sábado, 8 de outubro de 2016

Deus e a divindade O Monoteísmo e o Politeísmo


Outra forma tradicional de considerar Deus é enxergá-lo sobre o prisma da relação existente entre o Ser Supremo e a divindade. Relação, que está diretamente vinculada às correntes filosóficas e teológicas dos Monoteístas e dos Politeístas, como veremos na sequência.
Quando diferenciamos Deus e a divindade, temos uma relação parecida com o conceito de “homem e a humanidade”, podendo, então, haver tantos deuses quanto existem tantos homens. Porém, se, ao contrário, igualarmos Deus e a divindade, teremos um só Deus e uma só divindade.
Isso colocado, é importante pedir que se tenha muito cuidado com as qualificações de “mono ou politeístas” que tradicionalmente são feitas aos Filósofos que se ocuparam do assunto, já que muitos foram (e ainda são) considerados “Monoteístas”, sem que, na verdade, assim sejam, como, por exemplo, Platão, Aristóteles, Plotino, Bérgson e outros. Dessa sorte, para distinguirmos rigorosamente o que são as duas opções, devemos utilizar com exclusividade a relação existente entre Deus e a divindade, sem considerarmos outros critérios, que, embora sejam tradicionais, podem ser equivocados. Assim, temos:

Politeísmo – são todas as doutrinas que admitem haver uma separação entre Deus e a divindade, sendo que esta pode ser compartilhada por outros entes ou Seres. É o caso do citado Platão que em “Timeu” alude ao “Demiurgo”, enquanto delega outras funções a outros deuses. Ou, em “Leis”, quando a expressão “Deus (theós)” designa a “divindade” concretizada numa multidão de deuses. Aliás, nesse texto, Platão também menciona a existência de outros “seres divinos”, aos quais nomeia como “demônios”. Aristóteles, por sua vez, também deixa claro em sua tese sobre o “primeiro motor”, a existência de “tantos motores quanto são as esferas celestes”; isto é, haveria outros deuses encarregados de construir e governar os outros corpos celestes, que eram conhecidos em sua época. Ademais, em todo o seu ideário, ele cita com frequência “os deuses” e mencionando a crença popular de que Deus está em toda a natureza, diz que “as substâncias primeiras são tradicionalmente consideradas deuses”; ou seja, em outros termos: da Essência (ou Substância) divina participam muitas divindades.
Também é importante não confundir a “unidade” de Deus, defendida insistentemente por Plotino e pelos Neoplatônicos em geral, com a “Unicidade” de Deus, pois, afinal, Deus é “Único ou Uno” porque é a “unidade” do mundo (donde se encontra a multiplicidade das coisas e seres) e a fonte de onde surgem todas as coisas. A “unidade” não elimina, pois, a “multiplicidade”.
Em verdade, para Plotino, a multiplicidade dos deuses é, justamente, a manifestação de sua potência. Em suas palavras: “não restringir a divindade a único ser, mostra-la tão múltipla quanto é em sua manifestação, eis o que significa conhecer a potência da divindade, que é capaz de, mesmo permanecendo o que é, criar uma multiplicidade de deuses que se ligam a ela, existem para ela e vem dela”.
Ademais, para os citados, entre os deuses existe certa hierarquia, com a preeminência de um deles, como, por exemplo, o “motor de Platão”, o “primeiro motor de Aristóteles”, o “Bem” de Plotino etc.; porém, essa preeminência não implica a igualdade entre Deus e a divindade, não podendo, portanto, ser visto como Monoteísmo.
Contudo, não seria correto pensar que o Politeísmo como exposto anteriormente seja exclusivo das filosofias pagas e que desapareceram após a elaboração do Monoteísmo cristão.
Repetidos ressurgimentos politeístas podem ser vistos em doutrinas que reproduzem o neoplatonismo, como, por exemplo, a “das quatro naturezas” de Scotus Erígena e, até mesmo, nalgumas interpretações trinitárias (o Pai, o Filho e o Espírito Santo), como a de Gilbert de la Porre, que no século XII baseava-se na diferenciação entre “deitas” e “Deus”.
Além disso, é preciso considerar que toda forma de Panteísmo – antiga ou moderna – é Politeísta, na medida em que dilui o caráter da divindade entre vários entes.
Hegel, por exemplo, afirmou que as Instituições Históricas, como o Estado, por exemplo, onde a Razão Autoconsciente se concretiza são verdadeiras divindades. Para, o “O Estado é a vontade divina... que se explicita... como organização de um mundo”.
E outros Filósofos foram ainda mais diretos, como se pode ver nos ideários de Bérgson, Alexandre e Whitehead, que ao darem ao mundo o poder de realiar a divindade, reconheceram que a divindade, no momento em que se realiza, concretiza-se em inúmeras coisas (que, então, passam à categoria de “Seres Divinos”).
Outro filósofo, o pragmático Hume, também deu um caráter positivo ao Politeísmo ao ver no mesmo uma expressão de tolerância ao ver que os deuses cultuados por outros povos e culturas, também participam da divindade. Ademais, considerou-o mais racional, já que se constitui de “uma coleção de histórias que, apesar de não terem fundamento, não implicam nenhum absurdo expresso nem contradição demonstrativa”.
Mais ou menos nessa mesma linha, pode-se citar o filósofo Renouvier que afirmou ser o politeísmo o único corretivo contra o fanatismo religioso e a tirania de certas tendências filosóficas que se julgam absolutas. Em suas palavras: “o progresso da vida e da virtude povoa o universo de pessoas divinas e estaremos sendo fiéis a um sentimento religioso antigo e espontâneo quando chamarmos de deuses aqueles que acreditarmos capazes de honrar a natureza e abençoar as obras”.
Por fim, pode-se reafirmar que o politeísmo defendido pelos citados Pensadores não coloca em cheque a noção de “Unidade” de Deus, haja vista que a Ele é “reservado o posto de a primeira, dentre as pessoas supra-humanas”, enquanto Deus Uno".

Monoteísmo – antes de tudo, deve-se repetir que o monoteísmo não se caracteriza pela presença de uma hierarquia entre supostos “seres divinos” tampouco pela existência de um “Ser Principal” dentre estes. A única premissa que caracteriza o monoteísmo é a que confere igualdade total entre Deus e a divindade.
Por isso, Fílon de Alexandria, disse que “Deus é solitário... é “Um” em si mesmo e nada é semelhante a Deus”.
E nas discussões acerca da “Trindade” que ocorreram entre os adeptos da Escola Patrística venceu a tese relativa à igualdade total entre Deus e a divindade, restando à hipótese trinitária o posto de “mistério que a Razão humana mal pode aflorar”. Aliás, foi desse modo que a noção de trindade chegou aos nossos dias, sem, porém, alterar o princípio básico de que a única forma de cindir a unidade divina é quando se admite explicita ou implicitamente que da divindade participam dois ou mais Seres diferentes.
Sobre isso, aliás, vale relembrar o argumento de São Tomaz de Aquino: “é evidente que aquilo pelo que algo singular, é este singular... de modo nenhum é comunicável a outra coisa”. Em outros termos: aquilo que faz de Sócrates um homem pode ser atribuído a vários outros; porém, aquilo que faz Sócrates ser este homem, não pode ser atribuído a outros.
É, pois, precisamente, o caso de Deus, pois Deus é a (sua) própria natureza, o que o faz ser Deus e este Deus. É impossível, portanto, que haja mais de um.

São Paulo, 08 de outubro de 2016.

Deus e o mundo moral, segundo a Filosofia


A relação entre Deus e o “mundo moral (isto é: o “mundo dos valores” – o que é Bom, Mau, Bem, Mal, Verdadeiro, Falso etc.) é outro modo como a divindade foi tratada pelos vários Filósofos que se debruçaram sobre o tema ao longo da história.
De antemão é possível dizer que a maioria dos Pensadores vinculou-o ao comportamento do homem, dando-lhe o encargo de “Juiz”, “Bedel”, “Repressor”, “Recompensador” etc.; ao contrário da minoria (praticamente os Iluministas modernos e os pré-socráticos antigos e mais alguns afins) que se limitou a considerá-Lo como um simples demiurgo, cuja função foi apenas a de criar o mundo e as Leis Naturais, ficando totalmente afastado das condutas e dos valores estabelecidos pela humanidade.
Para essa maioria, a relação entre Deus e a “ordem moral” segue o relacionamento entre Deus e o mundo físico, humano e nesse aspecto é possível diferenciar as três concepções que são fundamentais. A saber:

a)      Deus como garantidor da ordem moral do mundo.
b)      A que identifica (iguala) Deus com a ordem moral
c)      Deus como criador da ordem moral.

Na sequência aprofundaremos as considerações sobre cada uma desses aspectos.

Deus como garantia da Ordem Moral

Tal qual a “Ordem Substancial (isto é, em Deus está a substância ou a essência de todas as coisas existentes no universo, sem que seja, diretamente, as mesmas), Deus age indiretamente, como uma espécie de fiador, para manter a Ordem Moral. Essa concepção foi exarada primeiramente por Platão e, depois, foi adotada por Aristóteles, sendo que nela, fica explicitada a tese de que Deus não tem responsabilidade direta sobre a Ordem Moral, uma vez que confiou à humanidade a sua execução e o seu seguimento, restando-lhe, apenas, apoiá-la e encorajá-la, usando de prêmios e castigos conforme o mérito ou demérito de cada ação humana.
Platão afirmou que o demiurgo predispõe todas as coisas para não serem causas ou motivos de maldades entre os indivíduos e, por isso, a virtude e o vicio (ou seja, a “ordem moral”) estão associados apenas ao mundo dos seres criados, sendo o homem o único responsável por suas escolhas (note-se a semelhança com a tese de Sartre, milênios depois). O discurso de Aristóteles foi semelhante quando disse: “a divindade exerce a sua função apenas no mundo natural (isto é, exime-se das questões morais, das condutas ou dos valores)”. Todavia, Platão e Aristóteles admitiram que o “homem virtuoso*” fica mais perto da divindade.

Nota do autor – é claro que os conceitos de Bem e Mal, Virtude e Vicio, são relativos e mutáveis, como se pode perceber, por exemplo, com a “Escravidão” que à época dos sábios gregos era considerada “boa” e atualmente é execrável. Assim, pede-se ao (a) leitor (a) que considere essa mutabilidade dos Juízos (ou Julgamentos) de valores, mas que aceite a premissa de que o indivíduo que acredita em algum tipo de “Ser Supremo”, também acredita em alguma escala de valores.

No mundo moderno, aquelas características positivas podem ser encontradas na ideologia dos adeptos da chamada “Religião Natural” que parte da ausência de qualquer “Revelação (ou imposição) Divina” e se baseia exclusivamente na Razão humana; ou seja, na capacidade intelectual do homem para definir o que seja o Bem e o Mal. Sobre ela, escreveu o filósofo Grócio: “são quatro os enunciados dessa Religião, conforme segue:

a)      Deus existe e é uno (ou seja, tudo é Deus, sendo (Ele) as coisas, os seres etc. que são apenas diferentes faces de sua manifestação).
b)      Deus não é coisa nenhuma que se veja, mas é muito superior a elas, pelos motivos explicitados anteriormente.
c)      As coisas humanas são cuidadas por Deus e julgadas com perfeita equidade (isto é, as atitudes dos homens são avaliadas segundo os parâmetros do equilíbrio racional, sem serem contaminadas pelas paixões humanas).
d)     Deus é o artífice (o construtor) de todas as coisas exteriores (materiais, físicas, concretas).

Crenças semelhantes a essas, que excluem os comportamentos e atitudes humanas da interferência direta de Deus, embora reconhecendo a ajuda e a garantia divina, são frequentes nos Filósofos dos séculos XVII e XVIII, como Rousseau, que afirmou: “Deus intervém para por em ação as leis da ordem universal, agindo de tal modo que, nesta vida, quem se comportar corretamente e for infeliz, será recompensado na outra”. Para o filósofo, aliás, a exigência de ver assim garantida a ordem moral é o único motivo razoável (ou racional) para (se) crer na imortalidade da alma.
Posteriormente, o grande Imannuel Kant, adotou concepção semelhante, insistindo que as Leis Morais não são impostas arbitrariamente por Deus, embora Ele as inspire, porque, só de “uma vontade moralmente perfeita (ou Santa ou Boa) poderia derivar as regras que produzem benefícios”.
A tese kantiana ficou sendo a face mais popular da concepção que limita o poder de Deus a uma garantia; ou seja, o Ser Supremo limita-se a atuar como avalista ou fiador (já que foi Quem a inspirou) das Leis Morais, sem interferir diretamente sobre os conceitos Bom, Mau, Falso, Verdadeiro etc., cujos parâmetros são estabelecidos pelos homens. Em consequência, também é limitada a sua ação direta as ações humanas que devem adequar-se às Leis Morais estabelecidas pela sociedade ou sofrer as represálias da mesma ao não cumpri-las.

Deus identificado com a Ordem Moral do Mundo

Essa concepção, tal como a que concebe Deus como “Criador da Ordem Moral” apoia-se nos seguintes conceitos:

a)      Providência divina
b)      Ordem racional, não só dos eventos acontecidos no mundo, mas, também, das ações humanas, pois os atos praticados pela humanidade só podem estar de acordo com a Ordem Racional (ou ordenamento lógico) do “Todo”, porque o homem é parte deste “Todo”.
c)       Ordem (moral) que é oriunda de Deus ou o próprio Deus.

Os primeiros Filósofos a formular o conceito de “Providência (ou destino)” foram os chamados “Estoicos” que assim nomearam o governo racional do mundo (feito por Deus); ou seja, a razão ou o motivo pela qual as coisas passadas aconteceram, as presentes acontecem e as futuras acontecerão. Para os Estoicos, essa razão ou motivo é o mesmo que Deus, sem que isto implicasse em negar a liberdade humana, já que ela estaria embutida nos desígnios divinos. E, com efeito, os Estoicos reconheciam a necessidade da ação humana, comparando-a com a forma de um cilindro que contribui para que ele gire sobre um plano inclinado.
Posteriormente, o filósofo neoplatônico, Plotino, retomou o conceito da Providência Divina que, pode ser entendida com a ação pela qual Deus conduz os acontecimentos e as criaturas para o fim que lhes foi destinado e, por isso, os seres haurem de Deus não só o Ser (ou existir) e a vida, mas, também, a ordem das ações em que o seu Ser e a sua vida são exercidos. Plotino procurou não vincular a origem o Mal na “ordem providencial”, preferindo debitá-la a uma espécie de acréscimo acidental que alguns Seres fazem ao já referido ordenamento divino.
Várias outras doutrinas adotaram a tese de que Deus é o Criador da Ordem Moral, sem, contudo, igualar-se com ela e, também, serviram-se das expressões e imagens usadas por Plotino e pelos neoplatônicos; e aprofundaram a questão da “liberdade humana” ante a inexorabilidade da “providência”, o que, a rigor, tornar-lhe-ia nula.
O grande Giordano Bruno, por exemplo, disse que: embora as orações não possam influir nos decretos do Destino (ou nos desígnios da Providência Divina), que é inexorável, o próprio Destino deseja que lhe supliquem para fazer o que (já) estabelecera fazer.
E, também, o ilustre Espinosa negou que algo possa modificar os decretos do Destino, pois, em suas palavras: “Deus não é “Causa Livre” no sentido de poder agir diferente do modo como age; Ele é livre apenas no sentido de que age pelas (segundo) Leis de sua natureza”; isto é, sua ação decorre de sua maneira de ser. Desse modo, pode se observar que para o holandês, a noção de “Providência” iguala-se à noção de “Necessidade”; ou seja, o modo como Deus age está conforme ao modo como Ele pode agir. Seus atos ou ações não são aleatórios, mas, lógicos, racionais.
O filósofo Fichte ecoou a tese spinosiana ao declarar que Deus era igual (isto é, o mesmo que) à “ordem (ou ordenamento) moral, viva e atuante”; enquanto, também, negava que Ele fosse uma “Substância (ou seja, um ente, um Ser, uma pessoa, por assim dizer) Particular”, diferente dessa “ordem”. É claro que essa afirmativa de Fichte fê-lo ser acusado de ateísmo, já que para os crentes das diversas religiões sempre foi importante conservar a noção de um “Ser Supremo” que atua como “pai”, “provedor”, “julgador” etc.
Todavia, não obstante essa qualificação como ateia, a tese de Fichte foi mantida e acabou tornando-se um dos fundamentos da tendência filosófica chamada de “Romantismo”, como se pode notar em um dos discursos de Hegel a esse respeito. Em suas palavras: “o verdadeiro Bem, a razão divina e universal, é também potência de realização de si mesmo. Em sua representação mais concreta, este Bem, essa razão é Deus. O que a Filosofia vê e ensina é que nenhuma força prevalece sobre a força do bem, ou seja, de Deus, de tal modo que a impeça de atuar: Deus prevalece, e a história do mundo não representa outra coisa senão o plano da providência. Deus governa o mundo: o conteúdo de seu governo, a execução de seu plano, e a história universal”. Observe-se que para Hegel, inobstante certas ambiguidades em sua exposição, Deus é a Razão que habita o mundo; e a Razão que habita o mundo, é a própria realidade histórica (ou, em outros termos: a marcha da humanidade sempre observou certa lógica racional e em conformidade com a racionalidade (ou Razão) divina que governa o mundo, apesar de parecer que certas atitudes pareçam irracionais).
Esta parte da doutrina hegeliana avançou pelos séculos e nos dias atuais embasa algumas tendências que buscam renovar a teologia cristã, propondo empenhar o Cristianismo numa ação mais direta e eficaz no mundo.
O pensador Bonhoeffer, por exemplo, iguala a realidade com o Bem e ambos com Deus, já que, “todas as coisas se mostram distorcias se não são vistas nem reconhecidas em Deus” e, por isso, (a ética cristã) é “a realização, entre as criaturas de Deus, da realidade reveladora de Deus em Cristo”.
Doutrinas desse tipo apresentam como novidade, por um lado, o abandono das antigas especulações filosóficas e, por outro, a ênfase dada à figura de Cristo. Contudo, note-se, que, a rigor, o pressuposto básico continua inalterado: a igualdade (ou a identidade) de Deus com o “mundo moral”.

Deus como Criador da Ordem Moral

Essa terceira concepção de Deus é caracterizada por dois pontos principais:

a)      A Diferenciação entre Deus e a sua “ação providencial”, sendo que Ele é a “causa livre” da ordem moral.
b)      A tentativa de preservar a liberdade ou o livre-arbítrio do homem.

O ponto de partida dessa concepção ainda é a noção de Providência, conforme elaboração dos Filósofos Estoicos e Neoplatônicos e, dessa forma, é possível ver que o sábio Boécio a enaltece com a seguinte afirmativa: “a Providência é a própria Razão Divina, constituída como princípio soberano de tudo, que ordena (organiza) todas as coisas, ao passo que o Destino é (apenas) a ordem que rege as coisas em seu movimento, por meio da qual a Providência as liga, dando a cada uma o lugar que lhe compete”.
Boécio não pretendeu diferenciar a Providência e o Destino, já que ambos coincidem. Pretendeu, sim, explicar a natureza do “livre-arbítrio”, pois, para ele, a Providência é a Ordem (ou o ordenamento ou a organização) vista pela inteligência divina e o Destino é essa mesma ordem, vista enquanto se realiza no tempo, sendo que, entremeio a essa diferenciação, é que surge a questão do livre-arbítrio, que para Boécio é possível, justamente porque as ações humanas estão embutidas na Providência Divina e no movimento das coisas (ou das situações) através do Destino.
Essa tese avançou para a Filosofia medieval, onde sábios, como Santo Tomas, deram-lhe um formato mais elaborado e preciso. Para o santo de Aquino, por um lado, há que se reafirmar o fato de que a Providência é absoluta e totalizante e, por outro, que a liberdade humana é possível por ser “parte” dessa mesma Providência.
E ainda sobre a questão da Providência ser absoluta, são Tomaz avançou na tentativa de explicar a existência do Mal, dentro desse contexto. Em suas palavras: “é próprio da Providência ordenar as coisas para um fim. Depois da bondade divina, que é um separado das coisas, o bem principal, existindo nas próprias coisas, é a perfeição do universo; esta não existiria se não se encontrassem nas coisas todos os graus do ser. Daí se segue que é da divina providência produzir todos os graus do ser e, por isso e para certos efeitos, ela preparou causas necessárias, a fim de que acontecessem necessariamente, mas para outros efeitos preparou causas contingentes (isto é, que podem ou não acontecer) a fim de acontecessem contingentemente em conformidade com a condição das causas próximas... por isso, acontece infalível e necessariamente aquilo que a providência divina dispõe que aconteça assim, mas acontece de forma contingente aquilo que a providência divina quer fazer assim acontecer”.
Essa proposição de São Tomaz é de difícil explicação, pois a mente humana tende para a análise maniqueistamente dual de algo “ser ou não ser” e, então, como entender que a realização de um desígnio perfeito e minucioso pudesse ser confiada, mesmo que parcialmente, ao comportamento imprevisível de um fator arbitrário? Porém, essa fórmula foi repetida frequentemente e se firmou com o intuito de ressaltar a liberdade da Causalidade Divina para explicar a existência do Mal. E, dessa sorte, chegou aos Pensadores dos séculos XVII e XVIII – mormente com Bayle, Leibniz e os Deístas – que se debruçaram sobre a questão sem encontrarem novas soluções.
Bayle, por um lado, afirmava ser uma questão insolúvel contida nos “mistérios de Deus”, incognoscíveis à mente humana; Leibniz, por outro, buscava algum esclarecimento nas soluções antigas, adaptando-as à sua concepção de mundo como “ordem que se organiza espontaneamente a partir de Deus enquanto principio dessa organização”. E Leibniz prosseguiu com o reaproveitamento de teses antigas, para admitir um “determinismo não necessitante (ou seja, uma predestinação sujeita a variações)” que embasava a liberdade do homem; assim como a ideia de que o Mal não existe por si, sendo, apenas, um ingrediente incômodo do “melhor dos mundos possíveis”.
“Causalidade Livre de Deus” que, diga-se, é difícil de compatibilizar com a outra proposição de ser Deus uma “Substância (ou essência) Necessária* (isto é, capaz de agir apenas segundo a sua natureza, ou forma de ser, e dentro de certos parâmetros, ainda que os mesmos sejam incomensuráveis e superlativos)”. E tal incompatibilidade forneceu munição para vários de seus críticos, dentre os quais o grande Voltaire.
De qualquer modo, com o correr do tempo, combinaram-se as teses de “Plano Providencial” e Deus enquanto “Substância (ou essência) Necessária” e, ambas, com a noção judaico-cristã de Deus como “Causa Livre (que age sem qualquer tipo de limitação)”.
É claro que essa combinação de conceitos diferentes criou vários conflitos e dificuldades e mesmo a Filosofia contemporânea ainda não foi capaz de elucidar os muitos questionamentos que se colocam, em virtude da ênfase dada à condição da divindade ser “Real e Necessária”, conforme proposição do Movimento Romântico em sua tese sobre a imanência de Deus.
Nota do Autor - Em verdade, foi o filósofo árabe chamado Avicena quem enunciou pela primeira vez a tese de Deus enquanto “Substância Necessária” e que, por isso, só pode ter uma “Causalidade Necessária”, do que resulta que as coisas só podem ser o que são. Essa concepção consolidou-se com o tempo, a despeito de trazer consigo alguns elementos incompatíveis entre si, já que tira da mesma o conceito de “Plano Providencial”, que na história da Filosofia surgiu da igualdade que se deu ao mundo ou à sua ordem e Deus.
Encerrando este Ensaio, convido os (as) interessados (as) a lerem o terceiro da série sobre “Deus”, segundo as considerações feitas pelos Filósofos, onde será abordada a relação entre Deus e a divindade.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Deus e a Criação, segundo a Filosofia


O presente ensaio não intenciona questionar qualquer tipo de crença e tampouco tecer loas às mesmas ou ao seu inverso, o Ateísmo, pois, bem sabe o autor, que o conceito de divindade transcende às questões materiais, sociais e, até, filosóficas, inserindo-se na categoria de elemento indissociável da própria formação da civilização.
Assim sendo, a proposta do presente trabalho resume-se em apresentar breves considerações sobre o conceito “Deus”, exaradas pelas mais diversas tendências filosóficas, que desde os primórdios usaram-no para embasar ou para refutar teses e teorias. Pretende-se, pois, oferecer uma panorâmica dos pensamentos no correr da história e, com isso, ampliar o próprio debate sobre o conceito, assim como sobre os temas que lhes são afins, mormente a ética, a tolerância, a sociabilidade e outros correlatos, cujo norte acha-se obscurecido pela vertiginosa corrida de nossos dias.
Usar-se-á como método, a exposição das formas como “Deus” foi considerado pelas diversas Escolas Filosóficas, o que nos permitirá vislumbrar o desenvolvimento das ideias acerca do mesmo; bem como, constatar o retrocesso que se mostra em nosso tempo, com o recrudescimento dos vários “fundamentalismos religiosos”, cuja visão extremada e deturpada, carrega consigo o germe da violência e da barbárie, o que, em extremo, pode prejudicar a própria noção do divino, em suas características mais essenciais, como, por exemplo, consolo, amparo e incentivo emocional etc.
Por fim, finalizando esse prefácio, também bem sabe o autor, que a amplitude do tema não poderia ser contida em um simples Ensaio e, por isso, conta com a compreensão do (a) amável leitor para as limitações que certamente irão aparecer no decorrer do presente texto.

Deus e o Mundo

Nesse primeiro tópico, veremos o aspecto fundamental que é dado a Deus; ou seja, a sua posição enquanto a Causa (o motivo de existir) do Mundo e, por extensão, de todo o Universo. Em termos de Filosofia, essa Causalidade foi concebida de maneira variada, mas para nossa digressão, consideraremos as três mais conhecidas, a saber:
1)      Deus como o Criador da Ordem (a organização de tudo, o porquê de tal coisa ser como é) do Mundo. A chamada “Causa Ordenadora”.
2)      Deus como a Natureza (atenção, leia-se: natura naturans, que não deverá ser confundida com a natureza física (naturata), ou seja, os rios, os animais, os homens etc.) do Mundo. A chamada “Causa Necessitante”.
3)      Deus como Criador (ou construtor) do Mundo. O Deus demiurgo. A chamada “Causa Criadora”.
Colocado, então, esse resumo, avançaremos em cada tópico, recorrendo a certa ordem cronológica, que nos balizará em termos do desenvolvimento, ou do retrocesso, da noção do divino.

Deus como Criador da Ordem do Mundo

Inicialmente veremos que a noção de Deus enquanto “Criador da Ordem do Mundo” é, provavelmente, a concepção filosófica mais antiga, tendo sido adotada primeiramente pelo filósofo pré-socrático Anaxágoras, que associou Deus ao Intelecto (ou a inteligência racional, lógica), capaz de “criar (o mundo organizado, ordenado)” sem qualquer limitação, embora ditado por um “Destino Necessário”; isto é, escrito de tal modo que a própria “Criação Divina” a ele teve que se submeter; ou seja, ainda que Deus tenha podido criar livremente, a Sua criação não partiu do nada, do vazio, já que um “planejamento anterior” fora elaborado pelo Intelecto. Algo como um projeto que antecede à construção de um edifício.
Posteriormente, essa tese foi encampada pelo discípulo de Sócrates, chamado Platão, que a repassou para o seu próprio aluno, chamado Aristóteles.
Para Platão, Deus seria o artífice, o artesão, o demiurgo que “construiu” o mundo (leia-se: o universo) a partir dos modelos que já existiam no que ele chamava de “Mundo das ideias” ou “Mundo das essências” ou “Mundo das substâncias” ou “Mundo das realidades”. Por exemplo, uma árvore física, que vemos diariamente, não passaria de uma cópia da “essência de árvores existente no Mundo das essências, das ideias, das substâncias etc.”.
Vê-se, portanto, que o “Deus platônico” seria limitado em termos de Criação, haja vista que Ele fabricou cópias de modelos preexistentes. Todavia, ainda assim, o Seu poder seria incomensurável, já que seria constituído por uma Inteligência superior e por uma Generosidade superlativa, o que, de certa forma, conferiu ao seu “Ato de Criação” uma característica ilimitada, haja vista a infindável quantidade e diversidade das “cópias” que Ele criou e continua a criar.
Aristóteles, por sua vez, não diferiu em essência de seu mestre ao elaborar a sua teoria sobre o divino, exceto por inserir a “fôrma preexistente” no próprio ente criado e não num “Mundo das Ideias”. Aliás, é preciso corrigir um equívoco que é comum: ao contrário do que vulgarmente se acredita, veio de Platão, e não de Aristóteles, a noção de Deus como o “Primeiro motor” ou a “Causa de todas as outras causas (e de seus Efeitos, obviamente)” ou “Guia de todas as coisas que se movem”. É verdade que se deve ao estagirita o mérito de ter aprofundado essa noção, dela partindo para criar o seu estupendo sistema filosófico.
Dessa sorte, para Aristóteles, Deus, enquanto o “primeiro motor” é necessariamente vinculado a todos os, digamos, “motores menores”, já que ele é que inicia a infindável série de “Causa e Efeito” que movem o mundo (leia-se: universo). É, pois, a “primeira causa” da qual decorrem as várias “séries causais”, inclusive a série das “causas finais (no sentido de finalidades e não de encerramento)”. Para o filósofo é possível comparar esse ponto com uma família ou com um exército, sendo Deus um general ou um chefe de família que “gera e mantém a ordem (o ordenamento)” que produz a “bondade (isto é, a organização que proporciona a consecução de objetivos, a otimização dos esforços)”.
Como se disse antes, Platão já havia exarado essa concepção, mas fê-la de forma menos mística (ou religiosa) e justamente por isso, Aristóteles tornou-se o preferido dos futuros teólogos do Cristianismo. Embora não tenha acrescentado novas características à divindade, tornou mais claro o ideário de seu mestre, estabelecendo, por exemplo, que Deus não é só o “primeiro motor”, mas é, também, o “motor imóvel” e, por isso, eterno e isento das imperfeições e limitações do mundo material ou sensível (sensível, porque é captável pela sensibilidade, pelos sentidos humanos). Um Deus cuja grandeza não pode ser mensurada, o que implica ser indivisível (sem partes) e tão potente ou poderoso que é capaz de mover eternamente todas as coisas. Um Deus que não é só Intelecto, como dissera Platão, mas um “Ser Supremo” que é “Inteligência em Ato (ou seja, em ação, em efetiva realização num eterno Presente)” e sempre dirigida para os objetos superiores (ou coisas ou circunstâncias ou fatos etc. superlativos, essenciais), mesmo quando ela se volta para as coisas inferiores, menores; com as quais, aliás, nunca se confunde, já que o “Intelecto Divino” está sempre acima das efemeridades. Ademais, a diferenciação entre “Ato (a ação realizada continuamente)” e “Potência (ou potencial para fazer algo)”, com a incontestável supremacia do primeiro em relação à segunda, permitiu que Aristóteles definisse Deus como “Ato Puro”, sendo, portanto, absolutamente presente em todos os momentos, sem qualquer vinculo com a matéria, com o mundo material, reforçando, assim, a característica de que Deus é um ente incorpóreo.
Além disso, o estagirita esclareceu o conceito de “Bem-aventurança divina” ao dizer que: “Deus experimenta sempre uma felicidade simples e única porque a atividade (que é acompanhada pelo prazer) não consiste só no movimento, mas também na imobilidade, e a felicidade está mais no repouso que no movimento (pede-se ao leitor (a) que substitua os termos “repouso” e “movimento” por “autossatisfação” e “busca indefinida e gananciosa”, para ter uma compreensão mais aproximada do que disse o filósofo)”. E por usufruir dessa “felicidade simples e única” Deus é autossuficiente, já que ao contrário do homem, Ele não tem necessidade de que o Bem (o motivo ou a causa da felicidade) venha do exterior. Ainda nas palavras do filósofo: “A causa disso é que para nós o Bem vem de algo que não somos nós, mas Ele é o Bem para si mesmo”.
Por último, deve-se reafirmar os conceitos fundamentais de Platão e de Aristóteles de que a estrutura essencial (ou substancial) do mundo (leia-se: universo) está além da “Criação realizada” por um demiurgo (o ente divino que construiu o universo a partir dos modelos que já existiam no “mundo das ideias”) e justamente por isso é eterna, sem começo e fim. Afinal, apenas as coisas individuais, materiais é que tem início e encerramento ou nascimento e morte e Deus está muito além de ser “uma coisa individual, material, finita etc.”, por ser a própria estrutura do mundo.
Ainda segundo os mestres gregos, a superioridade de Deus vem da “perfeição de sua vida” e não de sua existência, pois segundo Aristóteles: “nenhuma Substância é mais ou menos Substância de que outra”, o que equivale dizer que a Sua essência é idêntica às “essências menores”, como, por exemplo, a “essência, ou ideia modelo preexistente, de uma árvore, de um rio, de um homem etc.”.
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Avançando em nossas considerações, veremos que a noção de Deus como “demiurgo”, afirmada por Platão e reafirmada por Aristóteles não foi adotada integralmente pelas tendências filosóficas que os sucederam, já que o Panteísmo Estoico e o Neoplatônico em primeiro lugar e, depois, o Criacionismo bíblico dotaram a divindade de outros atributos ou de outras características, que se alternam durante a marcha do pensamento filosófico.
Contudo, em uma das várias reviravoltas havidas no modo de pensar, é possível verificar que no mundo moderno o conceito platônico e aristotélico acerca da “limitação no poder divino” passou a ser considerado como válido por algumas tendências, que, também, tiraram-lhe o caráter de “infinito, eterno, absoluto”. Foi, por exemplo, o caso do Iluminismo, cujo expoente, Voltaire, disse: “toda obra que nos mostra os meios e um fim revela um artífice: logo, este universo composto de meios, cada um com seu fim, revela um artífice poderosíssimo e inteligentíssimo”. E, realmente, para Voltaire, Deus não passaria de um artífice (ou demiurgo) sem qualquer poder para intervir na vida do homem, quer no aspecto material, quer no aspecto moral. Para ele, Deus é somente quem fez o mundo ordenado, organizado; sendo que o Bem e o Mal são simples classificações humanas, sem qualquer mandamento divino.
Posteriormente, no século XIX, uma noção semelhante foi desenvolvida por Stuart Mill, para quem um Deus finito e limitado pela matéria e pela forma (ou fôrma, modelo etc.) que utilizou (para construir o universo) é tudo o que se pode concluir sobre o “Criador do Mundo”.
Também os Filósofos Peirce e James recusaram-se a considerar Deus como onisciente e onipotente. James afirmou, inclusive, que Deus não é o “Absoluto”, mas apenas parte de um “Sistema” e que a sua função não é totalmente diferente da de outras partes desse sistema, como, por exemplo, a do homem. Segundo ele: se Deus existe no tempo, Ele age na história como nós outros e se tem um ambiente específico, não é superior ao homem, deixando de ser intemporal, perfeito e absoluto.

Deus como a natureza do mundo

Sob esta rubrica é possível agrupar as várias tendências filosóficas que aceitam a tese de que existe uma relação essencial, intrínseca, entre o Mundo e Deus, de modo que o primeiro é uma espécie de continuação ou prolongamento do segundo. No tópico anterior, também é possível ver essa associação, mas, ali é ressaltada a diferenciação entre ambos. Platão, por exemplo, chama o mundo de “Deus gerado” e Aristóteles aprova a crença de que os “corpos celestes são deuses” e de que “o divino abrange toda a natureza”.
Essa associação visceral, essa vinculação essencial, foi além dos sábios gregos e ganhou o nome de Panteísmo, cujo elemento central é a afirmativa de que há um laço necessário (necessário: no sentido filosófico, de que não poderia ser diferente) atando o mundo e Deus.
Isto, porém, não implica que Deus e o mundo sejam um só e tampouco que sejam idênticos. Em verdade, ainda que tal identificação existisse, ela só seria possível no sentido que vai do mundo a Deus e não no inverso, já que o “mundo está incluindo na vida ou existência divina” como seu elemento, sem, contudo, esgotar ou abranger completamente essa existência ou vida divina.
É importante notar que embora existam divergências pontuais entre os vários sistemas abrigados sob a bandeira do Panteísmo, uma característica é comum a todos: a não diferenciação entre a Causalidade (lei de causa e efeito) divina e a Causalidade natural. A partir dessa convergência é possível distinguir três modos principais de vincular o mundo e Deus, conforme segue:
1)      O mundo é a emanação de Deus (pede-se ao leitor (a) que imagine um perfume que emana de uma rosa, para ter uma compreensão aproximada do significado do  verbo “emanar”).
2)      O mundo é a revelação de Deus; ou seja, a Sua manifestação física, concreta, material.
3)      O mundo é a concretização (ou a realização) de Deus.
A primeira forma acabada do Panteísmo aconteceu no Estoicismo, cujos adeptos chamavam a Deus de “mundo”. Segundo o filósofo Diógenes: “em Deus encontra-se a característica (ou o caráter) de toda essência (ou substância); isto é, a imortalidade, o fato de não ter sido gerado e a criação da ordem universal. Além disso: “conforme um determinado ciclo de tempo, Ele absorve em Si, toda a realidade material, física, para, depois, tornar a gerá-la”. “Deus é corpo, porque só o corpo pode ser a Causa (o motivo), o agir (a ação sendo realizada)”. Aécio, outro filósofo estoico, escreveu que: “dizem que Deus impregna todo o universo e toma vários nomes conforme as diferentes matérias em que penetra”.
Posteriormente, teses semelhantes foram defendidas por Tertuliano e por Hobbes, em sua obra prima, O “Leviatã”. Também é possível notar no filósofo pré-socrático Heráclito, alguns antecedentes dessas teses em suas obras “Logos” e “Fogo divino que tudo penetra”. Idem em Xenófanes de Colofão, que dizia ser Deus “o Uno e o Todo”.
Contudo, a forma mais elaborada de Panteísmo só aconteceu no movimento filosófico chamado de Neoplatonismo, principalmente na obra do filósofo Plotino, que elaborou a noção de “emanação”, que se tornaria indispensável ao Panteísmo em geral, permitindo entender o modo como de Deus emana, ou deriva, um mundo (leia-se, um universo) que não se separa Dele.
E Plotino foi didático – inclusive pela utilização de figuras de linguagem – para esclarecer a relação o mundo com Deus. Segundo ele:
1)      O mundo deriva, necessariamente (necessariamente: em termos filosóficos), de Deus, assim como o perfume deriva do objeto perfumado; ou a luz do objeto iluminado.
2)       Graças a tal necessidade, o mundo deve ser entendido como uma parte ou um aspecto de Deus. E justamente por ser apenas uma parte ou um aspecto, é inferior à divindade; assim como o perfume é inferior ao objeto perfumado.
3)      Em consequência, Deus é superior ao mundo, mas, no entanto, é parecidíssimo com ele, já que lhe transmitiu certas qualidades, como: ordem, perfeição, beleza etc.
Plotino também afirmou que Deus é o “Uno (a totalidade de tudo)”, embora seja representado por cada um dos muitos aspectos que Dele emana. Ele poderia, por exemplo, ser experimentado (visto, sentido etc.) em uma rosa, na face de um homem, num rio, numa estrela etc.. Dele, emana em primeiro lugar a Inteligência, que traz em si as estruturas essenciais (ou substanciais) do ser (ou existir) e que, por isso, é identificado com o próprio ser (ou existir). Em segundo lugar, Dele emana a “Alma” que penetra e governa o mundo, já que ela é uma cópia perfeita de Quem emanou; ou seja, de Deus. Ademais, Plotino reafirmou a tese de que “Deus é um bem-aventurado que se basta a Si mesmo” e que é superior ao mundo de tal forma que não é possível mensurar ou descrever essa superioridade com o vocabulário e com as coisas dos homens, haja vista não ser apenas uma Essência ou Substância, tampouco um “Ser supremo”, já que é Dele que essas coisas derivam ou emanam.
Proclo, outro filósofo da época, a esse propósito, assim O definiu: “Deus é supersubstancial (ou superessencial), supervital e superinteligente”. Aliás, essa definição de Proclo, tornou-se a pedra de toque para outra tendência filosófica que então se iniciava, a “Escolástica ou Patrística ”, onde despontou o filósofo Scotus Erígena que proclamou que Deus, na condição de ser a “superverdade”, manifesta-se constantemente no mundo – no processo chamado de teofania – sem se confundir com ele, já que está acima de todas as coisas, embora esteja em todas elas, e, também, nos supostos vácuos ou vazios.
Por tudo isso, o Neoplatonismo estabeleceu a impossibilidade de se compreender Deus com as ferramentas da Razão, sendo, portanto, acessível apenas por meio de um “êxtase místico”, pois nenhuma ciência objetiva poderia ser capaz de determinar a sua natureza. Somente através da “teologia negativa” seria possível sondá-Lo, respondendo que “Ele não é isto”; “Ele não é aquilo” etc. Esse conceito de “teologia negativa” foi exposto por Proclo em sua obra “Teologia Platônica” e acabou sendo difundido pela Filosofia Cristã, graças ao filósofo chamado “Pseudo Dionísio”, o Aeropagita, que o enfatizou em sua “Theologia Mystica”, onde propõe que o único caminho para vislumbrar a Deus é, realmente, a ascensão mística que culmina no mais autentico êxtase.
E o trio: “Teologia Negativa”, “Êxtase místico” e “Deus como superessência” tornou-se os pilares básicos para o Panteísmo posterior, onde brilharam, entre outros, os Filósofos Amalric de Bène e Davi de Dinant, no século XII, que, também, reafirmaram aquelas teses, como bases de seus próprios ideários. Amalric, por exemplo, afirmou que Deus é a essência ou a forma (ou fôrma, modelo) de todas as coisas. Davi, por seu turno, afirmou que Ele é a matéria de todas as coisas; ou seja, Ele se materializaria nos objetos, nos seres vivos etc.
Esses mesmo elementos voltaram a aparecer no ideário do filósofo chamado de Mestre Eckhart, no século XIV, que afirmava ser Deus “uma essência supraessencial (superior às demais) e um Nada supraente (isto é, Deus não seria nada que pudesse ser expresso pelo vocabulário do homem, do ente humano, por pairar muito além dos entes capazes de tentar compreendê-Lo racionalmente)”. Assim, de Deus nada se pode dizer, exceto que é “uma quietude erma”, ao mesmo tempo em que é preciso reconhecê-Lo como a verdadeira essência de todas as coisas.
No século XV, Nicolau de Cusa retomou essa concepção e afirmou que “Deus é a Essência (ou a Substância) do Mundo e o mundo é um Deus contraído”.
Já, Giordano Bruno, por sua vez, retomou a antiga tese dos neoplatônicos que afirmava a transcendência e (por isso) a incognoscibilidade de Deus e, nela apoiado, propôs considerar Deus como a natureza física (os rios, os animais etc.), já que para ele “Deus é Causa e Princípio" do mundo (no sentido de que o universo é o Efeito dessa Causa, pois é como Causa que Deus determina quais as coisas que formam o mundo, diferenciando-se das mesmas; e Princípio [ou base] por constituir o “ser” das coisas naturais).
Nesse mesmo tempo, Jacob Boehme afirmava ser Deus “um Nada eterno” e a Raiz (ou base) do mundo físico, que não foi criado a partir do nada, mas como emanação do próprio Deus. E justamente por ter se originado Nele, o mundo é a revelação ou a concretização dessa essência divina.
Teoria semelhante foi exarada pelo filósofo Schelling, já no final do século XIX, que em sua “Filosofia da Natureza” afirmou que “Deus e o universo são uma coisa só ou são aspectos diferentes de uma e única coisa”. Deus é o universo considerado pelo lado da identidade (ou similaridade, parecença com o mundo) e é o “Todo” porque é o “Todo Real (isto é, a realidade absoluta)”, fora da qual nada existe. É importante notar que para Schelling, o mundo não é apenas a Revelação de Deus, mas, também, a sua Realização e que tal argumento encontra-se no ideário do grande Spinoza, o filósofo mais popular do Panteísmo, que, embora não o tenha explicitado em sua obra com esses termos, deu-o a luz, no bojo de sua ideologia, ao propor o “Racionalismo Geometrizante”, pelo qual Deus não é o mundo físico (as árvores, os rios etc.), mas, sim, a “Ordem do Mundo (ou seja, as Leis Naturais, o “projeto” do universo)". Em suas palavras: “Nada há de contingente nas coisas, mas tudo é determinado a existir e a aturar de certo modo pela necessidade da natureza divina”.
Embora se possa diferenciar a natureza entre “Natura Naturante (as Leis Naturais, o “projeto” da natureza concreta, física)” que, segundo Espinosa é Deus, e “Natura Naturata (que são as coisas concretas físicas, como, por exemplo, os rios, ventos etc.)”, é preciso ter-se em mente que, a rigor, a segunda nada mais é que a primeira, sendo, pois, a “ordem (o ordenamento, a organização) divina”. Nas palavras do filósofo: “De qualquer modo que concebermos a natureza, sob o atributo da extensão (ou matéria), do pensamento ou de qualquer outro, sempre encontraremos uma só e mesma ordem, uma só e mesma conexão de causas, isto é, uma só e mesma realidade”.
Dessa sorte, para Espinosa, Deus não é apenas a “Unidade (ou o Todo)” da qual tudo brota por emanação; tampouco a “Causa” geradora dessa “Ordem”; mas, em verdade, é essa mesma e necessária “Ordem”, do que resulta que a derivação (ou existência) das coisas é a Realização (a concretização, a objetivação) de Deus, numa reciprocidade prevista pela racionalidade geometrizante.
Esse ideário voltou a ser utilizado pelos Filósofos da tendência chamada de “Romantismo”, em tom reverente à genialidade espinosiana.
Dentre outros que se dedicaram a explicitar o Pensamento do célebre holandês, pinçaremos o ilustre Hegel, que afirma que Deus “Revela-se” e simultaneamente “Realiza-se” no mundo, principalmente através da “necessidade racional do mundo (o mundo só pode ser como é, por imperativos racionais que evitam que seja confuso, desorganizado, irracional)”; ou seja, através do fato de haver um ordenamento lógico, racional entre as Causas e os Efeitos no universo. Assim, para Hegel, a diferença entre a “Essência Eterna (ou Deus)”, e a sua manifestação: o homem; é apenas um estágio temporário, provisório, que será superado pelo retorno do homem a Deus, concretizando, portanto, a Unidade.
Depois, ele cita três momentos distintos do conceito de Deus, sendo que em cada qual, o divino é representado como:
1)      Como “Conteúdo Eterno” que permanece na posse de si, em suas manifestações (ou seja, ainda que Deus se manifeste em um homem, em uma árvore, Ele não deixa de ser ele mesmo).
2)      Como diferenciação entre “Essência Eterna” e a sua manifestação (conforme acima), o que faz com que exista o “mundo das aparências (o mundo físico, real, concreto).
3)      Como “Infinito Retorno” e “Conciliação do mundo (das aparências) com a “Essência Absoluta”; ou seja, após serem objetivadas ou concretizadas, todas as coisas findam (morrem, por exemplo) e voltam a se integrar ao divino; o qual, noutro momento, volta a se concretizar em inúmeras formas, num círculo infindo, perfazendo a Unidade Absoluta entre Deus e as suas manifestações (ou criações ou emanações ou derivações). Em outros termos: pense-se numa planta qualquer, que ao morrer incorpora-se ao solo para rebrotar noutro momento.
E o Panteísmo contemporâneo adotou essa concepção de que a “Realização de Deus” está confiada ao mundo, como se pode observar na ideologia, por exemplo, de Bérgson, que afirma ser Deus idêntico ao “esforço criador” da vida; isto é, igual ao movimento pela qual a vida vai além de suas formas estáticas, encaminhando-se para a criação de formas mais perfeitas. Aliás, é por isso que o filósofo espera que “do amor místico (divino) pela humanidade – a ponta avançada do ímpeto ou elã vital – resulte o aperfeiçoamento da humanidade e a retomada da função especial do universo, que é uma máquina de fazer deuses...”.
Outro filósofo contemporâneo, Alexander, retoma a velha fórmula de que “o mundo é o corpo de Deus” e afirma: “Deus é o mundo inteiro, porque possui a qualidade da deidade. O mundo inteiro é o ‘corpo’ de este Ser, enquanto a deidade é o seu ‘espírito”. Porém, este possuidor da deidade não é real (físico, concreto), é ideal (ou seja, uma ideia). Isso, aliás, remete-nos à famosa frase de Leibniz “o mundo está grávido de deidade...”, cabendo ao mundo “parir” Deus; ou seja, é no processo da evolução natural que em certo momento a qualidade de deidade revelar-se-á em certas coisas.
Outro filósofo, Whitehead, confirmou essa relação entre o mundo e Deus com várias teses e respectivas antíteses, que, ao cabo, demonstram que “Se Deus espera do mundo a sua realização, o mundo espera de Deus a sua unidade”. Em suas palavras: “o mundo é a multiplicidade das atualidades finitas que buscam (a) unidade perfeita. Nem Deus nem o mundo atingem (a) completitude estática. Ambos estão na forja do último fundamento metafísico, o avanço criativo para o novo. Cada um deles, tanto Deus quanto o mundo, é instrumento da novidade do outro”.
Por fim, terminando o presente tópico, é necessário dizer que desde o Panteísmo pré-socrático, a realidade de Deus (ou seja, a sua real existência) foi condicionada à existência do mundo; como afirmou, por exemplo, Scotus Erígena ao dizer que “Deus não existia antes de criar todas as coisas”, em defesa da coeternidade de ambos. E essa condição sine qua non adentrou pela modernidade e a partir da tendência chamada de Romantismo passou-se a afirmar explicitamente que Deus é, de alguma forma, uma criação do mundo. A propósito, sobre isso, Hegel afirmou que “Deus é real no mundo, à medida em que é o ‘espírito’ do mesmo... a Racionalidade Autoconsciente que se realiza (concretiza-se) no mundo”. Ou, na ótica de outros pensadores: Deus é o ponto final de um processo evolutivo, onde são atingidas a Unidade e a Perfeição.
Essa condição evoluiu na história e contemporaneamente pode-se observar que Deus deixou de ser “o corpo” ou a “substância” do mundo, para se tornar um produto do mesmo, já que é esse mesmo mundo quem lhe dá “corpo”, “substância” e “realidade”.

Deus como Criador

Segundo a concepção de Deus como “Causa Criadora”, Ele não é apenas o “1º motor” e a “Causa primeira do devir*  nem da “Ordem (ou ordenamento, organização) do Mundo”, já que é, também, o autor ou o artífice da Essência (ou estrutura substancial) do próprio mundo; a qual, aliás, por ser uma criação Dele, não lhe é coeterna, ao contrário do que sustenta a concepção panteísta clássica. Criação, diga-se, que não foi necessária (no sentido filosófico, ou seja, de não poder ser de outra maneira), mas, oriunda de uma “Causalidade livre”, a qual reforça a separação entre Ele e a sua criação; isto é, o mundo. Em consequência, Deus deixa de ser o “Superser” e passa à categoria de “O Ser, do qual as outras coisas são derivadas”. Com isso, pretende-se diferenciá-Lo das noções de emanação, preservando-lhe a função de “Criador”, como característica única e exclusiva.
Nota do Autor – Devir: o vir a ser e, nesse caso, os efeitos decorrentes de uma causa.
Essa elaboração filosófica começou com o Pensador chamado Fílon de Alexandria, século I, que interpretou as alegorias do Velho Testamento e estabeleceu um novo conceito de Deus, ora em oposição à Filosofia grega (Pré-socráticos, Platão, Aristóteles etc.); ora em concordância com a mesma. Coube-lhe, no entanto, o mérito de ter sido o primeiro a afirmar que “Deus tirou o mundo do não-ser para o ser (ou existir), não se limitando a ser um mero demiurgo (um Deus construtor a partir de elementos preexistentes), mas, sendo, em verdade, o verdadeiro fundador do mundo”. Contudo, ainda que faça jus ao mérito que lhe foi dado pouco atrás, é forçoso reconhecer que Fílon não foi inteiramente fiel à sua própria tese, haja vista que por vezes, conceituou Deus como “Alguém” que se limitou a organizar a matéria desordenada e amorfa que já existia, transformando-a no universo. Teria sido, portanto, apenas um demiurgo.
Dessa sorte, verifica-se que a noção de “Deus Criador” só ganhou certa solidez e clareza a partir da polêmica cristã contra os adeptos do chamado “Gnosticismo”. É desse tempo, por exemplo, a afirmativa do sábio chamado Irineu que declarou: “Deus não tem necessidade de intermediário para a Criação”. Ou, então, a de Lactâncio que negava que Deus tivesse tido necessidade da matéria preexistente para criar o mundo. Ou, ainda, Orígenes, que, insurgindo-se contra o “emanatismo”, afirmava que Deus não poderia ser considerado como o “Todo” nem como “Parte”, porque era “Absoluto, homogêneo e indivisível (logo, não poderia ser “parte do mundo” como afirmavam outras tendências)”. Por sua vez, o filósofo Gregório de Nisa, ecoando outros Filósofos cristãos, insistia na Unicidade de Deus, tanto para se opor ao Politeísmo pagão, quanto para evitar que a noção de “Trindade (O Pai, o Filho e o Espírito Santo)” pudesse vincular Deus ao mundo e, consequentemente, com a multiplicidade existente no mesmo. Aliás, pelos mesmos motivos, Santo Agostinho, insistia na “Eternidade” e na “Imutabilidade” de Deus. Em sua obra, “Confissões”, ele diz que: “A mutabilidade do mundo, per si, indica que ele foi criado, não sendo eterno e, por isso, necessitou ser criado por um Ser Eterno. Antes da Criação não havia tempo e não havia nem mesmo um ‘antes’; não tem sentido, pois, perguntar o que Deus fazia então. A Eternidade esta acima de todo tempo e em Deus, o Passado e o Futuro nada são. O tempo foi criado juntamente com o mundo”.
No século XI, o filósofo Anselmo resumiu em sua obra, “Monologion”, os resultados de seu ideário e esclarecia as características da Criação a partir do nada, como “um salto do nada para alguma coisa”, insistindo ser inadmissível admitir que a matéria ou outra coisa qualquer, preexistisse à Criação divina. Para ele, as coisas (objetos, seres etc.) são (ou existem) apenas porque participam do Ser, o que significa, é obvio, que as suas existências provém unicamente Dele. Contudo, Anselmo, admitia que na “Mente Divina” estivesse o modelo (a “ideia platônica”) das coisas produzidas, desde que se admitisse que este modelo também fosse uma criação de Deus. Em termos populares, seria algo como um projeto arquitetônico que precede à construção de uma ponte, de um edifício etc.
Por outro lado, o filósofo Abelardo dizia que a Criação do Mundo não teria sido um “Ato Livre”, mas, sim, um “Ato Necessário” de Deus; ou seja, um ato ou uma ação que não poderia deixar de ocorrer, haja vista que Deus não poderia deixar de querer o Bem e a Criação é um Bem.
Prosseguindo, veremos que a característica fundamental da doutrina que vê Deus como a “Causa Criadora (ou seja, o fato de que Deus é o Ser o qual dependem todos os outros seres)” encontrou no Neoplatonismo árabe o corolário, chegando-se ao atributo que, depois, tornar-se-ia o primeiro e fundamental dessa forma de pensar: a “necessidade do Ser divino”, pois se as coisas do mundo devem o seu existir a Deus, Ele só pode extrair esse existir Dele mesmo; isto é, Deus é o Ser (o existir) por natureza e por essência, enquanto que as coisas “são”, apenas, por participarem ou derivarem Dele. Com isso, observa-se uma cisão no conceito “Ser”, já que de um lado, tem-se o “Ser” de Deus e do outro o “Ser” das criaturas. De um lado, o “Ser” por si e de outro o “Ser” por participação. De um lado o “Ser” necessário e de outro o “Ser” possível, ou que foi possibilitado.
Prócer do citado neoplatonismo árabe, o filósofo Al Farabi, no século IX, foi quem introduziu essa diferenciação entre os modos de “Ser” e, depois, graças ao grande Avicena (século XI) ela se consolidou e permaneceu hegemônica durante o período da chamada Filosofia Escolástica árabe e cristã.
Avicena interpretou a relação entre “Necessidade” e “Possibilidade”, valendo-se de sua erudição sobre o ideário de Aristóteles, donde pinçou a relação entre forma (ou fôrma) e matéria. A forma como “existência em ato” é a “necessidade” enquanto a matéria é “possibilidade”. O que não é “necessário” por si mesmo, só pode ser constituído de “Potência + Ato (potencial + concretização)” e, portanto, não é simples, sendo, pois, divisível. Este é o “Ser” das criaturas. Porém, o “Ser” que é “necessário” por si, é absolutamente singular, simples, desprovido de matéria e de possibilidade. Este é o “Ser” de Deus.
A tese explicitada pelo árabe Avicena foi introduzida na Escolástica cristã pelo filósofo Guilherme de Alvérnia e, depois, tornou-se o fundamento da teologia desenvolvida por Santo Alberto Magno e por Tomás de Aquino, para quem: “Deus é o Ser cuja essência implica existência; pois o Ser (ou existir) de todas as coisas é criado por Quem possui o Ser (ou existir) por essência própria”. Dessa sorte, a “necessidade” é, também, a definição da natureza (o que é) de Deus, segundo ele.
Na verdade, a característica de “necessidade” tornou-se fundamental para as teses acerca de Deus que surgiram depois, como se pode observar em Nicolau de Cusa que definiu a divindade como “necessidade absoluta”. Ou, então, Descartes, que fez da “necessidade” o ponto de partida da chamada “Prova Ontológica” e afirmou que: “a existência necessária está contida na natureza ou no conceito de Deus, de tal modo que é verdade dizer que a ‘existência necessária’ está em Deus ou que Deus existe”. Leibniz, por outro lado, embora negasse a legitimidade da “Prova ontológica”, reafirmou a “necessidade” como definição de Deus.
E após esses últimos Filósofos, foram poucas as novidades apresentadas por outras tendências modernas e contemporâneas acerca da “necessidade”. Limitaram-se, na maioria das vezes, a utilizar essa característica como início de demonstrações ontológicas, como ocorre, por exemplo, com o filósofo Lotze e outros representantes do Espiritualismo contemporâneo. Exceção a essa postura, aliás, viu-se apenas em Kierkegaard e em seus seguidores. Para o filósofo, a relação entre Deus e o Mundo não pode ser compreendida pela mente humana e só pode ser imaginada quando se aceita a noção de que há um “salto” entre o mundo e Deus. Kierkegaard não utiliza a noção de “Causa” para decifrar a relação entre o mundo e Deus e, assim, não Lhe atribui a característica de “necessário”, vinculado a certos “efeitos”. Para ele, Deus está muito além desses conceitos. Em suas palavras: “Deus é aquele para o qual tudo é possível (note-se: não é aquele “amarrado” a certa Lei de Causa e Efeito)”.
Tal definição torna, com efeito, a fé possível, já que pressupõe a crença Naquele que “tudo pode” por não estar “preso” a contingencia alguma. Acessoriamente, exclui a “necessidade” da natureza, tornando indiferente o fato de Deus ter ou não criado o mundo. Pode-se, portanto, dizer que Kierkegaard propõe um Deus completamente abstrato, desvinculado de qualquer laço com o universo. Um Deus acessível apenas através da fé irracional, haja vista que a Razão seria insuficiente para compreender a sua transcendência.
A tese de Kierkegaard acerca da transcendência incognoscível de Deus foi reafirmada pelo filósofo Jaspers, para quem, qualificar essa “transcendência” (após a tentativa de classificá-la com o uso do intelecto ou da razão), seria o mesmo que anulá-la, pois o único sinal da mesma é o fracasso que o homem sofre quando tenta compreendê-la racionalmente.
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Findo este primeiro Ensaio, convido aos interessados a lerem o seguinte, “Deus e o Mundo Moral, segundo a Filosofia”, que será publicado na sequência. Nele, será abordada a relação entre Deus e a ordem moral e ética, segundo as diversas tendências filosóficas.
São Paulo, 07 de Outubro de 2016