, ele elaborou um Tratado sobre a Física, mas logo o abandonou por ter se assustado com a condenação sofrida por Galileu (Astrônomo e físico. Itália atual, 1564-1642) através da hedionda Santa Inquisição, em 1633.

Na verdade ele não precisaria temer a Igreja Catolica, pois vivendo na Holanda protestante ele estava a salvo de sua ignomia, mas a sua lealdade ao Catolicismo, embora não fosse um devoto ostensivo, levou-o a rejeitar a obra.

Em 1635, a par de seus trabalhos, o filósofo viveu uma grande alegria com o nascimento de sua filha, fruto de um romance com uma serviçal. Porém, a criança, Francine, morreu aos cinco anos de idade e, assim, o ano de 1640 ficou-lhe marcado como um período de enorme sofrimento.

Em 1637, decidiu-se a publicar três resumos de suas concepções cientificas:

a) Dióptrica
b) Os meteoros
c) A Geometria

Os três escritos receberam vários elogios pela sua qualidade excepcional, mas, de fato, o que passou à história e se celebrizou foi o prefácio da obra, o famoso “Discurso sobre o Método”, do qual falaremos adiante.
Em 1641, voltou à ribalta e publicou a obra “Meditações Metafísicas”, que para muitos é a sua obra prima.

Em 1644, publicou “Os princípios da Filosofia”, dedicando-o à princesa Elizabeth, que o considerava uma espécie de seu “diretor de consciência”. E a farta correspondência entre ambos, demonstra o quanto ele lhe influenciava de fato. Foi também nesse ano, numa breve viagem a França, que ele teve um contato casual com o embaixador francês na Suécia, Chanut, que o pôs em contato com a rainha Cristina daquele país, a qual, sua admiradora, logo o convidou para se instalar em sua corte.

Após certa hesitação, Descartes incumbiu o seu editor de publicar a obra “Tratado das Paixões”, dedicada a Isabel da Boêmia, e seguiu para o norte, chegando a Estocolmo no mês de outubro de 1649.

Antes, porém, em 1647, foi premiado pelo monarca francês com uma pensão vitalícia e iniciou o seu trabalho chamado “Descrição do Corpo Humano”. Em 1648, após uma entrevista com Frans Burman (Holanda, 1628-1679), começou a redigir “Conversa com Burman”.

Na nova pátria, lecionava Filosofia para a soberana, mas o horário que ela escolheu para as aulas, às cinco horas da madrugada, contribuiu para aumentar o sofrimento que o frio nórdico lhe causava e não demorou em que ele adoecesse de pneumonia.

Arrependido por ter vindo morar “no país dos ursos, entre rochedos e geleiras”, Descartes recusou tratar-se com os médicos locais e o avanço incontido da enfermidade culminou em sua morte no dia 09 (11 para alguns) de fevereiro de 1650.

Como um católico em um país protestante, foi enterrado num cemitério de crianças não batizadas, em Estocolmo.

Em 1667, seus restos mortais foram repatriados para a França e enterrados na Abadia de Sainte-Geneviève de Paris. Nesse mesmo ano a Igreja Católica colocou os seus livros no famigerado Índex das obras proibidas.

Em 1792, a “Convenção” projetou a transferência de seu túmulo para o Panthéon, ao lado de outras grandes figuras francesas, mas a mudança não se concretizou e seu esquife está na igreja de Saint-Germain-des-Prés, Paris, desde 1819.


Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro. Primavera de 2014.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Descartes e o Racionalismo - Parte VI - Preâmbulo e o índice de obras



Chama-se a René Descartes de “pai da Filosofia moderna”, “pai da Matemática e da Geometria” e de mais alguns títulos que, por si, demonstram a admiração que o filho da pequena La Haye en Touraine conquistou em todo mundo, seja entre os seus pares, seja entre o público leigo.

E, de fato, tirante algum exagero, a sua contribuição ao Saber humano foi de tal ordem que só raramente é que se encontram paralelos.

Dotado de uma inteligência poderosa, desde cedo o jovem René demonstrou seu interesse pela Matemática e pelas Ciências e, logo depois, pela Metafísica e pela Epistemologia, dois dos principais temas de Filosofia.

Ávido leitor, não tardou a conhecer a obra dos grandes mestres e durante toda a sua vida nunca escamoteou a influência que recebeu de Pensadores como Platão, Pitágoras, Aristóteles, Sexto Empírico, Pirro, Agostinho, Tomaz de Aquino, Santo Anselmo, Ockam, Francisco Sanches, Scotus, Montaigne e mais alguns.

Vigorosa influência que certamente contribuiu para a concretização de suas grandes obras como, por exemplo, “as coordenadas cartesianas”, “o método da dúvida”, “o argumento ontológico” e tantas outras, as quais, por sua vez, influenciaram diretamente a alguns dos maiores eruditos da Modernidade e até mesmo da Contemporaneidade, como Leibniz, Spinoza, Malebranche, Pascal, Locke, Husserl e até o grande mestre Imannuel Kant.

Foi deveras notável o seu trabalho revolucionário nos campos da Filosofia, das Ciências e da Matemática, na qual, além do citado esquema das “coordenadas cartesianas”, ele criou a chamada “geometria analítica”, a partir da fusão entre a álgebra e a geometria. E a mesma genialidade ele empregou no campo filosófico onde o seu célebre “cogito ergo sun” tornou-se, para muitos, a comprovação definitiva da existência, do ato de existir. Em relação às ciências, os seus feitos não foram menores, ficando famosas, por exemplo, as suas considerações sobre a circulação sanguínea.

Dessa sorte, nada mais justo que o seu nome seja incluído no rol dos maiores sábios que a humanidade produziu e que seja sempre reverenciado pela imensa legião de seus admiradores.

No próximo capítulo falaremos de sua vida e nos capítulos posteriores estenderemos nossos estudos sobre o seu ideário. Antes, porém, citaremos as suas obras:

• Regras para a direção do espírito – 1628 – obra da juventude, inacabada. Adiante voltaremos a falar sobre a mesma.

• O mundo ou Tratado da luz – 1632/1633 – a obra aborda algumas das conquistas definitivas da Física clássica, como a “lei da inércia” e a “lei da refração da luz”. Também traz as bases epistemológicas de sua rejeição aos princípios científicos oriundos do aristotelismo que vigoraram na época da Filosofia Escolástica.

• Discurso sobre o método – 1637 – sobre o assunto desse livro, discorreremos adiante com mais profundidade.

• Geometria – 1637 – idem.

• Meditações metafísicas – 1641 – idem.

• As paixões da alma – 1649 – idem.


Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro. Primavera de 2014.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

As brisas e as rendas


Em qual armário
esconderam-se as rendas
que antecipavam
a tua nudez?
De qual cama levantamos
para nunca mais tornar?
Em que brisa
voaram as nossas
almas distantes?



Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, Primavera de 2014.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Descartes e o Racionalismo - Os Tipos de Razão Filosófica



Descartes e o Racionalismo -
os Tipos de Razão Filosóficas.

Completando as considerações sobre a Razão, veremos a seguir as principais modalidades de “Razão” filosófica, pois ao se falar de Razão também se busca especificar a sua classe, o seu gênero, a sua forma, o seu modo etc. para que o sentido que lhe é dado não se confunda com outros significados. A lista de classificações possíveis é extensa e nem todos os adjetivos que a definem pressupõe o mesmo conceito, pois em alguns a “Razão” é entendida como uma faculdade mental; em outros, como um conceito; noutros, equipara-se “Razão” e “Intelecto” e há, ainda, os casos em que a Razão é usada como a comprovação ou a explicação de algo.

Nesse Ensaio evitaremos a prolixidade, concentrando nossa atenção naqueles tipos que os eruditos consideram os principais. A saber:

Razão Abstrata – A que utiliza apenas os chamados “objetos abstratos” como os matemáticos, por exemplo. Por vezes, esse tipo de Razão é criticado por quem o julga distanciado da realidade concreta, física, que eles julgam como a única possível. Con-tudo, para outros, essa censura não é válida por provir da frequente confusão que acontece entre a Razão Abstrata e a Razão Especulativa.

Razão Analítica – (ou Sistêmica ou Estrutural ou Sintéti-ca). A separação das partes de um “todo”, a classi-ficação, a análise, os estudos e as conclusões sobre as mesmas, geralmente é chamada de atividade analítica, de processo analítico etc. Porém, só se dá o nome de Razão Analítica àquela que não se limita a essa separação, a essa decomposição, e que avança no processo de analisar minuciosamente cada uma das partes, bem como na recomposição das mesmas, refazendo o “todo”. Geralmente, utiliza modelos formados por “objetos abstratos” e, por isso, tem estreita relação com a “Razão Abstrata”. Também é comum que dê muita atenção à apresentação e às formas de comprovação matemática ou lógica daquilo que racionaliza; e mesmo nos casos em que não pode utilizar os modelos lógicos ou matemáticos, emprega o máximo rigor possível para efetuar as comprovações. Com o tempo, tornou-se habitual destacar em todo processo analítico o ato de decompor as partes, ofuscando-se o processo inverso; isto é, a “recomposição” ou “síntese”, porém, ao se dar a devida importância a esse pro-cedimento chega-se à Razão Sintética e à sua capa-cidade de analisar o “todo”. E se esse “todo” apresenta-se em formato de sistema ou de estrutura, chega-se à Razão Estrutural ou à Razão Sistêmica.

Razão Concreta – (ou Dialética ou Histórica ou Narrati-va ou Vital). Para alguns Filósofos só se pode com-preender a “Realidade Concreta”, através da Razão Concreta (em oposição à “Razão Abstrata”). Contudo, esses mesmo Filósofos não são capazes de definir claramente a natureza e as propriedades desse tipo de Razão, que, aliás, pode ser formada em grande parte por descrições ou narrativas, ainda que ambas não bastem para a completa decifração da “realida-de concreta”.

Diante dessa insuficiência, alguns eruditos propõem que tais descrições ou narrativas sejam de tal forma que possam unir em um só sistema a Realidade e a Razão concreta, criando-se a chamada “Razão Nar-rativa”. É uma proposta, todavia, que não elimina o fato de se estar muito distante dos rigores da Lógica que se pressupõe para as questões da Racionalidade.

Por outro lado, a Razão Histórica e a Razão Vital mostram-se mais “racionais” e com isso acabam contribuindo para proporcionar elementos mais criteriosos. Quanto à Razão Dialética observa-se que às vezes ela é chamada de “Razão Concreta” com o claro intuito de diferenciá-la da “Razão Abstrata”.

O termo “Razão Concreta” já era utilizado pelos Filósofos Escolásticos, mas só com Hegel é que se tornou mais popular. Porém, ele não falava dela como se fosse mais um “tipo de Razão” entre ou-tros, já que a julgava como “a Razão” em sentido pleno.

Razão Crítica – esse tipo foi popularizado a partir de Kant que a usou para examinar minuciosamente (ou criticamente) a própria Razão. É a “Razão” que se examina criticamente e, portanto, critica-se a si mesma. E essa corrente de estudos, chamada de Criticismo, tornou-se uma das principais tendências filosóficas da modernidade.

Também a Razão Analítica foi chamada de “Razão Crítica”, porque a sua essência está em analisar criticamente (com minúcias) os conceitos, as expres-sões linguísticas e os símbolos, bem como o “todo” formado por essas partes. Outra que foi chamada de “Razão Crítica” é a constante nas teses desenvolvi-das por Popper, Hans Albert e outros, com o título de “Racionalismo Crítico”; e, ainda, o tipo de Razão utilizado pelos criadores da chamada “Teoria Crítica”.

Como se viu, foram vários os empregos dado ao termo “crítico” associado à Razão e essa diversida-de terminou por comprometer a clareza de seu sig-nificado preciso.

Razão Dialética – é o tipo de Razão desenvolvido por Hegel, Marx e outros pensadores. Um dos usos mais comuns da expressão “Razão Dialética” é encontrado no trabalho de Sartre que propôs e de-senvolveu uma “Crítica da Razão Dialética” – aos moldes da que foi feita por Kant – que examina criticamente (minuciosamente) o seu limite, a sua va-lidade e a sua extensão. Sartre, no entanto, não dis-pôs que o exame seja feito por uma “Razão Superi-or” ou por uma “Razão Supradialética”, pois, a seu ver, a Razão Dialética só pode ser examinada por ela mesma, haja vista a necessidade de se permitir o seu desenvolvimento em face de sua estreita vincu-lação com o movimento da história.

Para o “pai do Existencialismo contemporâneo”, a Razão Dialética não é constituída2 nem constituin-te1, sendo, em verdade, uma “Razão Constituindo-se”, já que a Dialética é, por natureza, um processo dinâmico, em constante movimento, e, por isso, qualquer racionalização feita segundo os seus parâmetros não poderia ser estática, imutável.

Ademais, por ser Dialética ela dissolve eventuais “Razões Constituídas” e constitui outras Razões em oposição àquelas no eterno ciclo de: Afirmação x Negação x Negação da Negação = nova Afirmação (tese, antítese e síntese).

Por outro lado, o filósofo Raymond Ruyer (França, 1920-1987), em sua célebre obra “Le Mythe de la Raison Dialectique”, ponderou que a Razão Dialé-tica, especialmente no sentido que lhe foi dado por Hegel, Marx e Sartre, merece ressalvas, pois, a seu ver, a mesma se origina a partir de uma ideia unila-teralista e horizontalista dos fatos.

Para ele, os defensores da Razão Dialética esque-cem que a Razão Clássica, devidamente ampliada e reformada, explica com mais eficiência as normas que regulam os fatos; e que a Razão não é uma “faculdade absoluta”, mas, apenas, a possibilidade de se esclarecer os fatos através de uma visão pano-râmica ou, em suas palavras, “através de um sobre-voo” sobre os mesmos e mediante a formação de campos matriciais ou modelos.

Assim sendo, a Razão Clássica enquanto “Razão Cientifica” seria capaz de melhor compreender o “fato recém-chegado (a novidade, em suas palavras)” e o “devir histórico”; ou seja, o perpétuo movimento do pensamento humano.
E ele conclui dizendo que, portanto, não há motivo para se introduzir a “Razão Dialética” em um cam-po de trabalho, haja vista ser a Razão Clássica, enquanto “Razão Analítica”, suficientemente capaz de executar as mesmas funções, desde que seja entendida com a necessária amplitude.

Outros eruditos também censuraram a “Razão Dialética”, porém de modo mais atenuado, como, por exemplo, Claude Lévi Strauss (Bélgica, 1908-2009) que em sua obra “La Pensée Savvage” afirma que esse tipo de Razão, especialmente no sentindo sar-treano, é apenas o resultado do exercício da “Razão Analítica”, cujo método de decompor, analisar, classificar etc. é a raiz original do embate entre a tese e antítese.

Por isso, em seu modo de ver, não há motivo para confrontar os dois tipos de Razões, já que “a opo-sição entre ambas é apenas relativa e não absolu-ta... A “Razão Dialética” é tão somente a “Razão Analítica” enquanto essa se autocorrige”. Em outros termos é possível dizer que a “Razão Dialética” e a “Razão Analítica” em marcha.

Evidencia-se, portanto, a possibilidade de se utilizar a “Razão Dialética” sem a necessidade de se abandonar por completo a “Analítica” ou a “Clássi-ca”; até porque é preciso não se esquecer de que a “Dialética” não está restrita aos formatos que lhes deram Sartre, Hegel e Marx. Aliás, no próprio Marxismo é possível encontrar formatos mais “em-píricos”, como o que estabeleceu Henri Lafèbvre (França, 1901-1991).

E para além do Pensamento Marxista, outros for-matos da “Razão Dialética” são encontrados, como, por exemplo, no ideário de Ortega y Gasset (Espa-nha, 1883-1955) que propôs um “pensar sintético e dialético”; ou seja, cada pensamento impõe o se-guinte, de modo que “o nexo entre eles é (...) mais forte que no pensamento analítico tradicional”.

Também pode ser citado como formatos diferentes da “Razão Dialética” o modelo chamado de “Empi-rismo Dialético”, de José Mora Ferrater (Espanha, 1912-1991), e o modelo desenvolvido na “Escola de Zurique”, dos quais não faremos mais comentários por apresentarem elementos já citados.

Razão Histórica – é a ideia que se faz da Razão ligada a uma noção de “consciência histórica”; ou seja, grosso modo, o processo racional que está atado ao desenrolar da história humana.

Essa ideia da Razão é bastante difusa, assumindo diversas facetas, das quais focalizaremos as que foram trabalhadas pelos Filósofos Wilhelm Dilthey (Alemanha, 1833-1911) e Ortega y Gasset. O primeiro ocupou-se principalmente do “método da Razão histórica” equiparando-o a um “método das ciências da mente (ou do espírito)”, dando-lhe uma característica mais voltada para a Epistemologia do que para a Metafísica.

Já Ortega y Gasset, trabalhou nos fundamentos, nos elementos básicos, numa “crítica da Razão Históri-ca” e ligando-a ao conceito de “Razão Vital” que veremos adiante. A “Razão Histórica” foi um tema recorrente em sua ideologia, mas aqui só nos im-porta registrar a ênfase que ele deu ao fato da mes-ma não ser apenas uma especificação da Razão Vital, até porque essa, também, é essencialmente histórica.

Alois Dempf (Alemanha, 1891-1982), por sua vez, afirmou que a “Razão Histórica” é uma das quatro formas fundamentais da Razão. A saber:

a) Razão Teórica – que se ocupa da ordem ou do ordenamento do universo.
b) Razão Prática – que se ocupa da “Lei Eter-na”; isto é, da Moral.
c) Razão Poética – que se ocupa da imagem do mundo.
d) Razão Histórica – que se ocupa das leis temporais.

Segundo ele, a “Razão Histórica” vai se desdo-brando em consonância com a marcha da evolução e, por isso, existe uma série de “idades do mundo” ou “idades mundiais”. Nesse caminhar, ao chegar ao seu apogeu, a “Razão Histórica” se constitui de uma noção de Deus, de uma noção do homem e de uma noção do mundo.

Razão Instrumental ou Funcional – ao se discorrer sobre a Racionalidade distingue-se uma “racio-nalidade dos fins” e uma “racionalidade dos mei-os”, a qual, geralmente, é chamada de “Razão Ins-trumental”.

A “Razão Instrumental” tem mais características sociológicas e éticas (em certos momentos) que Onto-lógicas (ou Metafísicas) e/ou Epistemológicas, sendo, portanto, um “saber como” e não um “saber o quê”.

Normalmente esse tipo da Razão está a serviço de outro tipo, sendo, portanto, subordinada à chamada “Razão Substantiva ou Substancial”; porém, à me-dida que a “sabedoria” que produz seja considerada apropriada ela deixa de ser considera insuficiente e subalterna.

Razão Mecânica – vários pensadores diferenciaram-na da “Razão Dialética”, sob o argumento de que enquanto essa última faz as suas análises a par-tir de um determinado conjunto ou de um “todo”; a Razão Mecânica – proveniente do “pensar mecani-cista” que pretende explicar racionalmente a reali-dade – estuda as partes daquele “todo”, bem como as articulações entre eles.

Razão Prática e Razão Teórica – o título “Razão Prática” deve ser entendido primeiramente como uma oposição ao conceito de “Razão Teórica”, a qual, como já se disse, em algumas ocasiões é chamada de “Razão Especulativa”.

Na antiguidade, Aristóteles já havia observado a diferença entre ambas ao afirmar que o “Intelecto Prático” difere do “Intelecto Teórico” em função de suas finalidades, já que o primeiro é “estimulado pelo apetite”; isto é, pelas sensações captadas (pelos Sentidos [tato, visão, audição, paladar e olfato]) das coi-sas materiais, concretas, físicas; enquanto que o “Intelecto Teórico” é estimulado pelos elementos abstratos, mentais.

Posteriormente os Filósofos Escolásticos, inclusive São Tomaz de Aquino (Itália atual, 1225-1274), tra-duziram os vocábulos “Intellectus” para “Ratio”, conservando, porém, aquela diferenciação feita pelo estagiarita. A partir daí, passaram a ser chamadas de “Ratio Practica” ou “Ratio Operativa” e a teórica de “Ratio Speculativa” ou “Ratio Scientifica”.

Segundo São Tomaz, a “Ratio Speculativa ou Sci-entifica” volta-se para o aprendizado, para a capta-ção das coisas; enquanto que a “Ratio Practica ou Operativa” além de captar as coisas também faz com elas aconteçam.

Para Lewis White Beck (Estados Unidos, 1913-1997) os Filósofos adeptos de Christian Wolff (Alemanha, 1679-1754) não usaram os mesmos termos dos Esco-lásticos, mas similarmente a eles reconheceram os elementos cognoscitivos e conativos (impulsivos) na volição. Já o filósofo Richard Burthogge (Ingla-terra, 1637-1705) foi o primeiro a usar, em 1678, a expressão “Razão Prática”, dando início a uma série de Pensadores que a incorporaram em seus ideários.

Contudo, é consensual que o mais importante e influente uso dessa expressão, depois de Aristóteles e dos escolásticos, aconteceu com o mestre alemão Imannuel Kant, por volta de 1765.

Com efeito, a expressão “Praktische Vernunft” só se tornou corrente a partir dele, havendo, inclusive, uma ruptura com a antiga concepção, já que na Filosofia Clássica o seu uso restringia-se a diferen-ciar a Razão Prática da Teórica. É certo que Kant também a utilizou por esse motivo, mas sempre com a ressalva de que não se tratava de dois tipos de Razão, mas de apenas um, com duas aplicações diferentes.

E também é certa a importantíssima ampliação que ele deu à sua abrangência ao vinculá-la com a “Ra-zão Pura”, pois, segundo ele, por exemplo, o conceito de “Liberdade” não pode ser demonstrado empiricamente (através do que os Sentidos [tato, visão, audição, paladar e olfato] captam), mas não obstante a isso ainda é possível provar que ele pertence à Vontade humana através da “Razão Prática”. Em suas palavras:
“Não só que a razão pura pode ser prática, mas que somente ela, e não a razão limitada empiricamente é indubitavelmente prática”.

Em sua obra, “Crítica da Razão Prática”, ele discor-re sobre as proposições que contém uma determi-nação da Vontade (enquanto livre escolha); sobre os conceitos – ou categorias – da liberdade e sobre os Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato), enfei-xando no livro os vários aspectos do tema.

Razão Preguiçosa – para os antigos gregos e lati-nos, a chamada “Ratio Ignava”, era um tipo de Ra-zão que consistia em suspender todo estudo e in-vestigação por considerar impossível descobrir algo que fosse desconhecido. Á época, era mesmo considerada como um sofisma (2); ou seja, um argumento válido na aparência, mas não na realidade, que é exarado com o intuito de enganar a outrem ou a si próprio.

Na Modernidade, Kant retomou o termo para de-nominar a admissão de que uma determinada inves-tigação já está concluída e que ao invés de a Razão prosseguir na busca, ela permanece em repouso.

Segundo ele, esse tipo de Razão ocorre quando são usadas “Ideias Transcendentais (as que superam, que vão além)” como se fossem “Ideias Constitutivas (que formam, que constituem) e não como “Ideias Regulado-ras”. Com isso, propõe-se um Sistema que pode ser chamado de “Filosofia dos Indolentes (sic)” cujas teses podem ser:

a) A que consiste em resolver ou pretender re-solver os problemas através de um princípio que considera os problemas como já resol-vidos.

b) A que consiste em resolver ou pretender re-solver os problemas declarando-os “falsos problemas”, “problemas aparentes” ou “pseudos problemas”;

c) A que consiste em adotar teses ou princípios exageradamente genéricos, que “explicariam tudo” porque, a rigor, não explicam nada.

d) A que consiste em fugir da realidade, consi-derando-a dura, resistente em demasia.

Razão Reta – conforme Aristóteles é a Razão que está de acordo com a sabedoria (ou com a razão) prá-tica. Nesse sentido, o termo também foi usado pelos Filósofos medievais, porém o seu sentido foi ampliado e avançou no sentido de se tornar o con-trário de “Razão Falsa” ou “Razão Perversa” etc.

Tanto o sentido estreito (conformidade com o saber prático) quanto o sentido ampliado podem aparecer em termos de “Conhecimento da realidade”, como em “matérias de Juízo”, quando, então, se mostra como aquilo que é necessário ser feito para que sejam atingidos certos fins morais.

Essa duplicidade levou, por exemplo, São Tomaz a utilizar a expressão “Recta Ratio” em variados te-mas para caracterizar a sabedoria e a virtude; en-quanto o filósofo Guilherme Ockam (Grã Bretanha, 1288-1347) a vinculava com a prudência, aumentan-do, pois, a associação da “retidão no raciocínio” com a virtude.

Para ambos e muitos outros, a “Razão Reta” é, ao cabo, aquela que permite o exercício da virtude nas questões intelectuais, artísticas e, principalmente, morais ou éticas.

A noção de “Razão Reta” foi deveras valorizada durante a Época Moderna, mormente no século XVII, quando foi atada à “Razão Natural”, ao “São (sadio) Juízo” e ao “Senso Comum”.

Contudo, alguns Pensadores, como André Rudi-ger, não aceitaram essa ligação e insistiram na dife-rença entre a “Razão Natural” e ela, de modo simi-lar ao que já ocorrera na antiguidade, quando tam-bém se afirmava que a “Razão Reta” era resultante das boas ações e intenções e não como algo que naturalmente os homens possuiriam.

Razão Vital – esse conceito foi desenvolvido por Ortega y Gasset e não deve ser visto como mais um “Tipo de Razão”, entre outros, já que, para ele: “é a própria vida como Razão”.

Esse conceito pode ser entendido de duas maneiras complementares, como veremos na sequência:

a) A “Razão Vital” é o próprio Ser (ou o existir) que necessita saber racionalmente, verda-deiramente, ao que deve se ligar.

b) Por outro lado, é como se fosse um método que permite à vida orientar-se.

Assim, a expressão “Razão Vital” não designa a Razão como sendo apenas um elemento do “reino inteligível (ie. captável pela inteligência)”, teórico ou, então, algo que é acrescido à vida. Ao contrário, é um dos componentes formadores ou constitutivos da própria vida, a qual, aliás, não poderia ser en-tendida sem ela.

Razão Seminal – segundo os Filósofos Estoicos, o Pneuma (a alma, o espírito, a mente humana) contém as sementes de todas as coisas, de sorte que tudo que aconteceu, acontece e acontecerá, esteve ou estará contido nas “Razões Seminais”. O que ocorreu, ocorre e ocorrerá é, portanto, um desdobramento, um desenvolvimento dessas “sementes”.

Por isso, pode-se dizer que essas razões também são “Razões Causais” já que são as causas (os motivos) das coisas, dos fatos. O universo e tudo que nele está contido ou que nele ocorre é determinado por suas “Razões Seminais” ou “Razões Causais”.

Essa concepção dos Estoicos foi considerada “De-terminista” ou “Fatalista” e, realmente, é adequado considerá-las como tal, desde que esse “determi-nismo” seja vinculado ao conceito “organicista”; ou seja, um “determinismo” identificado com o fata-lismo de um organismo que se desenvolve a partir de uma “semente”.

E por conta dessa adequação e dessa validade, a ideia foi parcialmente adotada por Plotino (Egito, 204-270), que, porém, discordava daqueles Filósofos por julgar que as coisas “derivam ao mesmo tempo de suas “Razões Seminais” e da matéria”; isto é, ele repelia a ideia estoica de que as coisas são exa-tamente o que eram em potência (em potencial, poten-cialmente) nas “Razões Seminais”.

Com o correr do tempo, a maioria dos Filósofos cristãos abraçou a noção das “Razões Seminais”, mas fazendo-lhe inúmeras modificações. Nessa linha, tentou-se com certa frequência adaptar o “E-volucionismo” à concepção e nesse quesito atuou firmemente o filósofo Santo Agostinho (Argélia atual, 354-430) que foi categórico ao dizer que tais “razões” seria o real motivo das criaturas serem pré-formadas por Deus no ato da Criação; do que se deduz que as coisas foram criadas de tal modo que as suas próprias evoluções já estavam previstas em suas “sementes”.

Todavia, alguns Pensadores, como Gilson (Éttiene, França, 1884-1978), consideraram a doutrina agostini-ana incapaz de explicar o surgimento de algo novo, servindo apenas para comprovar que aquilo que parece ser uma novidade, em verdade, não é. Ser-vindo, pois, apenas para confirmar a fixidez das espécies.

Durante o Renascimento e a Idade Moderna, várias teorias sobre as “Razões Seminais” foram produzi-das, sendo que algumas fizeram referência explicita às doutrinas antigas, enquanto outras se limitaram a vestir com novas túnicas aqueles mesmos elementos.
...

Assim, encerramos o capítulo dedicado aos concei-tos de Razão e de Racionalismo. Na sequência dis-correremos sobre René Descartes que foi indubitavelmente o símbolo máximo dessa tendência filosófica.


Nota do Autor 1 – Razão Constituída e Razão Constituinte são termos que para o estudioso Mentré, podem ser mais bem compreendidos se forem substituídos por: Razão Raciocinada e Razão Raciocinante. Em nosso trabalho usamos essa simplificação e declinamos das considerações doutros eruditos por julgá-las inoportunamente complexas para o presente contexto.

Nota do Autor 2 - O sofisma, em verdade, apresenta-se de várias maneiras, sendo as suas formas principais as que são chamadas de “Megárica” e a “Sofistica Clássica”. Nessas e noutras, diz-se que:

a) Não vale à pena buscar nada, porque não se sabe o que se quer, sendo, portanto, carente de sentido qualquer tentativa.
b) Todos os fatos e acontecimentos foram predeterminados e, portanto, não vale à pena fazer qualquer busca, haja vista ser impossível qualquer alteração. Acontecerá apenas o que foi prefixado.



Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro. Prima-vera de 2014

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Dissertação


Peço licença aos amáveis leitores (as) para prestar um homenagem muito especial ao meu filho, Thyago, que ontem, 08.12.2014, defendeu na ECA-USP sua dissertação de Mestrado, sendo aprovado pela unanimidade pela eminente Banca, que, também, recomendou a publicação da mesma.

Tu não imaginas, filho, o tamanho do orgulho que sinto pelo privilégio de ser teu pai.

Super beijo

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Navegar-te


Foi preciso navegar-te
para encontrar
a paz das Enseadas.
Apenas em teus mares, moça,
a maré devolve-me a alma.




Lettré, l´art et la Culture, Rio de Janeiro, Primavera de 2014.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Evoé



Evoé!

Renasceu o delírio, moça.
E as vinhas, de novo,
repõe os sonhos perdidos.
Ressurgiram as Dionisíacas.
E foram reabertas
as Sete Portas de Tebas.

Abrevies a tua volta,
pois é largo o Oceano
e crescente a saudade.
Não demores, pois o amor
reclama o teu corpo
e ressente-se de tua alma ausente.
É preciso que as Odisseias terminem
porque as Ilíadas já foram vencidas.

Andemos nas enxurradas,
pois eis que as chuvas escasseiam
e é tempo de nada perdemos.
Amemo-nos como se Afrodite
concedesse-nos a noite infinda
e saibamos dos renascimentos
na eternidade dos momentos.

Agora, é tempo da claridade
e de vivermos a nossa verdade.

Evoé!


Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro. Primavera de 2014

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Descartes e o Racionalismo - Parte IV - o Racionalismo


Descartes e o Racionalismo - Parte IV - o Racionalismo

Continuação...

E graças ao fomento dado pelo filósofo, o Racionalismo ganhou tal complexidade que logo surgiu a necessidade de se diferenciar as várias formas do mesmo. Para tanto, os estudiosos fizeram a seguinte classificação:

1. De um lado o "Racionalismo Metafísico e o Epistemológico/Gnosiológico", que predominam sobre todas as outras formas.

2. De outro lado, o Racionalismo do século XVII e o Racionalismo do século XVIII,

Afinal, como bem disse Cassirer (1874-1945, Alemanha), em sua obra “Filosofia de la Ilustración de 1943”:

“Ainda que coincidamos sistemática e objetivamente com determinadas metas da Filosofia “ilustrada” a palavra Razão perdeu para nós (a) sua simplicidade e (a) sua significação unívoca. Mal podemos empregá-la sem que visualizemos vivamente sua história e sem que estejamos constantemente dando-nos conta de quão forte foi a mudança de significado que experimentou no curso dessa história”.
E, realmente, o significado do termo Razão sofreu várias alterações durante os séculos XVII e XVIII, como veremos a seguir:

Durante os anos 1.600 (um século após a descoberta do Brasil) a palavra Razão expressava uma condição Metafísica e religiosa daquilo que lhe era objeto; ou seja, as “conclusões racionais” sobre algo, significavam a “sua essência”, aquilo que estava além das simples aparências ou fenômenos.

Desse modo, fez-se de Deus a “suprema garantia das verdades racionais” e o apoio extremo de um universo, que era, então, julgado acessível à racionalidade (sic).

É claro que este modelo de Razão estava muito longe de seus parâmetros lógico e de raciocínio, situando-se naquela classe de deturpações sofridas pelo termo.

Porém, já nos anos 1.700 a Razão passou a ser considerada uma atitude epistemológica, integrada à experiência; isto é, associava-se o processo de racionalização à experimentação feita através dos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato).

E, também, passou a ser considerada uma juíza para as questões morais e sociais, sendo “Bom” o resultado de reflexões lógicas e racionais e, “Mal”, o resultado da impulsividade, dos instintos, da irracionalidade.

Um considerável avanço na definição do Racionalismo, pois se no século anterior ele foi utilizado para “comprovar” o que não pode ser comprovado; no século XVIII o resgate de suas características originais e o reconhecimento de sua validade repôs parcialmente a sua grandeza.

Assim, com esse avanço, chegou-se ao século XIX e nele se pôde assistir à sofisticação que lhe deu Hegel (1770-1831, Alemanha), e outros, que ampliou a sua abrangência ao ponto de incluir a possibilidade de explicação da evolução e da história humana com base em seus cânones.

Contudo, apesar dos avanços, nos séculos XIX e XX ocorreram vários equívocos sobre o significado do termo Razão, principalmente pela falta de esclarecimento correto da palavra. Exemplo disso pode ser observado nos autores que se declaravam fervorosos “Empiristas” e, ainda assim, adeptos do Racionalismo, apenas por considerá-lo o oposto do Intucionismo, do Irracionalismo, do Fideísmo (fé) etc. sem qualquer consideração mais elaborada sobre as suas característica e propriedades.

Por outro lado, certos eruditos combateram-no em nome do Irracionalismo, do Fideismo, do Intucionismo etc., mas não abandonaram vários dos elementos ligados à racionalidade.

Uma terceira tendência surgida foi a dos estudiosos mais apegados à história da Filosofia que combateram o “Racionalismo Clássico” e buscaram incorporar ao “Racionalismo Moderno” um conjunto de elementos que lhe seria contrário, como, por exemplo, o “concreto (o físico, o mensurável)”, a “história cronológica” etc.

Outros Filósofos, como Husserl (1859-1938, Rep. Checa), afirmaram que o “Racionalismo Moderno” seria naturalista e objetivista, ligado, portanto, à matéria, ao concreto. Com isso, negavam que o mundo seria fundamentalmente uma obra da mente, da Razão, haja vista só ser conhecido através da “ideia” que se faz do mesmo.

Outros eruditos afirmavam que o “Racionalismo Moderno” seria exageradamente “estático”, não considerando os fatores “dinâmicos” ou “funcionais” da vida.

E várias outras críticas e propostas foram feitas, criando-se, inclusive, um chamado “Neo Raciona-lismo”, sobre o qual declinaremos de esmiuçar, de-vido a sua similaridade com os outros modelos.

De todo modo, desconsiderando-se os exageros e os equívocos, pode-se constatar que houve, e ainda existe, um consenso em não admitir o “Racionalismo Simplificado” da antiga tradição, que afirmava teses que atualmente são rejeitadas, como a do exemplo abaixo:

“Toda a realidade pode reduzir-se a certas naturezas simples, as quais são inteiramente acessíveis à análise racional clássica”.
Atualmente, esse consenso contra o “Racionalismo Clássico” abarca quase todas as tendências, que, no entanto, consideram-se seguidoras dos novos modelos de Racionalismo, dentre os quais se destaca o chamado “Racionalismo Crítico” de Popper (1902-1994, Áustria), desenvolvido por Hans Albert (02.02.1921 – Alemanha), que propõe a adoção de uma “crítica racional” em oposição à ideia da “razão total”.

***
Na sequência iniciaremos os estudos sobre Descartes, que é, sem dúvidas, o símbolo máximo do Racionalismo Moderno.


Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, Primavera de 2014.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Descartes e o Racionalismo - Parte III - o Racionalismo - continuação


Continuação
... Dentre as quais as correntes de tendência empirista que se destacavam pela virulência. Noutras, de conteúdo peripatético – e mesmo as do próprio Aristóteles – verificou-se certo equilíbrio entre o Racionalismo e o Empirismo; mas, nas de caráter puramente empirista, como a Escola de Filodemo de Gádara (c.110 AEC – Jordânia) e as Escolas Céticas a tese racionalista foi quase que completamente suprimida.

Por outro lado, em várias tendências antigas de matiz racionalista, houve certa composição, na teoria do Conhecimento, com o Intucionismo por conta da crença de que a “Razão Perfeita” equivaleria à “Intuição Completa”.

Em algumas outras, de características místicas, o Racionalismo passou a ser aceito e integrado – após breve recusa dos mais puristas – por se acreditar que os elementos místicos seriam a culminância do processo racional no quesito do Saber.

Porém, o fim do Império Romano abriu as portas para as trevas da Idade Média e um novo elemento surgiu no horizonte: o Cristianismo católico. Em pouco tempo, a nova corrente teológica filosófica assumiu a preponderância espiritual e abocanhou a maior parte do poder secular, material.

A partir de então a disputa entre “Fé” e “Razão” passou a dominar o cenário filosófico e se tornou uma obsessão encontrar algum equilíbrio entre ambas; ou, melhor ainda, encontrar uma maneira de se “comprovar racionalmente (sic)” a existência dos objetos da fé (Deus, santos, céu, inferno etc.).

Essa obsessão, amplamente patrocinada pelo Clero, já que isto consolidaria seu poder, produziu várias distorções no Racionalismo tradicional, culminando com o surgimento do chamado “Racionalismo Medieval”, cuja principal função (peço licença aos amáveis leitores para repetir um termo vulgar) era criar várias “contas de chegar”; ou seja, uma espúria e forçada adequação dos elementos racionais e lógicos, com o intuito de “comprovar (sic)” a veracidade dos atos litúrgicos e da doutrina em si. Confirmar teses e teorias que só tem alguma validade quando são mantidas no terreno da abstração, da credulidade, da fé.

E essa procura, sob o patrocínio e a coordenação do Clero, não mediu esforços para atingir seu objetivo, pois a racionalização dos dogmas “legitimava” o Poder das elites clericais e nobiliárquicas, que não pouparam meios e fundos para conseguirem o intento. Todavia, apesar das pressões psicológicas, sociais e das torturas físicas e morais, via, Santa Inquisição, o resultado das fraudes só conseguiu convencer o populacho mantido na ignorância.

Para aqueles que tinham algumas luzes, o “novo” Racionalismo era apenas uma excrescência que o tempo se incumbiria de exterminar, pois não havia como concordar com a tese de que “ser racionalista” resumia-se em admitir que toda Realidade – e principalmente a “Realidade Suprema”, ie, Deus – era “racional” por ser “completa e facilmente compreendida pela mente humana (sic)”.

Podia-se, é verdade, usar-se os princípios genuínos do Racionalismo tradicional em outras ciências; mas não na Teologia (o estudo de Deus) e, por consequência, nem nas questões decorrentes, como, por exemplo, a Ética, que são vitais para o Ser humano, enquanto Ser social.

Um triste absurdo, entre tantos outros daquele perí-odo, que só teve fim com o declínio do Catolicismo, a partir das Reformas de Lutero (Martinho – 1483-1546 – Alemanha) e de Calvino (João – 1509-1564 – França); bem como, com surgimento das chamas do Renascimento que trouxe à luz homens como Descartes.

Com efeito, o impulso dado pelo racionalista francês à visão filosófica e a enorme influência que ele exerceu sobre o Pensamento ocidental pode ser visto não só como uma luz nas trevas medievais, mas, também como um resgate das grandes Escolas Filosóficas da Antiguidade.

E tal foi a importância desse acontecimento, que não foram poucos os eruditos que passaram a considerá-lo como o “Pai” da Filosofia moderna; proclamando que ao Racionalismo estariam vinculadas todas as teses filosóficas; e que em seu ideário estava a maior tentativa de racionalizar completamente a Realidade. Exemplo dessa veneração pode ser visto, por exemplo, no Pensamento do historiador Francisco Romero (historiador contemporâneo) que tece soberbas loas ao intento cartesiano de reduzir a Realidade ao Racionalismo (ou à Idealidade).

Porém, os elogios de Romero, bem como os demais, devem ser vistos com cautela, pois nas filosofias de Descartes e doutros racionalistas, como Ma-lebranche, Spinoza, Leibniz, Wollf (Alemanha – 1679-1754) etc. existem outros elementos e não só a racionalidade. E é certo que esses grandes mestres também fizeram um trabalho esplêndido com esses outros temas, principalmente no quesito do Conhecimento.

Ademais, as teorias modernas do Racionalismo só atingiram o seu nível de complexidade e de abrangência porque os autores antigos, e mesmo alguns Filósofos medievais, já haviam aumentado o leque de possibilidades da Razão, cabendo-lhes, portanto, parte significativa nos créditos.

Contudo, é óbvio que Descartes é digno de todos os elogios e das maiores considerações, pois foi de seu intelecto superior que nasceu o mais importante incremento à arte de raciocinar.

Continua...
Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, Primavera de 2014.