quarta-feira, 30 de julho de 2014

Spinoza e o Panteísmo - Parte IV - após a expulsão.



Baruch Spinoza recebeu com aparente tranquilidade a sua exclusão, mas é certo que intimamente sofreu profundamente com a solidão, a qual se tornou mais aguda porque o seu pai, frustrado por ele não ter correspondido à expectativa de ser uma sumidade judaica, também o expulsou de casa e a sua irmã virou-lhe as costas, além de tentar ludibriá-lo* quando da divisão da pequena herança que ambos receberam.
Ademais, ainda lhe pesava o sofrimento causado pelo vazio que descrença lhe acarretou. Se ele tivesse substituído a antiga fé por outra, se tivesse abraçado outra comunidade e se por ela tivesse sido acolhido, certamente que o sofrimento seria abrandado, porém, nada disso aconteceu e com o tempo ele foi se tornando mais amargo e melancólico, sem, contudo, perder a delicadeza e a nobreza que lhe conquistaram amigos fiéis.
Embora reservado, em algumas ocasiões ele deixou transparecer a sua mágoa com os “Guardiões da Lei”, como aparece em sua obra “Ética, apêndice”, onde ele diz:

“Aqueles** que desejam descobrir as causas dos milagres e compreender as coisas da natureza como Filósofos, em vez de olhar para elas assombrados como se fossem bobos, são logo considerados hereges e ímpios, e como tal proclamados por aqueles a que a massa adora como interpretes da natureza e dos deuses. Porque esses homens sabem que, uma vez afastada a ignorância, cessaria o deslumbramento, que é o único meio pelo qual a sua autoridade é mantida”.

Assim, melindrado, Baruch viveu dias sombrios até que um acontecimento mais grave fê-lo mudar-se da cidade. Em certa noite, ao caminhar pela cidade, um fanático o atacou e as consequências só não foram mais graves graças a sua agilidade, que lhe permitiu escapar com apenas um leve ferimento a faca, no pescoço.
Abalado por mais essa violência, mudou-se para a cidade de Outerdek, passando a residir no sótão da casa de uma família de cristãos adeptos da seita Memonita. Também foi, provavelmente, a época em que mudou o seu primeiro nome, passando de Baruch para Benedictus.
Os simplórios senhorios admiravam-no e foram um importante suporte para que ele recobrasse a tranquilidade e a disposição para retomar os seus estudos e trabalhos, os quais, absorviam-no de tal modo que não era raro ele passar trancado em seu quarto por dois ou três dias, sem sair nem para fazer as refeições.
E além dessa intensa atividade intelectual, Benedictus também trabalhou como professor infantil na escola de seu antigo mestre, Van den Ende, e exercia o oficio de polidor de lentes, que aprendera na escola primaria judia, como era de praxe. Com essas rendas é que se mantinha, usando de parcimônia em seus gastos como era de sua natureza. Pode-se dizer que vivia sem fausto, mas com o conforto de que necessitava. Aliás, sobre essa rigidez de hábitos, Colerus, outro residente na casa e o autor de uma curta biografia do filósofo, conta que Spinoza dizia ser como uma serpente que morde a própria cauda, numa alusão ao fato de que nada lhe sobrava, nem faltava em seu modesto orçamento.
E foi, certamente, essa tranquilidade de que ele desfrutava na casa e na companhia de seus senhorios cristãos que o levou a acompanhá-los quando eles se mudaram para a cidade de Rhynsburg em 1660. Na nova morada ele continuou com seus trabalhos e ali escreveu uma de suas obras mais importantes, “A Ética demonstrada geometricamente”, além de fragmentos de outra, chamada “Sobre o melhoramento do intelecto”.
Porém, embora tenha terminado a redação de “A Ética” por volta de 1665, ele não fez qualquer esforço para publicá-la, pois temia que lhe acontecesse o mesmo que a Adrian Koerbagh que publicara um trabalho com ideias similares as suas e fora condenado a dez anos de prisão, onde acabou falecendo, após cumprir dezoito meses da pena.
Temeroso, pois, ele aguardou até 1675 para tentar lançar o livro e com esse objetivo ele foi para Amsterdã, mas ao chegar soube de alguns rumores e, novamente, decidiu postergar o lançamento. Sobre isso escreveu ao amigo Oldenburg fazendo as seguintes colocações:

“Espalhou-se um rumor de que seria lançado em breve um livro meu, no qual eu tentava provar que não existe Deus algum. Essa noticia, lamento acrescentar, foi aceita como verdadeira por muita gente. Certos teólogos (que provavelmente eram os autores do boato) aproveitaram-se da ocasião para apresentar um protesto contra mim junto ao príncipe e aos magistrados. (...) Tendo recebido um sinal quanto a esse estado de coisas por parte de alguns amigos dignos de confiança, que me garantiram, alem do mais, que os teólogos estavam por todo canto à minha espera, decidi adiar a tentativa de publicação até que pudesse ver rumo a situação iria tomar”.
Dessa sorte, devido aos empecilhos, Benedictus Spinoza só pôde publicar em vida dois livros, sendo o segundo, anonimamente:

1) Princípios de uma Filosofia Cartesiana – 1663.
2) Um Tratado sobre a Religião e o Estado, 1670.

A sua obra mais célebre, A Ética, só veio à luz após a sua morte, juntamente com um Tratado inacabado sobre Política e outro relativo ao Arco-Íris (focalizando os aspectos de luz, refração etc.). Também foi descoberto por Van Vloten, em 1852, um texto escrito em holandês (ao contrário dos demais que foram escritos em latim como era praxe para os textos de Filosofia e científicos), intitulado “Um breve Tratado sobre Deus e o Homem”, que se acredita fosse um esboço preparatório para a “Ética”.
E mesmo tendo essas cautelas, Spinoza não deixou de ser inscrito no famigerado Índex Expurgatorius da igreja católica, que relacionava os livros proibidos pela Santa Inquisição por atentarem (sic) contra a doutrina e contra o governo. Porém, como se tornou frequente no campo das Artes, a inclusão nessa lista espúria acabou rendendo-lhe mais popularidade e prestígio e a partir daí a obra ganhou uma enorme circulação, ainda que estivesse protegida por um falso titulo que a remetia para a categoria dos livros de Medicina ou de narrativa histórica.
E com o aumento da popularidade e dos prestigio, não tardaram a aparecer as críticas ao autor e ao seu sistema. Em um dos livros escritos para refutar-lhe, chegou-se a taxar Spinoza de: “o mais ímpio ateu que já viveu na face da Terra”. Por isso, se hoje, em pleno século XXI, o termo “ateu” ainda é sinônimo de mau caráter, perversão etc. não é difícil imaginar o quanto houve de aversão ao filosofo naquela época. E além das execrações públicas, Spinoza passou a receber várias cartas que iam das mais covardes ameaças, dos insultos mais sórdidos, até as piedosas e talvez sinceras, tentativas de reconduzi-lo “ao bom caminho”.
Porém, em paralelo às censuras, ele também recebeu muitas demonstrações de apoio, como as que lhe deram o filósofo Leibniz, as de Von Tschirnhaus, um jovem inventor e nobre alemão; as do cientista holandês Huyge e as de vários outros próceres. Alguns passaram a admirar-lhe de tal modo que ultrapassaram a barreira habitual que existe entre o autor e o leitor, como foi o caso do rico comerciante de Amsterdã chamado Simon de Uries que tentou fazê-lo ser o seu único sucessor, obrigando o filósofo a um grande esforço para demovê-lo da ideia imprópria.
Outro amigo, o Supremo Magistrado da República Holandesa, Jan de Witt, deu-lhe uma pensão vitalícia e até o rei Luis XIV propôs-lhe um rico subsidio, que foi recusado porque a sua condição era a de que o filósofo dedicasse ao monarca o seu próximo livro e Spinoza preferiu a liberdade à subvenção.
Dessa forma, criticado por muitos e amparado por vários, Spinoza decidiu, em 1665, mudar-se para a localidade de Voorburg, subúrbio de Haia e depois, em 1670, para o centro da cidade com o intuito de ficar mais perto de seus amigos e protetores.
E, de fato, nesse novo lar ele estreitou o seu relacionamento com os mesmos e, especialmente, com Jan de Witt, o qual acabou sendo assassinado, juntamente com o seu irmão, por uma turba enfurecida que os acusava de serem os responsáveis pela derrota holandesa ante as tropas francesas em 1672.
Esse linchamento causou uma profunda dor ao filósofo e ele imergiu em grave melancolia por muito tempo, mas um convite feito pelo chefe das forças francesas, o Príncipe Condé, para que fosse até o seu acampamento e ali fosse homenageado por seus admiradores franceses, restituiu-lhe um pouco da confiança na humanidade, entendendo aquele gesto como prova de que a barbárie da guerra nunca conseguiria destruir completamente o espírito humano.
Mas é claro que esse entendimento não estava ao alcance do vulgo e não foram poucas as acusações de “traição” que lhe impuseram. Todavia, tais impropérios tiveram pouca repercussão, pois era patente a sua lealdade e o seu pacifismo e, desse modo, a vida prosseguiu sem grandes sobressaltos, ao contrário das agruras que certos autores quiseram dar aos seus dias, pois, afinal, ele desfrutava de relativa segurança econômica, bons e influentes amigos, um trabalho que o agradava e o reconhecimento de seus pares. Até mesmo uma Cátedra na prestigiada universidade de Heidelberg lhe foi oferecida, sendo, no entanto, recusada, pois junto ao convite estava a exigência de não tecer críticas ao sistema político e à doutrina religiosa cristã.
A sua carta de recusa é um misto de elegância e de loas à liberdade do pensamento e vale à pena transcrevê-la:

“Honrado senhor: tivesse algum dia sido minha intenção assumir as funções de professor em qualquer faculdade, meus desejos teriam sido amplamente satisfeitos ao aceitar a posição que Sua Alteza Sereníssima, o Príncipe Palatino, me faz a honra de oferecer por vosso intermédio. A oferta, ademais, cresce muito de valor, em minha opinião, pela liberdade de filosofar a ela acrescentada. (...) Mas não conheço os limites exatos dentro dos quais a referida liberdade de filosofar teria que ser mantida, a fim de que eu não parecesse interferir na religião oficial do principado. (...) Vede, portanto, honrado senhor, que não aspiro a qualquer posição terrena mais elevada do que aquela de que gozo agora; e que pelo amor à tranquilidade que penso não poder assegurar se o fizesse, devo abster-me de entrar para a carreira de professor público (...)”.
Por tudo isso, quando ele faleceu, em 20 de fevereiro de 1677, vitima de problemas respiratórios crônicos, pode-se imaginar que desfrutou de uma passagem tão serena quanto foi a maioria de seus dias. E o magnífico legado intelectual que deixou, ainda serve como sólida base para várias Escolas do Pensamento e para que o seu nome seja mantido no panteão das maiores inteligências que já habitaram esse pequeno ponto azul no universo.
Na sequência abordaremos seus argumentos e conclusões, explicitados em seus quatro livros, cuja ordem de criação será mantida, por uma questão de fidelidade ao desenvolvimento de seu pensamento.

Nota do Autor* – Baruch recorreu a Justiça e após ganhar a ação contra a irmã, doou-lhe a quantia que estava e questão.

Nota do Autor** – é difícil, ao ler esse trecho, não se pensar nos “Padres”, “Pastores”, “Bispos”, “Curandeiros” e outros charlatães que hoje infestam a sociedade e enriquecem à custa da ignorância da grande massa de oprimidos. São nestes momentos que percebemos o quão pouco evoluímos.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettre, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de RP., do Rio de Janeiro em Junho de 2014.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Cristais


Os brancos cristais
de Bergman te emolduram,
mas porque em ti
a Primavera é perene,
eu sei que os poemas
estão aquecidos.

Para a moça de Botafogo. Saudade.


Produção e divulgação de Pri Guilhen, lettre, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de Relações com o Público, Rio de Janeiro, inverno de 2014.

sábado, 26 de julho de 2014

O Tempo das Águas


É preciso beber o tempo e
sorver cada gota momento,
pois eis que se navega
todas as idades
e inexistem as barragens.

É preciso beber o tempo,
pois os portos são provisórios
e as curvas que o rio faz
não lhe alteram o destino.

É preciso beber o tempo,
pois os desertos estão à espreita
e a seca nas almas
afugenta os colibris.

É preciso beber o tempo
e embriagar-se da vida.
Aplacar toda sede
e regar todos os campos.

É preciso beber o tempo
e sentir a saciedade
do caminho andado.

E por fim, beber do tempo
a última taça
e viver a derradeira graça.

 

Produção e divulgação de Pri Guilhen, lettre, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de Relações com o Público. Rio de Janeiro, inverno de 2014.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Livres


Porque a Lua vaga sem amarras
é preciso que todo lirismo
seja libertado.

Que seja abolida
a censura das rimas
e seja decretado
o império do sentir.

Que tenhamos o peito aberto
para que os poemas se abriguem
e que as mãos sejam dadas
porque é do carinho
que nascem as poesias.

Deixemos partir o formalismo tirano
e cultivemos o canteiro das essências,
pois só nele brota o riso, o lamento
e a verdade do sentimento.


Produção e divulgação de Pat Tavares, lettre, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de Relações com o Público, Rio de Janeiro, inverno de 2014.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Spinoza e o Panteísmo - Parte III - A expulsão da comunidade


O primeiro dos vários preços que o indivíduo dotado de inteligência tem de pagar é o de viver em permanente confronto com a versão imposta – e aceita pela maioria – aos assuntos políticos, religiosos, filosóficos e outros semelhantes.
Para o homem de intelecto mediano é fácil acreditar naquilo que outrem diz ser “a verdade”, “o bom” etc., mas o mesmo não se repete com quem possui mais luzes, já que ele sempre acrescenta dúvidas pertinentes e revelações de erros crassos ao que é imposto pelas Classes dominantes, nos diversos setores. Ao indivíduo de gênio, não basta a opinião alheia, pois ele necessita chegar à “sua” verdade.
É, com efeito, um alto custo, pois, além de viver em permanente conflito, o indivíduo genial deixa de gozar do consolo e da esperança que as falsas “verdades” ofertam aos homens comuns. Ademais, ele tem que conviver com a hostilidade da maioria boçal, que não hesita em insultá-lo diretamente, taxando-o de insolente, arrogante; ou indiretamente através de zombarias primárias que buscam ridicularizar a sua sapiência. E não é raro que até o excluam de seu meio social.
Se esses obstáculos, nos dias atuais, não acarretam maiores danos ao sujeito genial, exceto pelo desconforto de ser julgado pelos inferiores e, claro, equivocadamente; em épocas passadas, a descrença ou a divergência com os dogmas, que alguns próceres se atreveram a declarar, causou-lhes graves consequências como a prisão, o exílio, a expulsão das comunidades e até mortes horrorosas nas fogueiras católicas da Santa Inquisição, nos apedrejamentos islâmicos ou nos sombrios calabouços, fuzilamentos e guilhotinas dos déspotas governantes, dentro os quais os recentes tiranos stalinistas, fascistas e nazistas.  
Assim sendo, não causa surpresa que a genialidade de Spinoza tenha sido punida pela “ousadia” de ter se insurgido contra a ortodoxia da religião.
Embora aparentasse ser um homem sereno, sabe-se que Baruch se contorcia intimamente frente a tantas incongruências, improbabilidades e até falsidades que existiam na prática religiosa e social de sua comuna. Um funesto conjunto de superstições, boçalidades, fanatismos e quejandos. E esse cesto de absurdos agastou-lhe de tal forma que a partir de certo momento ele não pôde se conter e iniciou uma série de discursos que contestavam aquela gama de impropriedades e hipocrisias.
O impacto de suas perorações não tardou a surtir efeito e ante o risco de que pudessem fomentar em larga escala o questionamento e a incredulidade entre os ouvintes, os velhos Rabinos convocaram-no para lhe repreender, sendo, contudo, debalde qualquer tentativa, haja vista que ele derrubava com espantosa facilidade os argumentos que lhe eram colocados. Aturdidos e frustrados, os Doutores da Sinagoga propuseram-lhe, então, uma substancial ajuda financeira anual para que ele ao menos fingisse ser crédulo aos seus ensinamentos, mas novamente a tentativa fracassou e ante a inflexibilidade e honestidade do filósofo, decidiram excluí-lo da Comunidade Judaica, conforme decreto de 27 de Julho de 1656, emitido pelo Conselho Eclesiástico, a ser cumprido em consonância com o antigo ritual, que Van Vloten descreveu do seguinte modo:
“Os chefes do Conselho Eclesiástico fazem saber que, já bem convencidos das nocivas opiniões e atos de Baruch Spinoza, procuraram, de diversas maneiras e por várias promessas, desviá-lo de seus caminhos desastrosos. Tendo em vista, porém, que não conseguiram fazê-lo adotar qualquer maneira melhor de pensar; que, pelo contrário, a cada dia tem mais provas das horríveis heresias por ele nutridas e confessadas, e da insolência com que essas heresias são promulgadas e difundidas, com muitas pessoas merecedoras de crédito tendo testemunhado isso na presença do citado Spinoza, este foi considerado plenamente culpado das mesmas. Por isso, realizada uma revisão de toda a questão perante os chefes do Conselho Eclesiástico, ficou resolvido, com a concordância dos Conselheiros, anatematizar o referido Spinoza, isolá-lo do povo de Israel e, a partir do presente momento, colocá-lo em anátema com a seguinte maldição:
Com o julgamento dos anjos e a sentença dos santos, nós anatematizamos, execramos, amaldiçoamos e expulsamos Baruch de Spinoza, com a concordância de toda a sacra comunidade, na presença dos livros sagrados com os 613 preceitos neles contidos, pronunciando contra ele a maldição com a qual Elisha* amaldiçoou as crianças e todas as maldiçoes escritas no Livro da Lei. Que ele seja maldito durante o dia, e maldito à noite; que seja maldito deitado, e maldito ao se levantar; maldito ao sair, e maldito ao entrar. Que o Senhor nunca mais o perdoe ou o reconheça; que a ira e a indignação do Senhor queimem daqui por diante contra esse homem, carreguem-no de todas as maldições escritas no Livro da Lei e apaguem seu nome sob o céu; que o Senhor o afaste de todas as tribos de Israel, coloque sobre ele todas as maldiçoes do firmamento contidas no Livro da Lei; e que todos vós que fordes obedientes ao Senhor vosso Deus sejais salvos nesta data.
Ficam, portanto, todos advertidos de que ninguém deverá conversar com ele, ninguém deverá comunicar-se com ele por escrito; que ninguém lhe preste qualquer serviço, ninguém resida sob o mesmo teto que ele, ninguém se aproxime dele mais de quatro côvados e que ninguém leia qualquer documento ditado pó ele ou escrito por sua mão. (...) durante a leitura do castigo, ouvia-se de vez em quando a lamurienta e demorada nota de uma grande trompa; as luzes, vistas brilhando forte no inicio da cerimônia foram extintas uma a uma à medida que ela prosseguia, até que no final a última se apagou – típica da extinção da vida espiritual do homem excomungado – e a congregação ficou em completa escuridão”.
Observa-se no texto acima a citação à “maldição de Elisha” que consta no Antigo Testamento cristão ou Torá israelita. Será oportuna uma palavra sobre a mesma para bem ilustrar sobre o quê Spinoza se rebelou:
“Elisha (ou Elias), certo dia, percebeu que um grupo de crianças ria e zombava de sua calva. Irritado, ele as amaldiçoou e clamou pela ajuda divina, que se materializou sob a forma de um urso selvagem que devorou os pequenos”.
É claro que os textos bíblicos não devem ser interpretados literalmente, pois são essencialmente simbólicos, mas esse simbolismo não era explicado pelos Rabinos que preferiam manter a versão literal para que com isso pudessem aterrorizar as pessoas ignorantes, tornando-as mais dóceis ao seu jugo. Comportamento, aliás, que ainda hoje é utilizado em várias ocasiões por pastores, padres, rabinos e outros.
Era, pois, precisamente contra essa manipulação sórdida e covarde que se rebelou o filósofo e não contra a religião em si.
Mas os Rabinos que o julgaram não consideravam que agiam errados, pois argumentavam que sem uma pátria, um idioma comum, a única coisa que mantinha os laços entre os judeus era a sua Religião e, portanto, qualquer um pudesse representar a mais tênue ameaça contra ela deveria ser expurgado imediatamente. Além disso, argumentavam que as perorações de Spinoza não atingiam apenas ao Judaísmo, mas também ao Cristianismo e isso poderia indispor os generosos holandeses contra a comunidade. Como explicar-lhes as ponderações de Uriel Costa e, depois, as de Baruch Spinoza que propunham abertamente teses que lançavam dúvidas sobre uma Crença que havia custado guerras e outras tantas dificuldades?
Aqui, sem a intenção de advogar ao diabo, será preciso dar-lhes algum crédito, pois como se viu e como é sabido, a hostilidade contra os hebreus era quase que geral e seria uma temeridade perder o único porto que lhes oferecera algum abrigo.
Porém, a marcha do pensamento não pode ser interrompida e dessa sorte Spinoza deixou de pertencer a um só povo e se tornou um patrimônio intelectual de toda a humanidade. Um gênio a serviço da verdade, como bem demonstram os próximos capítulos.


Produção e divulgação de Pat Tavares, lettre, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de RP., do Rio de Janeiro em Junho de 2014.

Spinoza e o Panteísmo - Parte II - A Formação do jovem Baruch



Embora fosse filho de um próspero comerciante, o jovem Baruch nunca demonstrou interesse pelos negócios paternos, passando a maior parte de seu tempo na Sinagoga absorvendo histórias como a do suicida Uriel e as de muitos outros próceres de seu povo. A saga dos judeus o fascinava e lhe impregnou a alma de tal modo que mesmo quando foi expulso da comunidade, ele nunca deixou de se sentir hebreu.
E essa fascinação era alimentada por seus estudos quase obsessivos, que, iluminados por sua inteligência superior, logo o tornaram uma referência, sendo comumente apontado como uma futura luz para a fé e para a administração da religião.
Em pouco tempo ultrapassou as questões bíblicas e se iniciou nos assuntos mais complexos do Talmude e dos textos filosóficos de MAIMÔNIDES, LEVI BEN GERSON, IBN EZRA, HASDAI CRESCAS e do misticismo filosófico desenvolvido por IBN GEBIROL e dos estudos cabalísticos de MOISES DE CÓRDOBA, de quem recebeu a vigorosa influência da tese relativa à igualdade ou identificação entre Deus e o universo. Também lhe impressionaram a ideia de BEN GERSON acerca da “eternidade do mundo”; e, principalmente, a de HASDAI CRESCAS sobre o fato de “o mundo material ser o corpo de Deus”. Em relação a MAIMÔNIDES, chamou-lhe a atenção a convergência do mesmo à tese do filósofo árabe AVICENA que afirmava ser impessoal a imortalidade; ou seja, existente apenas na espécie, mas não no indivíduo.
Esse conjunto de novas ideias afastou-o progressivamente da doutrina judaica ortodoxa, compilada na Torá, ou Pentateuco; isto é, os cinco primeiros livros que formam o chamado Antigo Testamento dos cristãos.
As contradições e improbabilidades ali contidas e quem nem os seus estudos sobre as explicações tentadas por MAIMÔNIDES e IBN EZRA elucidavam, levaram-no, por fim, a abandonar aquela trilha por completo, pois quanto mais estudava, mais as dúvidas substituíam as certezas.
A partir daí, sua curiosidade voltou-se para os Pensadores cristãos e para as suas teorias sobre Deus e o destino do homem. Com o holandês VAN den ENDE iniciou seus estudos de Latim e com isso galgou novos degraus na escada do conhecimento.
O professor ENDE tinha traços de herege e era um severo censor das crenças e dos governos e como, em certo momento, deixara a sua biblioteca para viver as aventuras do mundo, acumulou uma enorme riqueza de experiências e de saberes, que o tornaram quase que um ente divino aos olhos do discípulo. Ademais, o mestre tinha uma linda filha que também participava das aulas e isso, certamente, foi um incentivo a mais para que o jovem Baruch em pouco tempo se formasse com distinção na matéria.
Assim, embora o romance com a filha do professor não tenha prosperado, ele aprendeu corretamente o idioma e graças ao mesmo teve acesso aos Saberes de Sócrates, Platão e Aristóteles, além dos sistemas propostos pelos chamados “pré-socráticos”, especialmente Leucipo e Demócrito que o fascinaram com a tese atomista. Também estudou os Estoicos que lhe deixaram marcas perenes; e os Escolásticos que lhe impressionaram vigorosamente, sobretudo pela terminologia que criaram e pelo método que empregavam para expor as suas teorias, o qual se dividia em axiomas, definição, proposição, prova, escólio e corolário.
E logo após essa imersão na Filosofia Clássica, Baruch dedicou-se a estudar o genial Giordano Bruno (1548-1600) cujas teses heterodoxas o deslumbraram, tanto quanto a inteligência e a honestidade de princípios do filósofo, que pagou por ambos o preço máximo de ser queimado vivo pela Santa Inquisição.
Em Bruno, ele descobriu a tese da “Unidade”, que, posteriormente, seria uma das colunas de seu sistema. Aprendeu, pois, que toda Realidade é UNA em substância (ou essência) e em Causa (ou origem); e que Deus e essa Realidade são uma coisa só. Pode-se dizer, por isso, que com Giordano Bruno ele descobriu o Panteísmo.
Com efeito, para Bruno, a mente e a matéria são Unas; toda partícula da Realidade é composta inseparavelmente do físico e do psíquico e, por isso, o objetivo da Filosofia seria perceber que existe “unidade” em toda “diversidade” e encontrar a síntese na qual esses elementos opostos se encontrem harmoniosamente.
Na sequência, após Giordano, Spinoza dirigiu a sua atenção para o Racionalismo do chamado “Pai da tradição idealista e subjetiva (ou individual)”, o francês Renê Descartes (1596-1650), que acabou se tornando quem mais o influenciou.
A teoria central de Descartes consiste em dar primazia à Consciência; ou seja, ao fato de que a Mente conhece a si mesma de forma mais imediata e diretamente do que jamais poderá conhecer a qualquer outra coisa, já que o “mundo externo” só lhe chega através da Sensação que as coisas lhe causam e da Percepção ou Ideia que ela cria das mesmas. Assim sendo, a Filosofia, para Descartes, deve começar pela Mente, pelo “Eu” individual, conforme expressa a célebre sentença:
Cogito, ergo, sum – Penso, logo, existo.
A sua teoria ensejou o inicio da Epistemologia, uma tradição filosófica riquíssima que conta em seus quadros com homens como Kant, Locke, Leibniz, Berkeley, Hume etc., que a partir da priorização do individualismo partiram para as análises epistemológicas, buscando conhecer e mensurar a origem, a natureza e a validade do Conhecimento.
Spinoza, porém, não se interessou por esse prisma do Pensamento cartesiano, haja vista que lhe atraia, sobretudo, o ideário relativo à “Substância homogênea” subjacente em todas as formas de matéria; e a “Substância homogênea” subjacente em todas as coisas da Mente.
Seu interesse estava voltado efetivamente para a tese relativa à existência de uma “Essência comum” para as coisas materiais e outra “Essência comum” para as coisas abstratas, mentais, anímicas, psíquicas etc.
Uma dualidade que, a rigor, contrariava o seu anterior apego à ideia de “unidade”, porém, ao invés de fazer dessa contradição um obstáculo, ele o tornou um estímulo para que engendrasse variáveis em seu sistema original; pois, embutido no principio cartesiano, estava a concepção de se explicar o “Mundo Inteiro”, com a exceção de Deus e da Alma, através das Leis mecânicas e matemáticas.
Aqui, porém, devemos abrir um parêntese para observarmos que essa noção não era original de Descartes, vez que remontava a Leonardo da Vinci e Galileu Galilei. Contudo, deve-se ao francês o resgate da ideia de Anaxágoras e de Aristóteles de ter havido um “impulso primeiro”, dado por Deus, para que a “maquinaria” continuasse a funcionar perpetuamente de acordo com as referidas Leis matemáticas e mecânicas. Cabe-lhe, portanto, o crédito de ter atualizado o pensamento de que todos os processos materiais (da queda de uma folha ao movimento de rotação do planeta) podem ser explicados a partir da existência de uma “Substância homogênea* e pelo fato de eles ocorrerem automaticamente, segundo as instruções emanadas pelas Leis naturais, como a Lei da Gravidade, por exemplo. Ademais, desse modo, segundo ele, comprovava-se que o mundo, o universo, os objetos e os corpos físicos são “máquinas”; e que para além do concreto, do material, existe Deus, enquanto que no interior dos corpos humanos existe a Alma**.
Destarte, com a aquisição desse cabedal de conhecimentos, Spinoza prosseguiu em seu trabalho, do qual falaremos com mais minúcias no desenrolar deste Ensaio.

Nota do Autor – Substância homogênea* que, em principio, existe em um formato desintegrado, a chamada “hipótese nebular”, de Laplace e de Kant.

Nota do Autor – Descartes não admitia a existência de Alma** nos animais, vindo daí a sua afirmativa de que esses Seres não passariam de autômatos.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettre, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de RP., do Rio de Janeiro em Junho de 2014. 

terça-feira, 22 de julho de 2014

A Maria do Crack


Maria Louca da Central,
a doida varrida da Pedra,
acomoda sua suja figura
em qualquer figurino de Fedra,
mas sem um Trágico que lhe cante
percorre em vão o resto de memória,
em busca da própria história.
E história não há, leitor das Tragédias.
Só se sabe que corre.
Da polícia e de quem diz que a socorre.
Corre avenidas, corre ruas, corre vielas,
mas chegada não há.
Só há a fissura, só a gastura.
E a vida sem cura.

Maria Louca, Doida Varrida, foi filha noutra vida.
Nessa não.
Foi irmã, foi namorada, foi esposa e foi gente na outra vida.
Agora não.
É só recheio de camburão.
E bradam: internamento compulsório!
Pois é tempo de turista,
o nosso dono provisório.
Depois, devolvam-na às ruas,
como dizem os entendidos.
Que volte aos manos bandidos
e aterrorize os pacatos burgueses fodidos.
Mas não se desespere não,
pois Crack mata rápido,
como a dor da solidão.
Mas não se sinta culpado não.
É culpa da televisão, de Wall Street
e do ópio do Afeganistão.
Mas não chore não,
Maria Louca, Varrida da Pedra,
é só a outra face
do auri-verde pendão.


Descanse dos homens, pobre Maria.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de Relações com o Público. Rio de Janeiro, inverno de 2014.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Quadrantes


É preciso deixar-te nua,
pois o amor nos exige
livres de toda barreira.
É preciso saciar os corpos
para que a paz da ternura
visite-nos com a calma
dessa brisa de agora.
É preciso que a Lua
viaje por todos os quadrantes
e que todo depois
seja apenas o desejo de antes.
É preciso, moça da praia,
adentrar em teu corpo,
sentir a tua alma
e saber que o gozo da cama
em toda vida se esparrama.


Para a moça da praia.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettre, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de Relações com o Público. Rio de Janeiro, inverno de 2014.

sábado, 19 de julho de 2014

Tudo

 
Diz o Mestre Bandeira
"que o Luar é uma coisa só".
E como discordar do lírico profeta?
Não!
Não se discorda da pura poesia.
Mas é preciso dizer
que em toda essa unidade,
tu brilhas diferente...

Para a moça da praia. Carinho.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de Relações com o Público. Rio de Janeiro, inverno de 2014.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Rubenito Descartes

O livro estava em sua mesa. Ali o colocara pouco antes da reunião com os representantes das casas bancárias; ou seja, com os seus credores. Achou oportuno aparentar cultura, embora desconfiasse que a cultura fosse igual a nada, pois tinha chegado aos cinquenta e um anos de idade sem tomar conhecimento de absolutamente nada que não estivesse contido dentro de seu império: A fábrica (ou melhor, a INDÚSTRIA, ouviu bem?) de móveis que herdara de seu pai, o qual, também, era metido a ser intelectual e que, por isso, dera-lhe o nome de Rubenito Descartes, em homenagem ao filósofo de quem lera e decorara a célebre frase: "Cogito, ergo sum".
É verdade que o velho não entendia Latim e mesmo que entendesse, provavelmente, nunca compreenderia o significado daquela sentença, pois para ele o que efetivamente afirmava a existência não era a dúvida, mas sim o ato de acumular dinheiro. Todavia, o “Cogito” de Descartes foi-lhe útil para impressionar as amantes que comprava e que entendiam “cogito” como “agito” em função do sotaque árabe do velho Felinto, que, aliás, imaginava ser o suprassumo da erudição apresentar-se do seguinte modo: eu sou Felinto, de sobrenome Maronita.
Rubenito nasceu e sempre viveu em Valdiso. Um lugar a noroeste da capital do Estado e cujas características (ou tormentos?) principais são: a poeira vermelha, o calor que nunca é menor que 40° graus e a falta de vegetação – são árvores tão retorcidas, quanto as vidas que ali insistem. Uma terra árida, bruta e cruel. E que, por isso, produz milhares de “Rubenitos”. Gente inculta, iletrada, mal educada e rude. Lugar onde a sensibilidade cede lugar ao instinto puro e onde impera a mais perfeita amostra do que os sociólogos ou antropólogos chamam de “sociedade em estado primitivo”. Conhecer-lhe é a maneira mais eficaz de ver que Rousseau estava errado, pois não existe o “bom selvagem”.
Foi ali que viveu o velho Felinto, de sobrenome Maronita. E foi ali que nasceu o filho e, depois, herdeiro e, depois, Presidente-superintendente e “chefe de minha gerente de vendas”, Rubenito. Em meio século foi isto que viveu: era espancado pelo pai com um desses metros de madeira, mas em compensação podia berrar com os seus empregados, xingar a mãe de parasita, ludibriar os irmãos na partilha da herança (um cena dantesca, diriam os autores clássicos) e desfrutar da fidelidade e da meiguice de sua santa esposa.
Aliás, a pobrezinha, em função de sua meiguice e do amor ao próximo era constantemente atormentada e sofria graves crises de “depressão”. Bendita palavra. Ela lera nas revistas sobre as celebridades da televisão que elas padeciam desse mal e, então, para ficar próxima do sofrimento delas e ser chique, transformava tudo em “depressão”, cuja cura demandaria “ajuda profissional”. E só por isso, ela buscava consolo em seitas de autoajuda, na literatura edificante dos manuais de astrologia, que devorava juntamente com sorvetes de creme holandês (que tinham “sabor de infância”) e, principalmente, em médiuns e “pais de santo” que fossem jovens e viris, sendo, aliás, uma condição "sine quae non", que fossem bem dotados, mas não necessariamente no sentido espiritual.
Embora muitas pessoas duvidem desses métodos “energizantes, telúricos, espirituais e magnéticos”, o fato é que para ela todos fizeram muito bem e além da calma interior e de lhe preencheram a alma, também lhe preencheram o ventre e, com isso, ela trouxe a esse Mundo de meu Deus, quatro rebentos que nasceram tão diferentes entre si e do “babai” que nem de longe pareciam ser filhos de Rubenito, o Imperador da Fábrica (da INDÚSTRIA, ouviu?) de Móveis.
Para Rubenito, essa diferença entre os filhos e ele pouco importava, pois logo cedo os colocou a serviço da fábrica e com isso reduziu o custo da folha de pagamento. Como nunca ouvira falar em teoria, pode-se dizer que era um “proletário empírico”. E a redução dos custos tornara-se uma obsessão para ele, posto que a venda de seus produtos caia em progressão geométrica e, no sentido inverso, mas na mesma proporção, o gasto de sua santa esposa com os terapeutas alternativos aumentava. Afinal, ela também já chegara aos cinquenta anos de idade e o encanto que tivera na juventude e que lhe garantiu atendimentos gratuitos, há muito já se fora e ela precisava, agora, pagar pelos mesmos. Um horror! Preços absurdos! Iguais aos dos Planos de Saúde que aumentam conforme a idade do cliente.
E foi esse descompasso entre a queda nas vendas e o aumento no custo do tratamento de sua Senhora, que provocou a primeira dívida de Rubenito, a qual ele quitou com uma segunda, esta com uma terceira e assim sucessivamente. Juros sobre juros. Uma bola de neve sempre crescente, até que um dos bancos pediu a sua falência, no que foi prontamente atendido por um Juiz que, desse modo, vingava-se de ter quebrado o cóccix ao sentar num sofá defeituoso da Fábrica de Móveis Primorosa, o melhor do Brasil!
Corridos os trâmites, marcou-se uma última reunião de conciliação e na hora marcada os representantes dos bancos chegaram escoltados por zelosos oficiais de Justiça e valorosos Policiais Militares. E Rubenito, abrindo a reunião, antes de qualquer outra coisa disse solenemente:

- Eu sou Rubenito, de sobrenome Maronita. "Cogito, ergo, sum". Penso, logo, existo!
Homero descreveria a gargalhada que ecoou como "o ribombar dos trovões de Zeus”. Alguns daqueles homens sisudos e graves, mas sem paletó e gravata que o calor não permitia, chegaram a urinar nas próprias calças. Afinal, um discurso como aquele, naquela hora, era o que menos se podia esperar. Por fim recuperaram a compostura e o mais velho deles, um suíço que já fora acusado de pedofilia, disse:

- Senhor Rubenito, o senhor não cumpriu os trâmites legais e ao vender algumas máquinas da fábrica o senhor tornou-se um Depositário Infiel.
Na hora recebeu o troco de Rubenito:

- Como? Depositário Infiel? Escute aqui seu gringo ordinário e papa-anjos, eu posso aceitar que você me acuse de ser Depositário porque eu não sei o que isso quer dizer, mas eu exijo, ouviu bem?, EXIJO!, que nunca mais você me acuse de ser infiel. Eu estou casado há trinta e tantos anos e tanto quanto a minha esposa, eu nunca fui infiel!
Novamente os trovões de Zeus ribombaram e a baderna tomou conta do ambiente. E Rubenito, vendo o quanto gostaram dele também gargalhou, até que uma mão fechada da gloriosa força policial o fizesse calar. Estranhou ter sido algemado e colocado num camburão. Também estranhou ter sido levado para a Delegacia e ter ficado preso numa argola afixada a dois metros do chão, o que o obrigou a ficar em pé durante as seis horas em que aguardou pela chegada do doutor delegado. Mas não disse nada. Porém, quando o doutor delegado chamou-lhe de imbecil, corno e de Depositário Infiel ele gritou:

- Não! Eu não sou infiel!
Duas bofetadas no rosto, duas cacetadas nos rins e duas joelhadas na genitália quebraram a sua resistência e meio inconsciente ouviu:

- Leve o "elemento" para os Xis!
O “Xis” seguia o padrão dos estabelecimentos de reeducação (sic) e de re-socialização (sic) de infratores. Uma cela de 40 m² e superlotada de marginais ou de excluídos (conforme o grau de “politicamente correto” que se adote, seguindo os conselhos éticos que as boas novelas nos ensinam). A parede da frente era gradeada e nas outras três ficavam expostas as obras de arte que compõe, via de regra, esses cenários. Figuras de Iemanjá, frases desarticuladas do protesto funk, marcas de sangue, de esperma. Marcas da vida e da morte. Talvez, num passado distante, aquelas paredes tivessem sido brancas. Brancas telas onde foram pintados os surrealismos de vidas surreais. Foi ali que Rubenito, que já se sentira um “coroné”, transformou-se num “filé”.
Uma semana na enfermaria e Rubenito voltou à cela e, ali, achou prudente levantar-se apenas quando soube que outro novato havia chegado e assumido seu posto no bacanal. Sentiu-se aliviado, mas ao mesmo tempo sentiu uma imensa tristeza por sua amada esposa. Como era ingênua a pobrezinha por gostar daquilo. Tão inocente a coitadinha, a sua linda pombinha...
E os dias foram passando. Lentos, escorridos. Aos poucos ele compreendeu que não podia gritar com os outros presos como fazia com seus empregados, pois na primeira vez que tentou, tomou tamanha surra que, novamente, teve que ir para a enfermaria. E também aprendeu que a fábrica já não era sua. Os malditos não lhe tomaram apenas o que era seu. Tomaram o que ele era.
Sem alternativa, acomodou-se na situação e chegou até mesmo a ficar feliz quando foi eleito o “Manager do Clean System of Water Closet”. É verdade que alguns ignorantes zombavam desse seu titulo e insistiam em lhe chamar de “Gerente da Merda” ou, então, de “Zelador do Boi”. A esses, ele fazia ouvidos moucos e com prazer continuava a sua tarefa de zelar pela higiene dos banheiros de seu novo lar.
Sentia falta apenas do velho Fabius que tinha sido o criador do “Clean System” na sua remota infância. Era um velho estranho, que vivia falando da “exploração das massas”, da “revolução do proletariado”, do “exército de reserva” e tantas outras coisas que ele, nem os outros, entendiam. Um velho magro que sofria de câncer no sistema linfático e que por culpa das quimioterapias desenvolvera uma polineuropatia periférica que o obrigava a usar uma bengala para compensar a fraqueza das pernas. Fora pouco o tempo em que ficaram presos juntos, pois o velho fora libertado por um indulto humanitário e nunca mais voltou para dar noticias, mas mesmo sendo pouco, ele usou bem a convivência e aprendeu com o outro que "A Verdade" estava atrás das Montanhas e esse mistério nunca lhe deixou em paz. Disso ele tinha saudades. Fora a sua primeira abstração.
O conformismo de Rubenito, o seu bom comportamento e o plano de reestruturação carcerária renderam-lhe algumas regalias. Já não se ocupava apenas do sanitário. Após a faxina diária era levado ao curso de alfabetização que uma Igreja Evangélica ministrava no presídio. Rubenito não era um analfabeto no sentido rigoroso do termo, pois sabia assinar o nome e fazer as quatro operações aritméticas, mas a Fonoaudióloga que prestava serviço voluntário no presídio classificou-o como disléxico e como, de fato, ele não compreendia nada do que a junção de letras significava, o seu encaminhamento à turma dos analfabetos foi providencial.
Vagarosamente, junto com os demais, ele foi aprendendo que as junções das letras formavam um som e este, por sua vez, significava um objeto. Aos poucos aprendeu que um conjunto maior de letras formava frases e que essas simbolizavam as ideias. Em proporções mínimas era a reprodução do que ocorrera com o resto da humanidade no principio dos tempos: os sons exprimem ideias, ideias simbolizam objetos e, máxima sapiência, os sons podem ser representados por letras e estas, num circular retorno, significam objetos, ideias, sensações e sentimentos.
Essa descoberta deixou-o maravilhado. Não só pelas palavras terem o poder de exprimirem ideias e sentimentos; mas, e principalmente, pelo fato das ideias e dos sentimentos existirem. Aos cinquenta e tantos anos descobriu que o mundo era muito maior do que até então tinha imaginado. O mundo não era composto apenas pela matéria, pelo dinheiro e pela necessidade cega de sobreviver.
Até entendeu o que o velho Fabius lhe disse certo dia: sim senhor, o que importava num computador não era a máquina em si, mas o que a fazia funcionar. O "Software"! Sim senhor, até falar esse palavrão ele tinha aprendido e riu de si próprio ao lembrar-se que naquela ocasião não pôde entender o motivo de uma vasilha de "Tupperware" ser importante para um computador.
Ao cabo de dois anos aprendeu, de fato, a ler e a escrever e, inchado de orgulho, recebeu o diploma do curso de alfabetização. Agora, pensou, irei continuar os estudos até compreender tudo, mas um fato atrapalhou os seus planos. Mesmo sem entender bem os termos jurídicos que a voz anasalada e burocrática da autoridade policial lhe dizia, compreendeu que estava livre. Porém, o que deveria ser motivo de alegria, na verdade, apavorou-lhe. Solto, para quê?
A sua santa esposa não pôde suportar a tragédia que se abatera sobre ela e foi morar com um dos “pais de santo” que frequentava. Um dos filhos começou por afirmar que se comunicava mediunicamente com seres extraterrestres e acabou num hospício. O outro filho montou três fábricas de estofados populares, faliu nas três tentativas e fugindo dos credores e do próprio fracasso, sumiu no mundo (dizem que se filiou a uma Igreja onde comparece aos Cultos das sextas-feiras) e a filha fez uma tatuagem no quadril e foi correr atrás do sonho de ser rica (milionária, mesmo, tia!).
Assim, solto e sozinho, perguntou-se de que lhe serviria aquela liberdade? Só depois, ele entenderia o que Sartre disse quando afirmou que “estamos condenados à liberdade”. Mas, sem opção, juntou o que era seu, ou seja, a roupa do corpo e o caderno de caligrafia e atravessou o portão do Presídio. Após aqueles anos sentiu que o sol de Valdiso feria-lhe a vista e que a indiferença de quem antigamente lhe bajulava, feria-lhe a alma. Contudo, apesar desses ferimentos, sentiu-se feliz por ver que agora tinha uma alma.
E como Valdiso não tem montanhas e Rubenito sabia que tinha que descobrir “A Verdade” que elas escondem, decidiu partir.
Quatro caronas e um bom trecho a pé levaram-no até Poças, a terra do velho canceroso. Ali existiam montanhas e, talvez, houvesse o quê descobrir. Exausto, dormiu sob a marquise de um grande edifício e na manhã seguinte, com relativa facilidade, leu no frontispício do prédio: Biblioteca Municipal.
Sim Senhor! Dormira, então, sob a marquise do epicentro do Saber. Olhou-se e viu que estava um lixo. Coberto por uma roupa que é “nova há três anos”, calçando sandálias de borracha, com a rala barba por fazer e com os grisalhos cabelos totalmente embaraçados, era a figura do fracasso. E foi como fracassado que perambulou pelas ruas e chegou ao sopé da montanha onde o velho fizera os exercícios da guerrilha que pretendeu tomar o poder das “Gloriosas Forças Armadas, Unas e Indivisíveis”. E ali ficou até que a escuridão da noite refletisse a de seu interior.
Então, como na noite anterior ninguém lhe jogou água e nem ameaçou queimá-lo, Rubenito voltou para frente da Biblioteca e novamente se instalou sob a marquise do Saber. Com o estômago forrado pela sopa que as entidades filantrópicas forneciam aos mais necessitados, Rubenito estranhou que o sono não chegasse. Não que ali, o chão fosse mais duro porque o clima era mais frio. Afinal, a sujeira de seu corpo era um amortecedor e um cobertor muito eficiente. O certo é que depois de muito rolar sem achar a posição ideal, Rubenito desistiu e se pôs a divagar. Imagens confusas, desconexas. Lembrou-se da mãe, a quem chamava de parasita. Do pai, que o surrava com o metro de madeira. Da irmã, que era adolescente aos sessenta anos. Tentou imaginar o que teria sido feito dos filhos; sentiu novamente a dor das traições da mulher, as quais, aliás, só tinha percebido há pouco tempo. Recordou-se de Valdiso e percebeu que Valdiso não existia. Olhou para si e entendeu que ele próprio nunca existira. E, então, chorou. Choro rasgado, cortante, dolorido. E desse choro que liquefaz as mágoas só despertou com o cassetete machucando-lhe as costelas. Rubenito estremeceu e num salto ágil colocou-se em pé, cruzou as mãos atrás das costas e respondeu:

SIM! SENHOR!
O guarda municipal ajeitou os óculos escuros que usava mesmo à noite e lhe ordenou:

- Documentos!
- Pois não, SENHOR!

O jeito daquele “elemento” falar “SENHOR” indicou ao agente da força policial que ele era, ou melhor, tinha sido um “milico”. Sim senhor, um irmão de armas! A certeza dessa ex-condição impediu que ele imaginasse que o “elemento” fosse um ex-presidiário e, também, serviu para que ele – apesar de manter a autoridade policial – tratasse o “irmão de armas” de maneira quase fraternal.

- Qual é o seu nome?
- Rubenito Descartes, SENHOR! Igual ao filósofo, SENHOR!
- De onde você é?
- SENHOR! Eu não sou...

Fatos, lugares e personagens fictícios. Qualquer semelhança com a realidade será mera coincidência.
***
Produção e divulgação de Pri Guilhen, lettré l´art et la culture, assessora de Imprensa e de Relações com o Público. Rio de Janeiro, inverno de 2014.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Schopenhauer e o Idealismo Alemão - Parte XIV - Considerações Finais


Não seria errado supor que o Pensamento de Schopenhauer, tanto por seu conjunto, quanto por partes isoladas, cause rejeição na maioria.
Também não seria equivocado pensar, que a maior causa dessa antipatia provenha do fato de que ele expõe de maneira inelutável a mais pura verdade, da qual, é óbvio, devem-se expurgar algumas circunstâncias temporais e específicas.
E a verdade nos machuca. Principalmente porque lutamos todos os minutos de nossas vidas para ocultá-la, para esquecê-la, criando para tanto uma série infinita de artifícios que nos iludem ao ponto de olvidarmos a nossa insignificância. A verdade nos machuca, pois a cada emersão, ela nos desnuda das quimeras e fantasias que tecemos na tentativa de encontrar algum sentido para a nossa existência. Machuca-nos, por mostrar que tudo que fazemos, na verdade, é apenas uma repetição do que faz Sísifo* e que somos apenas uma peça descartável dentro de uma enorme engrenagem que não conseguimos compreender.
É claro que existem bons momentos. Horas e situações felizes. Fatos agradáveis. Mas, como discordar de Schopenhauer quando ele afirma que a Vida é uma luta constante e, portanto, um sofrimento contínuo? Como negar que somos movidos pelo Eterno Querer? Que somos atormentados pelo Tédio nas vezes em que a Vontade é satisfeita?
Não! Não há como discordar.
Quando Schopenhauer trouxe à luz o seu Sistema, estava, é certo, destilando as suas frustrações pessoais, mas também estava resgatando as antigas doutrinas do Oriente, cujo cerne está na aceitação resignada de que a Vontade da natureza é muito mais poderosa que a do homem.
Resgate, aliás, que é um fenômeno recorrente na história ocidental, como se pode observar noutras ocasiões em que catástrofes naturais ou provocadas pela humanidade arrasaram qualquer “Otimismo” que vigorava no momento.
E a ressaca produzida pelas guerras napoleônicas, concretizada na enorme quantidade de mortos, feridos, inválidos e desabrigados; bem como na penúria geral, na miséria e na fome que delas também resultaram, fez o cenário adequado para que o “Pessimismo Filosófico” fosse aceito prontamente. Aquele meio ambiente devastado era a reprodução exata do animo dos homens sobreviventes.
Mas, e agora? Esse “Pessimismo” ainda se justificaria?
Afinal, vivemos a época do avanço tecnológico, da saciedade alimentar (em alguns casos até excessiva, como bem demonstram os obesos), da cura de doenças fatais, do crescimento da expectativa de vida e, até, do crescente progresso na conscientização ética com as lutas contra a homofobia, contra a misoginia, contra a discriminação étnica etc.
Porém, o “Pessimismo” ainda se justifica pelo simples fato de que o homem continua a ser o que sempre foi. Todas as mudanças citadas não foram capazes de lhes alterar a essência, pois elas só acontecem na superfície, bastando que “as câmeras de TV” deixem de filmar, para que o indivíduo volte à sua condição original.
Exemplos da continuidade do racismo são comuns; das discriminações sexuais e sociais, idem; o apego ao materialismo cresceu ao ponto de não se evitar (e talvez nem se condenar intimamente) as falcatruas que forem necessárias para se enriquecer; a desagregação comunitária e familiar é patente e vários outros exemplos demonstram à exaustão que nada foi alterado, ainda que a maquiagem tenha sido retocada.
Contudo, quando olhamos o Desejo, a Vontade com outros olhos, vemos que nele reside a força motriz que faz o homem progredir. Assim, por este prisma, somos tentados a pensar que o “Pessimismo” talvez não se justifique, pois bastaria ao homem canalizar esse poder para inverter o eixo da questão, deixando de ser escravo para se tornar o Senhor da Vontade.
E, talvez, seja esse o caminho que se abre à nossa frente. Um longo e árduo caminho, em terreno pantanoso e sem sinais indicativos do certo e do errado. Mas é preciso exercitar a esperança e acreditar no Poeta** que diz:

Caminhante, caminho não há. O caminho se faz ao caminhar.

São Paulo, 17 de Julho de 2014.

Nota do Autor – Sísifo*, condenado pelos deuses a carregar eternamente uma pesada pedra morro acima apenas para vê-la rolar no caminho de volta. Sísifo é uma representação comum da inutilidade do trabalho e da própria vida humana.

Nota do Autor - Poeta** espanho Antonio Machado (1875-1939)

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettre, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de RP., do Rio de Janeiro em Junho de 2014.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Schopenhauer e o Idealismo Alemão - Parte XIII - A Sobrevida da Espécie



A Sobrevida da Espécie
Nesse trecho Schopenhauer lança severas críticas às mulheres. Como já se disse a sua misoginia teve inicio na conturbada relação com a mãe e prosseguiu graças aos seus insucessos no campo amoroso. Obviamente que suas opiniões não encontram acolhida no autor, que por uma questão de honestidade literária decidiu mantê-las para não ferir a linha de raciocínio do filósofo. Assim sendo, conto com a compreensão das amáveis leitoras.
Vimos que a escravidão do Desejo e do Tédio pode ser vencida pelo indivíduo através dos êxtases proporcionados pela contemplação e degustação dos objetos artísticos e por algumas práticas religiosas.
Porém, essa libertação só ocorre individualmente, pessoa por pessoa, pois a Vida vai além do homem, quer por intermédio de sua própria descendência, quer pela descendência alheia. A Vida, isto é, a Vontade, pode ser vista como um sistema de infindáveis rios, cuja seca de um, logo é compensada pelo aparecimento de outro.
Portanto, como o gênero humano, no geral, poderia ser libertado? Haveria meios de se chegar a um “Nirvana” para a espécie?
Para Schopenhauer, sim!
Mas, para que houvesse; e para que a Vontade fosse aniquilada, seria preciso que a morte não fosse compensada por novos nascimentos. Seria imperioso que o indivíduo morto, não fosse substituído por outrem. Seria preciso, ao cabo, que a humanidade se abstivesse* do sexo e da reprodução que lhe é consequente.
Uma medida radical e impossível por culpa exclusiva da mulher, já que os seus encantos despertam instintos que superam qualquer racionalidade; e a geração das crias lhes garante o sustento para quando esses encantos findarem.
Segundo Schopenhauer, a juventude masculina não compreende como esses encantos são breves e maquiavelicamente utilizados e quanto lhes chega a maturidade e com ela a sabedoria, a reposição indevida já aconteceu. Os rapazes que escrevem poemas às suas Musas, dificilmente as olhariam se elas tivessem nascido dezoito anos antes.
Nas palavras de Schopenhauer, em sua obra “Ensaio sobre as Mulheres”:

“Com as moças, a Natureza parece ter tido em vista o que, na linguagem do teatro, é chamado de efeito de impacto; uma vez que durante alguns anos, ela as dota de uma abundância de beleza e é pródiga na distribuição de encantos, à custa de todo o resto da vida delas, para que durante aqueles anos elas possam captar a simpatia de algum homem a ponto de fazer com que ele se apresse a assumir o honrado dever de cuidar delas (...) enquanto viverem – um passo para o qual não pareceria haver uma justificativa suficiente, se ao menos a Razão dirigisse os pensamentos do homem. (...) Aqui, como em outra parte qualquer, a Natureza age com a economia usual; porque assim como a fêmea das formigas depois da fecundação perde as asas, que então são supérfluas, ou mais, um perigo para a atividade reprodutora, a mulher, depois de dar à luz um ou mais filhos, em geral perde a beleza; provavelmente, mesmo, por idênticas razões”.

A veneração à mulher não é natural, sendo, na verdade, apenas uma convenção oriunda do Cristianismo e do Romantismo. Porém, mesmo nessas origens, a veneração é obliqua, sendo que no primeiro caso o que se louva é a mulher virgem, intocada e, portanto, não geradora de outro individuo; e no segundo, louva-se o amor platônico, dissociado do sexo. Por isso, para o filósofo, estariam certos os orientais** que não reconhecem a igualdade entre os gêneros, tratando as mulheres como seres inferiores.
Dessa sorte e graças à manipulação feita pela Vontade, através da natureza, para o filósofo, seria quimérico acreditar em uma libertação da espécie humana. A condição natural do homem é a servidão. Somos apenas peças de uma engrenagem e é essa condição que modela o seu “Pessimismo Filosófico”, cujas cores sombrias foram depois adotadas e adaptadas por outras correntes, das quais, destaca-se o Existencialismo do século XX.
Na sequência, findando o capitulo sobre Schopenhauer, faremos uma breve reflexão de seu Pensamento.

Nota do Autor* – claro que ao exarar essa afirmativa Schopenhauer não considerou os métodos contraceptivos, os quais, em sua época, eram rudimentares e altamente ineficazes.

Nota do Autor** – é interessante notar que ainda hoje, em pleno século XXI, as mulheres orientais são tratadas dessa maneira, variando, contudo, a intensidade da discriminação nos diversos países da região.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettre, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de RP., do Rio de Janeiro em Junho de 2014.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Lamento

L

Lamenta-me o querubim,
pois sabe
da tristeza que comporta
a poesia natimorta.


Para Wesley, que hoje completaria 10 anos. Descanse da dor.


Produção e divulgação de Pat Tavares, lettre, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de Relações com o Público. Rio de Janeiro, inverno de 2014.


segunda-feira, 14 de julho de 2014

Com mais amor. Com mais orgulho.


“O Brasil merece um chute no traseiro...”- Jérôme Valcke

“O Brasil não foi uma escolha acertada...” Joseph Blatter

“O movimento Black Block se unirá ao PCC para impedir a Copa”- Manchete do jornal O Estado de São Paulo.

“Será o caos. Passaremos uma vergonha enorme”. Pessimistas de plantão e aduladores servis de estrangeiros.

Por um estranho movimento quântico no Tempo e no Espaço, seis minutos seriam repetidos continuamente por trinta dias e o horror que o time (time?) apresentou naquela tarde fatídica seria apenas mais um dos vexames que a terra de Pindorama apresentaria ao mundo. Aquela vergonhosa e humilhante tragédia seria o espelho de todo o caos que os brutos silvícolas de Vera Cruz promoveriam, pois o time (time?) e o povo do Brasil são a mesma coisa.
Ou não?
Para espanto geral, em 12 de junho, o metrô e o trem que partem da Estação da Luz com destino a Arena Corinthians funcionaram com uma precisão inacreditável e o mais estranho é que ao chegarem os torcedores encontraram um estádio pronto e em perfeito funcionamento. Até o time (time?) ganhou naquele dia, embora, todos disseram, graças a um pênalti roubado; fato que lhe custaria muito caro, como prometeram os próceres da FIFA, tão logo eles acabaram de se desculpar pelas suas falhas no tocante ao serviço de alimentação.
Mas o espanto pela perfeição ocorrida logo findaria, todos profetizaram, pois o pandemônio nos aeroportos se incumbiria de mostrar que o Brasil não passa mesmo de uma “Republica de bananas (insisto no de)”. Ademais, os protestos comunistas ou fascistas (talvez Kardecista, umbandistas, sabe-se lá) e a delinquência descontrolada explodiriam e milhares de turistas seriam roubados, estuprados e assassinados. Assim eles veriam como a FIFA e as suas embaixadas e as suas imprensas tinham razão ao alertá-los sobre o perigo de virem ao país dos mestiços.
Contudo, o movimento quântico que fora previsto e as próprias profecias, não se sabe por que, não aconteceram e os malditos trens, metrôs, hotéis, aeroportos, estádios e policiamentos funcionaram admiravelmente bem. Tudo tão bom, que ficou difícil convencer aos turistas sobre os riscos que eles corriam, pois aonde iam era calorosa e educadamente recebidos em amistosa e pacífica convivência com os nativos mulatos e com os turistas de outras nacionalidades. Pacífica e tolerante convivência até mesmo com os mal-educados bárbaros, que estando na casa alheia não hesitavam em provocar os anfitriões com seus berros de “Su Papá” e com a sua incivilidade patente.
E o diabo é que esse conjunto de positividades foi se avolumando de tal maneira, que transbordou das arquibancadas e chegou aos campos, onde os craques se viram na obrigação de retribuir e com isso o que se viu foram muitos gols, jogadas maravilhosas, partidas eletrizantes e, principalmente, o inesquecível espetáculo de um estádio lotado cantando o hino do país anfitrião de forma tão apaixonada e vibrante, que nem o protocolo da FIFA conseguia impedir a sua completa execução. Uma exaltação de amor e de patriotismo que deixou bem claro que o Brasil é quem o faz e não quem tem a petulância de se proclamar seu dirigente. Amor e patriotismo, diga-se, que em nada diminuiu quando aquele bando de homens de chuteiras caiu na vala da vergonha e da humilhação. Novamente ficou claro que o Brasil não é representado por aquele tipo de gente, mas, é, sim, pelo operário que construiu o estádio, pelo condutor do trem da Estação da Luz, pela camareira do hotel e por todos nós que pagamos pelas obras com que recebemos os amigos que cá vieram. Enquanto o time (time?) era surrado sem piedade, emergiu o brasileiro em todo o seu esplendor. Que afundassem os jogadores (jogadores?), que afundassem os ditos técnicos (técnicos?), pois eles não arrastariam os brasileiros, já que no buraco em que caíram, não cabe o Brasil.
E o espetáculo continuou de modo tão bonito, que ontem, 13 de julho, os deuses do futebol fizeram da Alemanha a grande campeã. Aos seus torcedores, juntaram-se os brasileiros, pois era a hora de lhes agradecer pela educação e pelo respeito com que sempre nos trataram; principalmente, após terem goleado aquele bando que indevidamente vestiu-se com a camisa da Seleção Pentacampeã do mundo. E, generosos, quiseram os deuses que os brasileiros tivessem a doce alegria de ver “Su Papá” em sofridas lágrimas, enquanto ficam na fila com o seu único titulo (sim, porque o de 1978 foi uma tramoia tão sórdida que envergonha a todos ainda hoje). Quiseram os deuses e nós vimos o triunfo da esportividade, da civilidade, da boa educação e do respeito, numa tarde em que a beleza do Rio de Janeiro mostrou-se por inteira.
Um torneio quase perfeito, pois a perfeição só não pôde ser alcançada porque uma quadrilha de larápios estelionatários foi desbaratada pela polícia do Brasil. Mas como esses larápios, ladrões e estelionatários são diretamente vinculados à FIFA, achamos melhor não nos estendermos no assunto, pois poderia parecer indelicado dizer que os Srs Joseph Blatter e Jérôme Valcke, enquanto representantes da Entidade, são os culpados pelo único grande incidente do mundial.
É melhor apenas reafirmar que nós, brasileiros, construímos estádios esplêndidos, sistemas de transportes e de comunicações de última geração, sistemas de segurança perfeitos etc. além de recebermos fidalgamente a todos que aqui estiveram; sem perdermos a noção de que ainda há tanto a ser feito, como bem mostrou a desvinculação existente entre o povo e suas autoridades. Não restaram dúvidas de que sabemos, sim, separar o futebol, a festa, a comemoração, da política. Que sabemos mostrar o que somos realmente: brasileiros, com muito amor e com muito orgulho.

Aos brasileiros e brasileiras que fizeram a melhor de todas as Copas.


Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de Relações com o Público. Rio de Janeiro, no inverno de 2014.