quarta-feira, 29 de abril de 2015

Óperas, guia para iniciantes - PARSIFAL, Wagner - Ensaio Completo



AutoriaWagner (Wilhelm Richard – 1813-1883 – Alemanha)

Libreto – idem.

Personagens:

Parsifal Protagonista – interpretado por um Tenor.

Kundry – Interpretada por uma Soprano.

Gurnemaz – Interpretado por um Baixo.

Amfortas – interpretado por um Barítono.

Klingsor – interpretado por um Baixo.

Titurel – interpretado por um Baixo.

Cavaleiros – sem participação musical.

Escudeiros – idem

Donzelas das flores – idem

Jovens e crianças – idem.

Local e Época:
Espanha, Idade Média.
Enredo
O cenário do primeiro ato reproduz uma clareira na floresta.
Desde há muito tempo, o Santo Graal* e a Espada* do Centurião romano que feriu Cristo durante a crucificação, estavam sob a guarda de uma Ordem de Cavaleiros espanhóis, liderada por Titurel, um nobre e valente guerreiro que nunca deixou de bem desempenhar o seu papel de protetor das sacras relíquias.
Porém, o avançar da idade subtraiu-lhe a força necessária para continuar em seu posto de comando e, por isso, a liderança do grupo foi passada ao seu filho e herdeiro, Amfortas; um jovem generoso, mas impetuoso em demasia.
E justamente por ser impulsivo, de caráter ligeiramente falho e de temperamento oscilante, ele não foi fiel aos ritos prescritos e logo cedeu às tentações, o que lhe causou a perda da “espada sagrada” e uma ferida incurável, como se verá adiante.
Essa triste condição levou-o a buscar alivio em vários tipos de terapêuticas, mas os resultados foram sempre negativos. Nessa ocasião, a conselho de amigos, pediu para ser banhado em um lago próximo ao castelo, cujas águas teriam o poder de cura.
Ao chegar, e antes que se inicie qualquer rito, avista uma figura estranha, de cabelos revoltos e olhar ensandecido. Após o impacto inicial a reconhece e se acalma, pois se trata de Kundry, uma figura fabulosa que serve voluntariamente aos Cavaleiros, como se isso fosse uma penitência que devesse cumprir.
Apesar de amedrontadora aparência, ela é uma generosa amiga que sempre demonstra afeição aos guardiões do Graal, como bem demonstra a sua busca incansável por um balsamo que alivie as dores de Amfortas, mesmo que ele desdenhe dos supostos objetos milagrosos que ela lhe traz.
Apenas a profecia de que “um tolo inocente” poderá lhe curar, parece-lhe crível.
Noutro ponto, dois cavaleiros perguntam ao mais antigo dos cavaleiros, Gurnemanz, sobre a enfermidade de seus Comandantes e sobre a sua relação com Kundry.
O decano lhes conta que Amfortas impediu que Klingsor entrasse na Ordem devido à sua condição de bruxo. Então, para se vingar, o feiticeiro criou, por meio de sua magia, um bosque fronteiro ao castelo e povoado pelas mais belas e licenciosas mulheres que seduziam a todos os guerreiros, impedindo-os de exercerem as suas funções.
Indignado, Amfortas tomou a “espada sagrada” e partiu para confrontar o bruxo, mas ele próprio não resistiu às tentações e acabou sendo seduzido, dando chance para que Klingsor roubasse-lhe a espada e o ferisse com a mesma. E a chaga resultante, desde então, nunca mais cicatrizou nem deixou de doer.
Enquanto faz esse relato, Gurnemanz nota que um jovem atira uma flecha e mata um cisne em pleno voo. Irado, abandona seus ouvintes e recrimina rispidamente o rapazola, por seu ato cruel.
Em seguida, pergunta-lhe o nome e a procedência, mas o jovem nada sabe responder, revelando-se um parvo completo.
Nessa hora, como se brotasse do solo, Kundry aparece e diz que o jovem se chama Parsifal. Em seguida, põe-se a contar a história do garoto, relatando que ele é órfão, tendo o pai morrido em batalha e a mãe, pouco depois. É um pobre imbecil que vaga pelo mundo, sem eira nem beira... E mais iria dizer; mas, sente de súbito o chamado mágico de Klingsor, cuja influência nefasta a mantém aprisionada, e desaparece num arbusto sem ser percebida.
O pouco que ouviu fez com Gurnemanz passasse a olhar o jovem com certa compaixão e ele decide levá-lo ao “Oficio Solene do Santo Graal”, no castelo, com a esperança de que ele seja o “tolo ingênuo” que haverá de curar Amfortas.
E dessa forma encerra-se a primeira cena.
A segunda cena é ambientada na reprodução do castelo onde fica guardado o Santo Graal.
Sentados à mesa semicircular da comunhão, os Cavaleiros aguardam que Titurel ordene solenemente que seu filho desvele o “Cálice Sagrado”.
O ato é um momento de extremo júbilo para todos, exceto para o executante, já que aquela ação reabre a sua ferida e aumenta a sua dor; por isso ele protesta contra a ordem paterna, mas, por fim, obedece-a e o véu é retirado.
Nesse ponto, a plateia presencia um belíssimo momento de engenharia teatral, pois uma engenhosa penumbra envolve o castelo e em meio da mesma um facho de luz desce do alto do Templo e banha o Graal fazendo com que brilhe majestosamente.
Então, Amfortas, ergue o vinho e o pão rituais e os consagra para a comunhão dos Guardiões. Logo em seguida, o brilho da relíquia vai enfraquecendo e o dia volta a clarear o recinto, sendo o Santo Graal devolvido ao seu nicho.
Um sentimento de muita paz e de benção se instala e não é raro que se espalhe para o público que reage com lágrimas e soluços.
Enquanto os Cavaleiros terminam a refeição ritual, Amfortas tenta refazer-se da exaustão e do sofrimento que experimentou e, para isso, é levado em solene procissão para fora do recinto.
Gurnemanz e o jovem ficam a sós e o cavaleiro pergunta-lhe se ele compreendeu o sentido da cerimônia, mas o rapaz nada diz e se limita a colocar a mão no coração e a expressar uma enorme tristeza pelo olhar.
A resposta dúbia e silenciosa irrita o ancião, mas, enquanto ele se ajoelha para fazer uma oração, uma voz vinda do alto repete a profecia sobre o “tolo inocente” que se tornará sábio através da piedade (ie. da fé religiosa) e redimirá os Cavaleiros da aflição em que vivem.
É o fim do primeiro ato.
§§§
O cenário do segundo ato mostra o sombrio castelo do bruxo Klingsor.
No alto de uma das torres, o feiticeiro invoca Kundry, a pobre acompanhante dos Cavaleiros que não consegue libertar-se da maléfica influência do “Mestre do Mal”.
Como se estivesse sendo parida pelo chão, lentamente ela se materializa e com um grito arrepiante apresenta-se a Klingsor, que, de chofre, censura-a grosseiramente por sua devoção aos Guardiões do Graal, nos momentos em que consegue escapar de seu poder nefando. Em seguida, ordena-lhe que se transforme em uma mulher belíssima e que seduza o jovem que está sob a guarda de Gurnemanz.
Ela protesta, mas é debalde a sua argumentação, pois logo é jogada em uma espessa escuridão, da qual emergirá tão sedutora que facilmente arrebatará todos os Cavaleiros, ocasionando, assim, o fim da Ordem.
E, assim, encerra-se a primeira cena.
A segunda cena é ambientada nos jardins mágicos das “mulheres sedutoras”.
Expulso do Templo por Gurnemanz, que o julgou incapaz de compreender a cerimônia do Graal, o jovem passeia distraído pelas alamedas do parque até que um grupo de “donzelas das flores” o cerca e tenta encantá-lo. Porém, suas tentativas fracassam e, depois, cessam, quando entra em cena uma mulher muito mais bela que elas.
É Kundry, já transformada, quem chega para cumprir as ordens de Klingsor. Aborda-o suavemente e quando lhe chama de Parsifal, nota que a fisionomia do rapaz se altera visivelmente, pois do fundo de sua memória, voltam-lhe as recordações de como a sua mãe o tratava há muito tempo atrás.
Percebendo essas recordações o atingem, Kundry faz-lhe um longo relato de sua vida, contando, inclusive, que a sua mãe morreu quando o filho a deixou. Parsifal sente uma imensa culpa, mas é consolado por Kundry que se diz portadora do perdão e do carinho materno. Em seguida, beija-o, mas não de forma familiar e sim de modo sensual.
Surpreso, o jovem reage e ao invés de ceder ao apelo erótico, toma consciência de que tem uma missão a cumprir, começando por curar a ferida de Amfortas.
Kundry, atônita pela rejeição e surpreendida pela fortaleza moral do rapaz, faz várias outras tentativas, mas todas são frustradas. Por fim, ainda tenta uma última artimanha e lhe diz que quando Jesus era conduzido ao calvário, ela zombou de sua desgraça e por isso foi condenada a vagar pela Terra por toda a eternidade (o leitor (a), certamente, não deixou de perceber a similitude com a história de “O Judeu Errante”), mas que nele, Parsifal, havia encontrado, enfim, alguém que poderia absolvê-la do terrível castigo.
Ele, contudo, não lhe acredita e a repele, partindo em seguida em busca de Amfortas, pois sabe que este, sim, é o seu dever.
Kundry, sem esconder a sua decepção e raiva, amaldiçoa-o profetizando que ele nunca encontrará o caminho de volta ao castelo do Graal. Além disso, invoca Klingsor e o bruxo, de sua janela, atira contra o jovem a “Espada Sagrada”.
Todavia, por um milagre, a arma estaca ante Parsifal, permitindo que o jovem a apanhe e faça com ela o “sinal da cruz”, que destroi completamente o castelo do feiticeiro, seca o jardim das “donzelas das flores” e arremessa Kundry para dentro da terra, de onde ela lança um grito assombroso.
É o fim do segundo ato.
§§§
O terceiro ato é encenado na réplica de um bosque, nas proximidades do castelo do Graal.
Muitos anos já passaram desde a última cena em que Parsifal recuperou a “Espada Sagrada” e destruiu o reino maldito de Klingsor.
É o início da primavera e Gurnemanz, já bastante idoso, caminha em direção à cabana onde vive isolado. Segue absorto, desfrutando da beleza da nova estação e do silêncio do lugar, até que um gemido angustiado interrompe a tranquilidade de sua caminhada.
Após uma breve procura, encontra atrás de um arbusto uma velha e andrajosa mulher. Sem vacilar apressa-se em socorrê-la e vê, após algum esforço, que se trata de Kundry, totalmente diferente da bela sedutora que era desejada por todos os Cavaleiros, pois se findou o encantamento que Klingsor lhe colocara.
Reanimando-a, ele percebe comovido que a mudança não foi apenas física, pois a mansidão e placidez de seu olhar e a sublimação de sua face e de suas palavras, indicam a transformação ocorrida em sua alma. De seus lábios, ele só escuta: “meu destino é servir”.
Nesse momento, chega um cavaleiro de negra e reluzente armadura e poderosa espada. Gurnemanz pede-lhe que deixe a arma, pois ali é o “Sitio Sagrado do Santo Graal”. O cavaleiro não demora em lhe atender e enterra profundamente a espada no solo, antes de iniciar uma longa prece.
Finda a reza, ele ergue o visor de seu elmo e Gurnemanz reconhece o jovem que no passado expulsara do castelo por considerá-lo incapaz de qualquer coisa. Logo depois, reconhece que a espada enterrada é a “Sagrada” que, agora, voltava para a Ordem.
Rever o jovem e a espada estimulam Gurnemanz a falar e ele conta da morte de Titurel, dos dias terríveis que Ordem vive e de como Amfortas piorou até o ponto de nem fazer mais a “Cerimônia do Santo Graal”.
São tristes noticias que Parsifal lamenta com sinceridade. Pesa-lhe a culpa pelos longos anos que passou longe, em solitária peregrinação.
É um momento tenso no espetáculo e geralmente a plateia reage com lágrimas e comoção.
Então, o velho cavaleiro traz-lhe água de uma “Fonte Sagrada” e Kundry coloca-se aos seus pés, suplicando-lhe o perdão. O carinho de ambos e a energia a “água santa” revigoram-lhe e ele decide ir imediatamente ao castelo para assumir a direção da Ordem. Antes, porém, batiza a velha serva para que nenhum outro mal possa atacar-lhe.
Logo em seguida, os três partem ao som dos sinos que celebram a Sexta-Feira da Paixão.
É o fim da primeira cena.
A segunda cena volta a ser ambientada no interior do castelo do Graal.
A conhecida mesa semicircular já não está mais ante o altar, pois há muito tempo que a “Cerimônia Solene” deixou de ser executada. Agora, ali, serão realizados os rituais fúnebres de Titurel, para os quais Amfortas é trazido para prestar as últimas homenagens ao pai falecido.
Em vão os Cavaleiros pedem-lhe que realize a “Cerimônia do Graal”, mas a sua recusa é inflexível e ao invés do rito, ele clama à alma do pai que interceda por ele no céu, para que suas dores sejam aliviadas e seu sofrimento seja amenizado. Visivelmente perturbado, mostra a ferida incurável e implora que o matem, para espanto e consternação dos que lhe ouvem.
É um trecho da Ópera em que a dramaticidade e tensão atingem o auge e o ambiente só volta a ser ventilado com a chegada de Parsifal que lhe encosta a “Espada Sagrada” na chaga, a qual, por milagre, é curada no mesmo instante.
Surpreso e emocionado, o filho de Titurel experimenta, após tanto tempo, a ausência do cruel sofrimento. E o fim da tortura faz com que ele compreenda e se arrependa de seu comportamento volúvel no passado e dos pecados que cometeu. Sente-se, então, livre, perdoado. Foi, com efeito, uma dura lição, mas ele aprendeu a seguir o caminho correto.
Nesse momento, Parsifal coloca a espada junto ao altar e desvela o Santo Graal, repetindo-se o maravilhoso efeito de penumbra e de brilho concentrado. As luzes e sombras que a maquinaria teatral realiza, enleva e transporta o público para o cerne do drama.
Pouco depois, esse mesmo público assiste à morte pacífica e redentora de Kundry, cuja alma abençoada pelo batismo, livra-se de toda escravidão ao Mal.
Logo em seguida, uma pomba branca sobrevoa Parsifal enquanto ele ergue a Santa Relíquia e todos sabem que o vaticínio se cumpriu: o “tolo inocente” derrotou a tudo e a todos, usando apenas a piedade, a humildade e a resignação. De suas virtudes resultou o resgate da Ordem dos Cavaleiros do Santo Graal.
É o fim da Ópera e a renovação da esperança de que o Bem sempre triunfa.
Nota do Autor – segundo a tradição, a arma do Centurião, chamado Longino, não era uma espada, mas uma lança. Ainda segundo a tradição, ele teria golpeado Jesus num gesto de benevolência, já que antecipando a sua morte, poupava-o de longas e angustiantes horas de dor e sofrimento. Wagner chama a “lança” de “espada” e vice-versa sem prejuízo para a ideia original e apenas por questões de ordem teatral.
Histórico
Para criar essa obra, Wagner valeu-se de lendas medievais existentes desde os primórdios da Idade Média.
Lendas e histórias que também foram utilizadas por Chrétien de Troyes, em c. 1190, na sua obra “Percival le Gallois (o Galês)” e pelo poeta alemão Wolfram von Eschenbach, do mesmo século, em seu poema épico chamado “Parzival”.
O protagonista, Percival, em todas as versões é o “tolo inocente”, simplório, ingênuo, que graças à pureza de seu coração consegue resgatar a “Espada Sagrada” e com ela libertar a Ordem dos zeladores do Santo Graal. Posteriormente, seu filho, Lohengrin (protagonista de outra Ópera wagneriana) continua a sua saga, desde o castelo sediado em Montsalvat, Espanha.
A beleza majestosa da obra de Wagner foi reconhecida desde a sua primeira apresentação e ainda hoje continua a ser deveras apreciada; contudo, pesa-lhe um fardo incômodo, haja vista ter sido a Ópera preferida do sanguinário Hitler, que em seus delírios paranoicos equiparava-se ao herói Parsifal e se via como o “salvador da pátria e da cultura cristã germânica e europeia” contra o perigo representado pelos judeus e pelas “raças inferiores”.
Essa predileção do ditador nazista trouxe alguns percalços à obra, principalmente em razão dos preconceitos e dos juízos estúpidos daqueles que não conseguem separar a obra de arte das paranoias políticas. Felizmente tais situações são cada vez mais raras, permitindo que o deleite que a Ópera proporciona possa ser desfrutado com muito mais frequência.
Por outro lado, é necessário destacar que os variados motivos musicais em Parsifal remetem a temas bem anteriores ao modelo operístico que se produzia na época.
Wagner inclusive chamou a sua obra de uma “peça festiva ou votiva - Buhnenwihfestpiel” para diferenciá-la do que ele chamava de “drama lírico”.
Outra singularidade – talvez decorrente da intenção de torná-la diferente – foi a determinação do autor de que a obra fosse encenada apenas no teatro do “Festival de Bayreuth”, até o último dia de 1913.
Porém, felizmente, essa vontade de Wagner não foi atendida e, assim, na véspera do Natal de 1903 o Metropolitan de New York – EUA – apresentou-a em formato de concerto; e, em 1913, a Cia Italiana de teatro “Constanzi”, atual “Ópera de Roma”, encenou-a em sua totalidade no teatro “Cólon” em Buenos Aires, Argentina, e, depois, no Rio de Janeiro.
Adendo
Wagner chama de “Santo Graal” não só o tradicional cálice que teria sido usado por Jesus na “última ceia”; mas, também, o conjunto de relíquias formado pelo próprio, mais a espada – ou lança – que o teria ferido na crucificação. Além disso, também assim denomina o vaso de esmeralda que teria sido usado por José de Arimatéia para recolher o sangue do Messias, após a crucificação.
São versões que pertencem à tradição religiosa de vários povos e que o compositor utilizou em sua máxima extensão, sem se preocupar com o rigor teológico, já que a “liberdade poética” é um direito que não lhe pode ser questionado.
As relíquias, falsas ou verdadeiras, foi uma obsessão durante toda a Idade Média, possuindo um alto valor simbólico e financeiro, além de acenar com a transferência de seus poderes a quem as possuísse. Por isso eram tão disputadas, como no caso presente em que Klingsor busca com tenacidade doentia apoderar-se dos bens da Ordem.
Já a existência do personagem “ingênuo, puro e isento de pecados”, como Parsifal, representava a crença na vitória final do Bem sobre o Mal, pois o despojamento implicava na ausência de sentimentos de posse, de cobiça e de violência.
É, na verdade, um princípio que remonta ao mais antigo Hinduísmo, que, como se sabe, é a fonte de todas as outras religiões, cristãs ou não. Graças às suas excelsas virtudes e ao amparo que recebe do Deus cristão ou dos deuses hindus, africanos, indígenas etc.; o “tolo inocente” é capaz de resistir às tentações e seduções da matéria. Apenas eles vencem o “corpo físico”, como propõe a ancestral religião dos Sadus indianos.
Esse arquétipo, repetido na lenda de “Excalibur” e do Rei Artur, acabou sendo atualizado em nossa época através da genialidade de Charles Chaplin que com sua personagem “Carlitos”, encarnava o triunfo da pureza sobre a arrogância dos ricos e poderosos.

Rio de Janeiro, 29 de abril de 2015.


Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, outono de 2015

terça-feira, 28 de abril de 2015

Abujamra



Agora, é Antonio quem parte.
Vazio da santa anarquia,
ficastes, espaço, vago.
Inútil, ficastes, tempo,
pela inteligência suprimida.
E, órfãos de Abu, ficamos:
criaturas arrependidas
pelas transgressões não cometidas.
Vagos, vazios, ficamos nós.
Sós.



Homenagem pouca a Antonio Abujamra (1932-2015)



Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, outono de 2015.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

terça-feira, 21 de abril de 2015

Tiradentes


Não foram, Mestre Cazuza,
os nossos heróis que morreram.
Fomos nós.

Restaram os de sempre:

Os eternos "assumares" que se babam pelas fardas militares.
Os sórdidos populistas, de dedo falho e caráter igual,
que há tão pouco se venderam aos Doi/Codi do Mal.
Os falsos idealistas, os hipócritas moralistas,
os sórdidos milagreiros, os eternos bucaneiros
e a corja de oportunistas, que à sombra do Poder se agarra,
qual puta vivandeira de fanfarra.

E restamos nós, mortos, porque permitimos que existam.

Fostes em vão, Tiradentes!


Lettre la Art et la Culture
Enviado por Lettre la Art et la Culture em 21/04/2015

domingo, 19 de abril de 2015

O Palácio Chinês



Não é longa a ponte que me leva a Xangrilá.
Mas é disforme como a de Monet, sobre o lago dos nenúfares.
Tão logo eu a cruze, sei que estarão me aguardando o tigre branco e a pantera negra que me protegem dos demônios e me livram da tristeza.
Será bom poder acariciar-lhes e sentir-me como Zaratustra que também voava com a sua águia e rastejava com a sua serpente.
E que pairava com ambos sobre a vida dos homens que nunca se arriscam em arames estendidos...

Conta-me Yume, que as bonecas do Oriente são feitas da porcelana mais fina que há.
Talvez sejam tão finas que se parecem com almas...

Eu não a vejo, mas sinto a suavidade de seu toque e pressinto a lisa e longa noite escura de seus cabelos em minha nuca.
Sem que eu olhe, sei de seu corpo delicado como a porcelana sem matéria. E sei de seu sorriso encabulado quando digo que são lindos os brilhantes que lhe adornam os seios...

Estou sentado frente à imensa janela de vidro e engulo as generosas porções do verde que sobem da rua.
Sei que são Paineiras, Amendoeiras e alguns incertos Flamboyants.
Mas sei que são irreais. Meros espectros aprisionados no umbral do tempo antigo.
Apenas as Cerejeiras existem... 

É cálida a brisa em que desliza o sutil perfume e a delicadeza herdada das gueixas eternas.
Eternas gueixas, em seda vestidas, a conduzirem as delicadas mãos que alisam a minha face e aliviam as dores que tantos e tantas tatuaram em minha carne e alma...

Agora, o verde apagou-se com a chegada de Vésper e a noite assumiu seu mistério.
Da rua, sobe apenas a luz hesitante de um poste solitário... 

E é nessa penumbra que toco o veludo das vias que conduzem ao Palácio de Jade, enquanto abrigo a tua nudez com os últimos poemas que te fiz...

Meia-luz que nos desenha no calor de todos os desejos.
Meia-luz com que cantamos a canção do amor...

A primeira florada das Cerejeiras faz o mundo ser lilás.
E antes que a outra neve recubra os montes, os riachos riscam novos arabescos enquanto baila o Arco-Íris que o teu riso liberta... 

Eis-te florida, meu doce Jasmim do Oriente... 


Para Yume. Carinho.
Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, outono de 2015. 

sábado, 18 de abril de 2015

Óperas, guia para iniciantes - LOHENGRIN, Wagner -


AutoriaWagner (Wilhelm Richard – 1813-1883 – Alemanha)

Libreto – idem.
Personagens:

Elsa de Brabant Protagonista feminina – interpretada por uma Soprano.

Lohengrin – protagonista masculino. Interpretado por um Tenor.

Rei Henrique – Interpretado por um Baixo.

Conde Telramund – interpretado por um Barítono.

Ortrud – interpretada por uma Mezzo Soprano.

Local e Época:
Antuérpia, região de Flandres, Bélgica - século X.
Prefácio
Ao contrário doutros compositores do gênero, Wagner não delegava a outrem a elaboração dos libretos de suas óperas, pois se valia de seu talento de poeta e dramaturgo para executar a parte literária da obra e, com isso, centralizava em si toda a criação do espetáculo.
Em suas obras, Wagner mescla elementos da mitologia nórdica e germânica com o seu esplêndido poder criativo e o resultado é um enredo denso, complexo, rico em simbologia e sempre exposto em uma linguagem superior e corretíssima que em nada fica a dever ao esplendor de suas composições musicais; as quais, aliás, segundo a maioria dos entendidos, atingiram o patamar máximo em termos de beleza e de reforma estética. Para eles, a “renovação wagneriana” ensejou o renascimento do drama lírico de uma maneira totalmente distinta do que havia, até então, no mundo da Ópera.
E, realmente, a sua música é uma incentivadora, uma reguladora e uma definidora das emoções, já que são melodias que se equiparam a “personagens” capazes de despertarem os mais variados sentimentos e sensações. As vozes humanas e as instrumentais formam uma só sinfonia, ininterrupta e superlativa, capaz de atingir os mais elevados estados que o teatro lírico pode oferecer.
Ao público leigo, que não pode admirar tal maravilha de modo técnico e didático, resta o sempre abundante aplauso com que homenageia o compositor; tornando-o, desde a sua ascensão, um símbolo da grandeza alemã, idolatrado por seus compatriotas de todas as classes e saberes e, também, pelos cidadãos de outros sítios, que não lhe negam a mais sincera veneração.
Na sequência desses Ensaios dedicaremos o merecido espaço para o genial teutônico, apresentando primeiramente a Ópera presente, “Lohengrin”, depois “Parsifal” e, por último, o grande ciclo, “Anel dos Nibelungos”, constituído por O ouro do Reno (prólogo), A Valquiria, Siegfried e O Crepúsculo dos Deuses.
Enredo
O cenário inicial reproduz um local ritual de “julgamentos” ou “juramentos”, às margens do rio Scheldt, arrabaldes de Antuérpia.
Ali, o Rei Henrique e a sua corte aguardam sob uma frondosa árvore, as partes envolvidas em uma grave questão que demanda a sua autoridade para ser solucionada com a máxima justiça.
De um lado estão Elsa e seu irmão Gottfried de Brabant, filhos do falecido governador daquele principado; do outro, o Conde Telramund e sua esposa Ortrud, que haviam ficado como os guardiões e tutores dos órfãos.
Porém, influenciado pela esposa, o Conde passou a desejar a morte das crianças para lhes usurpar o governo e se apossar de sua herança; e com essa sórdida intenção, o casal acusou Elsa pelo desaparecimento do irmão, denunciando-a como a assassina do mesmo para herdar o Direito Sucessório que a ele pertencia.
Assim, para seguir os trâmites da legislação do lugar e da época, ele convoca a presente reunião e na presença da maior autoridade do país, o próprio rei Henrique, exige que ela se defenda de acordo com o costume, que prevê um duelo entre o acusador e o acusado, ou outrem que ele indique, ficando o vitorioso na refrega com a sua versão aceita e estabelecida.
Elsa entra em cena cabisbaixa e chorosa, na companhia de suas damas. O Conde mostra-se confiante, pois sabe que ela não poderá se defender sozinha e nem conseguirá alguém que lhe tome as dores.
E, de fato, ela declara a sua impossibilidade de vencer uma luta como aquela, bem como a inexistência de algum cavaleiro que o faça por ela, exceto, diz, se por um milagre, o cavaleiro de reluzente armadura que frequenta os seus sonhos se materializasse inesperadamente e a amparasse.
Nesse ponto acontece um dos ápices da Ópera, pois ao descrever os seus sonhos, Elsa entoa uma das mais lindas Árias da obra, na qual descreve o heroico cavaleiro que defenderia a sua honra ultrajada.
Porém, a realidade da situação volta com toda força quando a fanfarra toca o “Dobrado” convocatório para que o acusado apresente o seu defensor e nenhum dos presentes se mostra disposto a enfrentar a prova mortal.
Instala-se um silêncio perturbador, mas quando a banda faz a terceira e última chamada, um murmúrio perpassa a multidão, que vê, com certo assombro, a chegada pelo rio de um cisne atado a um pequeno bote, por uma corrente de ouro.
Dentro do barco, um cavaleiro de armas reluzentes prepara-se para desembarcar e tão logo pisa em terra, apresenta-se ao Rei como o defensor da jovem acusada. Em seguida, pede-lhe a devida permissão para casar-se com ela, assim que vencer o duelo. À jovem promete fazê-la a mais feliz das esposas; mas, alerta, ela, ou qualquer outra pessoa, nunca deverão perguntar-lhe o nome e a origem.
Radiante de alegria, Elsa concorda com essa exigência e começa a sonhar com a sua felicidade futura.
Na sequência, o Rei Henrique faz uma prece e roga a Deus para que a Justiça seja feita plenamente. Todos os demais o acompanham na oração e no desejo de equidade.
Finda a reza, o espaço para o combate é delimitado e o toque das trombetas sinaliza que após o Rei Henrique arranhar o escudo por três vezes, o duelo terá início.
Os lutadores iniciam a troca de golpes, mas em pouco tempo e com muita facilidade o desconhecido (Lohengrin) derruba Telramund, sem, no entanto, matá-lo, como poderia fazer.
O público delira com aquela performance e com a queda do malvado Conde, enquanto Elsa e o cavaleiro saboreiam o triunfo e a dádiva do amor.
No outro lado, Telramund e Ortrud amargam a derrota humilhante e a frustração de seu plano de usurpar o poder e a herança dos jovens.
E, assim, entre a glória e o ressentimento, termina o primeiro ato.
§§§
O segundo ato é encenado na reprodução de um pátio, delimitado por três edifícios. Ao fundo, a residência dos cavaleiros, à esquerda a vivenda das damas e à direita, uma catedral.
A baixa iluminação simula uma noite tranquila; porém, pouco depois, as vozes iradas do Conde e da Condessa quebram o silêncio ao discutirem asperamente sobre a culpa pelos últimos insucessos, que, eles sabem, resultará nos seus banimentos.
Apoiada em uma supersticiosa crença, Ortrud diz a Telramund que se ele tivesse conseguido tirar ao menos uma gota de sangue do desconhecido, o seu encantamento seria quebrado, mas como nem isso ele logrou fazer, ela terá que seguir um novo caminho para desvendar o nome e a origem do mesmo, pois “tem certeza de que tal revelação interromperá a magia que ele possui”. A perspectiva de poderem vingar-se do odiado casal os reconcilia e tacitamente eles se colocam a espera do momento para agirem.
Nesse momento, Elsa surge na janela e exprime toda a alegria que sente através de uma bela e terna ária.
Ortrud afasta-se do marido e aproveita o aparecimento da jovem para se mostrar “muito arrependida” pelos males que ela e o esposo causaram aos órfãos. E prossegue com a sua farsa, dizendo-se amiga de Elsa, a quem deseja toda a felicidade no casamento e na vida. Por último, como se estivesse preocupada com o seu bem estar, insinua que talvez o noivo da jovem seja um malvado feiticeiro, já que ele tanto oculta sua origem e identidade.
Porém, a despeito da gravidade da insinuação, Elsa não lhe dá importância e continua a viver a felicidade de quem encontrou o amor. Assim, pede licença a Ortrud e se recolhe, enquanto a pérfida Condessa invoca as deusas pagãs Odin* e Freia*, clamando pela ajuda de ambas.
Passados alguns momentos, Elsa volta à cena e ingenuamente convida a sua dissimulada inimiga a acompanhá-la nos preparativos para o casamento.
Nisso, amanhece e o pátio começa a ser ocupado por vários cavaleiros, soldados e cortesãos enquanto um arauto proclama o banimento de Telramund e, também, o casamento de Lohengrin e Elsa.
Por algum tempo, os acontecimentos seguem a marcha esperada, porém a caminho da igreja, Elsa e suas acompanhantes são rispidamente abordadas por Ortrud, que, dentre outros impropérios, grita que não mais se curvará ante sua ex-tutelada e a desafia a dizer o nome de seu futuro marido.
A noiva mantém o comportamento digno e responde que o seu noivo é um cavaleiro livre de pecado, dono de uma moral ilibada e muito bondoso, como bem prova o fato de ele ter poupado a vida de Telramund, quando podia tê-lo matado ao vencer o duelo.
A lembrança desse último fracasso acirra o ódio de Ortrud que, então, volta à carga com mais ressentimento. Como se estivesse presa a uma obsessão ela insiste em desafiar Elsa, exigindo que ela confesse desconhecer quem é, na verdade, o seu futuro marido. E prossegue sua ladainha, repetindo que ele é um perigoso feiticeiro que trará a desgraça para todos.
Elsa se mantém dentro da civilidade, mas o escândalo da Condessa não passa despercebido ao Rei Henrique, que tendo chegado naquele instante, não tem alternativa que não seja a de expulsar a litigante mulher de Telramund.
Isso feito, a cerimônia tem início, mas logo é novamente interrompida, agora pelo Conde Telramund que exige ser ouvido, apesar dos protestos dos cavaleiros. Seu discurso, porém, é uma mera repetição das acusações de sua esposa contra Lohengrin e não causa nenhuma comoção.
Lohengrin, responde que a sua honra não pode ser questionada e que é responsável apenas por Elsa, não podendo responder pela felicidade e prosperidade do reino ou de terceiros. É uma contra argumentação parcial, haja vista que, novamente, ele não declina sua identidade, mas, ainda assim, é satisfatória para o Rei e para os cavaleiros, que, aproveitam a ocasião, para decretar o banimento definitivo do casal de nobres decaídos.
Todavia, Ortrud e Telramund, apesar do rigor do castigo que sofreram, saem da igreja contentes, pois sabem que semearam o germe da desconfiança na mente e no coração da jovem esposa.
E, de fato, a dúvida foi instalada, como bem sabe Lohengrin, pois ele percebe que ela passou a temê-lo.
Enquanto isso, o cortejo caminha e quando estão às portas da catedral a orquestra toca a música que servirá para Elsa perguntar o que antes prometerá não indagar: o nome de seu amado.
É o fim do segundo ato.
§§§
O terceiro ato é encenado na representação da câmara nupcial.
Logo de início, o público é brindado com o famoso e sublime “Prelúdio” que embeleza a cena. Em seguida o Coral entoa a tradicional “Marcha Nupcial” e, na sequência, os nubentes cantam um apaixonado dueto, repleto de amor e de ternura.
Uma atmosfera de paz e de harmonia envolve o ambiente, mas, nem mesmo esse clima benfazejo é capaz de impedir que a angústia cresça no coração de Elsa. Os mistérios de seu marido não permitem que ela usufrua a felicidade do momento.
Assim, presa a um turbilhão de dúvidas e incertezas, ela pressente a volta do cisne que havia trazido Lohengrin, para levá-lo em definitivo. Tomada, então, de irresistível aflição, não consegue manter a promessa e em prantos pede que o marido revele toda a verdade.
É um momento doloroso e difícil, mas antes que ele possa dizer qualquer coisa, Telramund entra em cena com a espada em punho. Repetindo as acusações contra Lohengrin, atira-lhe outra espada e o desafia para novo duelo.
Todavia, como da primeira vez, Lohengrin não encontra qualquer dificuldade em dominar o combate e como num passe de mágica, Telramund é trespassado pela espada do herói. Contudo, para ele não há motivos de júbilo, pois ele sabe que o sangue derramado impedirá que continue com Elsa e, pesaroso, diz-lhe que a felicidade de ambos terminou junto com a vida do maldoso desafiante.
Esse sombrio vaticínio encerra a primeira cena.
A segunda cena é novamente ambientada nos arrabaldes da cidade, no “sitio dos julgamentos”, sob a copa da grande árvore.
Ali, enquanto o corpo de Telramund é velado, o Rei e os cavaleiros confabulam rapidamente e proclamam que Lohengrin agiu em legítima defesa e, portanto, não se pode imputar-lhe qualquer culpa naquela morte.
A absolvição comove o herói que, então, dispõe-se a revelar sua identidade. Conta que é de Monsalvat, a terra dos “Cavaleiros do Santo Graal”, filho de Parsifal (que protagoniza outra Ópera de Wagner) e se chama Lohengrin.
Nesse momento, o cisne que lhe trouxe reaparece e é recebido com tristeza pelo filho de Parsifal, já que é o sinal de que chegou a hora de partir. Amargurado, despede-se de Elsa e entrega-lhe o anel, a trompa e a espada, pedindo-lhe que as repasse ao seu irmão Gottfried, caso ele retorne algum dia. Em seguida, ajoelha-se e faz uma oração silenciosa, enquanto uma pomba branca pousa no barco puxado pelo cisne.
Ao perceber o pequeno pássaro, Lohengrin desata a corrente que prendia o cisne e este mergulha nas águas escuras para dela emergir transformado em um jovem príncipe, luxuosamente trajado. E Lohengrin apresenta-o como o legítimo governante da região.
O entusiasmo toma conta de todos e Elsa reconhece, emocionada, que aquele jovem é o seu irmão, Gottfried, que voltou para reassumir o trono dos Brabant.
A festa ganha, então, mais entusiasmo e o jovem herdeiro relata que seu desaparecimento foi causado pela bruxaria de Ortrud, que o transformou naquela ave e, depois, acusara a sua irmã de tê-lo assassinado. Mas, agora, tudo estava acabado e os dias venturosos estavam apenas começando.
Entrementes, Lohengrin embarca no pequeno barco e a pomba o leva de volta ao lar. Dele, fica a justiça restabelecida e a saudade que invade o sofrido coração de Elsa.
Histórico
Wagner começou a trabalhar nessa Ópera em 1845 e confecção da mesma apresenta uma curiosidade, já que ela foi iniciada pelo fim.
Com efeito, Wagner fez em primeiro lugar o trecho que viria a ser o terceiro ato; e, após observar que seria necessário descrever algumas situações anteriores, compôs o segundo e, por fim, ainda insatisfeito, decidiu escrever o aquele que seria o primeiro ato, para narrar as circunstâncias que dão ensejo às ações posteriores.
Pode-se dizer, a propósito, que esse processo singular confirmou a lei da matemática que determina que “a ordem dos fatores não altera o produto”, pois a resultante de seu trabalho foi essa preciosidade que ainda hoje encanta a todos os públicos.
Nela, Wagner se utilizou da mesma matéria-prima de suas outras produções, ou seja, a mescla de lendas nórdicas, germânicas e medievais com a grandiosidade de seu talento.
E usando, direta ou indiretamente, o mote do “Santo Graal (para alguns, o vaso de esmeralda em que José de Arimatéia recolheu o sangue de Jesus, ferido pelo Centurião romano)” ele fez de seus personagens, na presente Ópera e em “Parsifal”, os guardiões da relíquia que ainda hoje suscita acalorados debates acerca de sua real existência.
A escolha desses temas e personagens calou fundo na alma germânica, que pôde se reconhecer em cada um deles. Em outras terras, o espetáculo é apreciado pela beleza, pelo vigor e pela grandiosidade, sem, no entanto, deixar-se de admirar o amor do compositor pelas coisas de sua pátria e cultura.
Rio de Janeiro, 17 de abril de 2015.

Nota do Autor – Odin e Freia – a deusa Freia é uma das mais antigas divindades da mitologia nórdica e germânica. É uma divindade associada ao sexo, ao amor, à luxuria, ao ouro, à guerra e à morte. Odin, na verdade, é o supremo deus pagão da mitologia nórdica, popularizado como o pai do super-herói de HQ e cinema Thor.
Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, outono de 2015.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

A América de Galeano



É certo que te segue
um heroico cortejo,
pois bem sabemos que em tua pena
a independência foi mais que um desejo.

Como poucos, tu denunciastes
os cruéis tiranos de tantos danos.

E como poucos, tu repôs a verdade
enquanto cantava a liberdade.

Siga, Mestre, esse novo caminho.
Saberemos honrar o teu grito
contra os covardes que se vendem
e saberemos impedir
as vozes macias desses falsos messias.


Homenagem pouca ao gênio Eduardo Hughes Galeano (Montevidéu, Uruguai -1940-2015).



Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, 13 de abril de 2015.

domingo, 12 de abril de 2015

Óperas, guia para iniciantes - PORGY and BESS, Gershwin - Ensaio completo.



Porgy and Bess

AutoriaGershwin (George – nascido Jacob Gershowitz – 1889-1937 – EUA New York)

Libreto – DuBose Heyward e Ira Gershwin

Personagens:

PorgyProtagonista masculino – interpretado por um Barítono.

Bess – protagonista feminina. Interpretada por uma Soprano.

Crown – Interpretado por um Barítono.

Serena – interpretada por uma Soprano.

Clara – interpretada por uma Soprano.

Maria – interpretada por uma Mezzo Soprano.

Jake – interpretado por um Barítono.

Sportin´Life – interpretado por um Tenor.

Robbins – idem.

Jim – interpretado por um Barítono.

O agente funerário – idem.

O detetive – participação em prosa. Sem melodia.

Frazier – interpretado por um Barítono.

Local e Época:
Subdistrito chamado de Catfish Row, distrito de Charleston, Carolina do Sul, EUA. Começo do século XX
Prefácio
É possível que o (a) amável leitor, que me honra ao seguir essa série de Ensaios sobre óperas, veja com certa reserva a inclusão da obra de Gershwin nessa categoria, já que, habitualmente, ela é vista apenas como um espetáculo musical.
E, de fato, no início, os críticos mais ortodoxos se negaram a incluí-la no gênero operístico, remetendo-a ao gabarito menor das “representações musicais”.
Todavia, dois anos após essa restrição, Gershwin faleceu, aos trinta e sete anos de idade, durante a cirurgia que tentava extirpar um tumor em seu cérebro; e quatro anos depois, 1941, Porgy and Bess foi reencenada em New York, no majestoso “Metropolitan”, com uma superprodução que não economizou em cenários, figurinos e, principalmente, talentos musicais. Um espetáculo digno das melhores críticas que os entendidos lhe dedicaram.
Então, somou-se a simpatia que o público tinha pelo autor – ampliada por sua trágica morte prematura – com essa nova e superior encenação e o resultado foi a reconsideração dos experts acerca de sua classificação, passando a considerá-la como a primeira Ópera estadunidense.
Atualmente, tal classificação já não é questionada, embora ainda seja pouca conhecida entre o público leigo. Porém, mesmo este, ao conhecê-la não hesita em assegurar a justiça de sua inclusão nesse patamar superior que se chama de A Grande Arte.
Enredo
O verão é escaldante e o calor sufoca o fim do dia na comunidade negra de Catfish Row, Charleston.
O cenário reproduz uma rua da zona portuária, povoada por pescadores, estivadores e outros trabalhadores ligados ao ramo pesqueiro.
Em segundo plano, logo de início, a plateia se delicia ao ouvir Clara, mulher de um pescador e habitante do lugar, cantar a famosíssima “Summer Time” para embalar o filho nos braços.
Essa primeira ária – um clássico per si – sinaliza o espírito da obra: a eterna esperança de dias melhores, apesar das dificuldades do Presente; e a presença marcante de um sentimento de acalanto e de fraternidade, em contraponto às duras condições de sujidade, miséria e exploração daquele submundo.
Com a chegada da noite, alguns homens se reúnem para o habitual jogo de dados, entre os trabalhadores recém-saídos de suas labutas. Pouco depois, o estivador Robbins faz ouvidos surdos aos apelos de sua esposa, Serena, e se junta aos demais. Outros formam o Coro onde se destacam as vozes possantes de Jim e de Jake que solam a melodia “A Woman is a Something Thing”.
Poucos instantes são passados e entre em cena uma carriola puxada por um cabrito. Nela, chega Porgy, cuja grandeza de espírito, compensa o severo aleijão que lhe obriga a viver da caridade alheia.
Com ele, completa-se a roda de jogadores e os dados começam a ser lançados. Instala-se um ambiente de disputa alegre, mas pouco demora para que o estivador Crown, temido por seu mau humor e péssimo caráter, acuse Robbins de trapaça. Este, sem se intimidar com a má fama e com a visível embriaguês de seu acusador, reage prontamente; mas Crown, mais experiente em brigas, usa um pesado gancho para lhe desferir um golpe tão potente que a sua morte é instantânea.
Em seguida, aproveitando-se do aturdimento que o seu ato provocou, consegue escapar e foge para as florestas da ilha Kittiwah, onde acredita que estará livre de ser preso.
Na sequência, escuta-se uma sirene da polícia e todos fogem, exceto a jovem e bela, Bess, a amante de Crown. Rejeitada pelas outras mulheres da comunidade por sua volubilidade, ela se vê totalmente desamparada até que o generoso Porgy a recolhe em seu casebre miserável.
Assim, encerra-se a primeira cena.
A segunda cena desenrola-se em um cenário que reproduz a casa do falecido Robbins. Na sala humilde o seu corpo está sendo velado pelos amigos e pelos vizinhos, que além de prestarem essas últimas homenagens, fazem suas possíveis pequenas doações para as despesas com o enterro.
Em tom patético*, o Coro entoa a fúnebre “Gone, gone, gone...” e a viúva, Serena, entoa a ária “My man´s gone now”, na qual expressa a angústia que sente.
E o canto sofrido, cadenciado, prossegue até que um homem branco entra na sala e se identifica como investigador. Sua chegada causa um mal-estar generalizado** e todos se aquietam temerosos.
O policial dirige-se à viúva e lhe diz secamente que o corpo deverá ser enterrado no máximo até o dia seguinte; pois, caso contrário, será doado para a Faculdade de Medicina e usado em testes e estudos. Depois, diz a um dos presentes que o levará à delegacia como “testemunha”, para iniciar as investigações.
A tensão aumenta exponencialmente e se torna quase que palpável, já que a doação do corpo para estudos impediria que fossem prestadas ao morto os tributos e os ritos tradicionais. Ademais, para o escolhido como “testemunha”, ser levado para a delegacia significava que seria submetido às torturas de praxe e, até, ser incriminado pelo homicídio.
Diante, então, dessas sombrias expectativas, os presentes não hesitam em apontar Crown como o assassino, fazendo com que o detetive se dê por satisfeito. Concomitantemente, o agente funerário que o acompanha se penaliza pela miséria reinante e se dispõe a fazer as exéquias, mesmo que o valor arrecadado seja irrisório.
Solucionados os impasses, o Coro entoa um triste Spiritual, “Leavin For´de Promis´Lan´ (partindo para a Terra Prometida)” e Robbins é levado para o “descanso eterno”.
É o fim do primeiro ato.
§§§
Quando o segundo tem início, um mês já passou desde o infausto assassinato.
Enquanto os pescadores preparam as redes, alguns remadores seguem para o alto-mar entoando “I take a long pull” como se fosse um hino ritual.
Momentos depois, Porgy sai de seu barraco demonstrando toda a felicidade que vem sentindo desde que Bess passou a morar consigo. Ao cantar “I go plenty o´nuttin” expressa o amor que lhe dedica e a ventura que experimenta.
Instantes depois, Bess entra em cena acompanhada pelo vigarista Frazier, que finge ser um advogado. Outros se juntam à dupla e todos seguem em direção a Porgy para tratarem do divórcio dela e de Crown.
Será mais uma falcatrua do falso jurista, pois ele bem sabe que Bess e Crown não são casados legalmente, o que dispensaria qualquer formalidade ao se separarem. Contudo, fingindo-se muito ocupado, ele diz ao ingênuo Porgy que fará o trabalho por apenas um dólar, desde que “inexistam complicações inesperadas e em consideração a admiração que sente por ele”, noutra demonstração de seu cinismo.
O casal mostra-se satisfeito, já que a partir daí poderá consolidar o seu relacionamento; todavia, a noticia desagrada ao traficante de drogas Sportin´Life, que sempre demonstrou interesse em Bess, sem que ela o rejeitasse com muita convicção. Por isso, agora, ele faz nova investida sobre ela e chega a lhe oferecer uma porção do narcótico que vende, “Happy Dust (aliás, a droga que durante toda a Ópera simboliza o poder maléfico do traficante)”.
Porém, talvez enlevada pelo momento, dessa vez ela o rejeita firmemente e se junta às outras mulheres da comunidade, que passaram a aceitá-la em consideração a Porgy, para criticar asperamente o comportamento petulante do facínora. Na sequência, corre ao encontro de seu futuro marido e ambos entoam o belíssimo dueto chamado de “Bess, you is my woman now”.
Findo o canto, inicia-se um novo quadro com a comunidade se preparando para viajar até a ilha de Kittiwah, onde participará do serviço religioso, ali celebrado, e do piquenique que o sucede.
Bess sempre adorou festas e passeios, mas decidiu não ir a este para que Porgy não fique sozinho. Ele, por sua vez, não acha correto privá-la desse prazer e tanto insiste que ela acaba concordando em participar da excursão.
Pouco depois, cantando uma alegre canção todos seguem para as embarcações. Porgy ficou só, mas está feliz por saber da felicidade dos amigos e da mulher que ama.
E com esse clima festivo, encerra-se a primeira cena.
A segunda é ambientada na ilha onde se desenrola o Culto religioso e a festa. Sportin´Life canta uma paródia de mau gosto, com várias blasfêmias e ofensas aos Textos Sagrados; e, apesar da impropriedade desse conteúdo, o ritmo da melodia contagia praticamente a todos, que se esquecem do caráter sacro do lugar e deixam de entoar os Spirituals rituais, para seguirem a música do traficante.
Um clima de deboche, de lubricidade e de galhofa se espalha e só tem fim quando Serena, a viúva de Robbins, faz uma enérgica repreensão ao grupo.
Após recompor a ordem, ela determina o fim do passeio e o retorno para casa. Bess, porém, atrasa-se e quando os outros já estão distantes o seu ex-amante, Crown, surge do matagal onde esteve escondido desde o dia do assassinato que cometeu.
Inicialmente Bess mostra-se apavorada, depois demonstra sentir certa repulsa, mas, por fim, entrega-se apaixonadamente ao seu antigo e cruel companheiro.
É o fim da segunda cena.
A terceira, mostra que uma semana já passou e que o oitavo dia está nascendo.
Como de hábito os pescadores saem para um novo dia de trabalho, enquanto que a adoentada Bess recebe os cuidados de Porgy, que sequer imagina a traição de que foi vítima, mesmo ciente de que ela só voltou alguns dias depois. Serena empresta a sua solidariedade ao casal cantando um hino religioso, “Time and time again”, com o qual pede a cura da enferma. Finda a música, do alto de sua fé, ela assegura a Porgy que “Doctor Jesus” em breve curará a sua mulher.
Na rua, vendedores de morangos e de caranguejos apregoam as suas mercadorias em busca dos clientes ausentes, impedidos pela miséria em que vivem.
É um dia tristonho, que escorre lentamente. E outros dias iguais se arrastam enquanto Bess vai readquirindo a saúde do corpo, embora sinta na alma uma dor lancinante por ter enganado seu bom homem. O remorso a atormenta em todos os segundos.
Oscilando constantemente entre a culpa e o temor, ela promete a Porgy que nunca mais lhe deixará e, na sequência, canta a ária “I Love you, Porgy”, como que selando a sua promessa. Ele, emocionado, se junta ao Canto e ambos fazem da música um dueto que só é interrompido pelos sinais de que um furacão se aproxima.
É o fim da terceira cena.
A quarta cena é ambientada no casebre de Serena, onde a comunidade se reuniu para rezar pelos que estão em alto-mar sob a ameaça do vendaval.
Porém, pouco após o início da vigília, o clima penitente é quebrado quando a porta do recinto é aberta com um grande estrondo pela ameaçadora e gigantesca figura de Crown, que se aproveita da falta de policiamento em razão da proximidade da tormenta, para deixar o seu esconderijo.
Como de hábito, o seu discurso é uma mistura de zombarias e blasfêmias. A todos insulta e enquanto ridiculariza o temor que sentem e a fé que praticam, avisa com a peculiar arrogância que voltou para levar Bess consigo, mesmo que para tanto tenha que cometer outros crimes.
É visível o temor que o facínora inspira naquela pobre gente; mas, Clara, pouca atenção dá às suas ameaças, já que todas as suas preocupações estão voltadas para o seu amado Jake, que se encontra em alto-mar à mercê dos rigores da tempestade.
Aflição que só aumenta, até que não podendo mais aguardar inerte, ela sai afobadamente em direção à praia, como se isso pudesse salvar a vida de seu homem. Crown, ainda caçoando da covardia geral, dispõe-se a acompanhá-la num surpreendente gesto de solidariedade. Enquanto isso, Bess, acomoda em seu colo a criança que Clara deixou e se junta aos demais para cantarem o Spirituals “Doctor Jesus”.
É o fim do segundo ato.
§§§
O terceiro ato começa a ser encenado mostrando a noite seguinte à tempestade.
Bess ainda traz a criança consigo, enquanto Porgy vigia pela janela uma eventual chegada de Crown. Em Coro, os vizinhos tentam consolar Clara, cujo companheiro, Jake, não voltou do mar, estando, provavelmente, morto.
Noutro canto do cenário, cinicamente, Sportin´Life prevê com maldosa satisfação que haverá uma séria briga entre Crown e Porgy, pelo amor de Bess.
São cenas que se justapõe e que mostram os atos generosos e os indecorosos que normalmente existem entre os agrupamentos humanos. Mostra cruamente o que há de melhor e de pior nos homens.
Quando a noite avança todos se recolhem, exceto Porgy que se mantém vigilante e atento a um eventual ataque de seu rival.
E, com efeito, não passa muito tempo até que Crown chega sorrateiramente e força a porta do casebre, mas Porgy já se preparara para o momento e sem qualquer hesitação acerta-lhe uma vigorosa punhalada na cabeça que o fulmina instantaneamente.
­- Bess será só minha, murmura, encerrando a primeira cena.
A segunda, começa com a manhã do dia seguinte ao assassinato cometido por Porgy.
Um policial branco adentra o cenário e observa que a comunidade aparenta estar na mais perfeita ordem. Como se fosse um mantra, todos que o homem branco interpela respondem que, de fato, apareceu um cadáver naquela manhã, mas, nada se sabe do mesmo, tampouco, quem o matou.
Diante desse “pacto de silêncio”, o homem decide levar Porgy, como testemunha, para prestar esclarecimentos na delegacia. Apenas uma formalidade, diz. E, realmente, nem lhe passa pela mente que aquele pobre aleijado tivesse capacidade de matar um perigoso bandido como era o falecido.
Com a ida de Porgy, Sportin´Life busca seduzir Bess e sem qualquer escrúpulo diz-lhe, mentirosamente, que a culpa de seu marido já foi comprovada e que por isso ele não voltará mais.
Ela, inicialmente, demonstra alguma incredulidade e certa resistência, mas diante da insistência do conquistador barato, o seu espírito volúvel cede e ela aceita de bom grado os elogios que ele lhe faz e as perspectivas irreais que ele propõe. Crente de que ele cumprirá suas promessas de lhe dar “uma vida luxuosa em New York, como uma mulher como ela merece e não um pardieiro como o atual”, pouco custa para que ela o acompanhe, abandonando Porgy em definitivo.
Inalando a dose do narcótico “Happy Dust (o pó da felicidade)” que ele lhe oferece, ela junta suas poucas roupas e o segue, fechando, assim, a segunda cena.
Quando a terceira cena tem início, uma semana já passou.
Como nada se pôde provar contra Porgy, ele é liberado e retorna feliz para casa, sendo alegremente recebido pelos vizinhos e pelos amigos.
Para retribuir o carinho, ele entrega aos mais próximos, alguns pobres presentes que trouxe, reservando o mais caro e luxuoso para a sua amada esposa, pois está certo de que ela, saudosa, o aguarda.
Porém, quando indaga sobre ela, um constrangido silêncio é a única resposta que obtém. Então, já presumindo o ocorrido, ele canta a dolorosa ária “Where is my Bess?”.
A dor que sente ameaça sufocar-lhe, mas uma ilusão ainda o anima e ele pensa que ela está apenas brincando de se esconder e que logo surgirá, rindo do susto que lhe deu.
Porém, Serena e Maria tomam coragem e lhe contam a verdade. Sim, ela partiu acompanhando Sportin´Life.
A tristeza toma conta da cena e elas e ele entoam a penúltima peça musical da obra.
Logo em seguida, amargurado, ele diz que irá buscar a sua amada, ainda que tenha que andar o mundo todo, pois está seguro que um dia a encontrará.
Os amigos tentam demovê-lo, mas a sua determinação é inflexível e para exprimir seu estado de animo ele entoa a vigorosa ária “I´m on my way (Estou a caminho)”, nascida de sua dor e de seu sofrimento. Aos amigos só resta secundá-lo em seu cantar e em sua esperança.
E assim descem as cortinas. É o fim da história de um amor fracassado. O fim de uma história sobre vidas comuns que, graças a Gershwin, tornaram-se clássicas.
Histórico
Gershwin já era um compositor conhecido quando, em 1926, assistiu à peça teatral “Porgy and Bess”, escrita, produzida e dirigida pelo casal Heyward (Dorothy e DuBose).
Foi uma paixão à primeira vista, pois logo ele percebeu que o argumento, os cenários e as personagens adequavam-se maravilhosamente ao seu espírito musical e à sua intenção de contar um pouco da vida de seus conterrâneos mais despojados.
Percebeu que ali estava, em estado bruto, uma opera no sentido mais amplo do termo, ainda que fosse diferente de tudo que até então havia sido produzido.
Negros, pobres, pescadores, mendigos, traficantes de drogas, assassinos etc., habitantes em casebres miseráveis e premidos cotidianamente pela mais negra miséria eram, com efeito, totalmente diferentes da maioria das personagens rotineiras do gênero, que, em geral, conta as histórias de príncipes, princesas, heróis, nobres etc., brancos europeus ou aristocratas asiáticos, habitantes de castelos e acima dos problemas reais das pessoas comuns.
Assim, tão logo se acertou com os proprietários dos Direitos Autorais da obra, iniciou o processo de adaptação da obra. Sem medir esforços, mudou-se para um casebre a beira-mar, em Charleston, Carolina do Sul e passou a frequentar os mesmos ambientes dos moradores locais, absorvendo seus costumes, suas gírias, seus ritmos, suas músicas e tudo mais que fosse necessário para recriar com a maior fidelidade possível, o ambiente em que viviam os originais de seus personagens.
Após essa fase de laboratório, de coleta de informações, fechou-se por cerca de um ano, compondo a majestosa “Ópera Negra”, que, além de sua beleza, também contribuiu para o desenvolvimento da sociedade sob outro aspecto, já que se tornou um importante auxílio à luta contra a segregação racial e social; ao mostrar que os sentimentos daquelas pessoas em nada diferiam das que se situam em melhores condições sociais e econômicas ou das que pertencem a outras etnias.
Juntamente com a bela história de amor entre Porgy e Bess, Gershwin ofertou ao público, sugestivos quadros vivos do comportamento humano, demonstrando que o amor, a lealdade, a solidariedade e/ou o ódio, a inveja, a lubricidade, a violência etc. são facetas comuns a todos os Seres humanos; sem que os últimos sejam exclusividade dos despossuídos, enquanto que os primeiros sejam propriedade das chamadas elites.
Mostrou, pois, a similaridade de todos os homens, independentemente de sua condição financeira ou da raça a que pertencem. E mostrou que a beleza da Ópera está concentrada principalmente nesse ponto, pois ao contar a história de um, conta a história de todos.
Rio de Janeiro, 11 de abril de 2015.
Nota do Autor – Patético – em seu sentido original, isto é: o que toca o coração. Não confundir com o significado equivocado, “ridículo”, que passou a ser utilizado nos últimos tempos.
Nota do Autor** - tenha-se em mente o clima de tenebrosa segregação racial existente nos EUA à época, para melhor visualização do desconforto que a presença de um policial branco causaria em uma comunidade negra.
Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, outono de 2015.