A relação entre Deus e
o “mundo moral (isto é: o “mundo dos valores” – o que é Bom, Mau,
Bem, Mal, Verdadeiro, Falso etc.)
é
outro modo como a divindade foi tratada pelos vários Filósofos que se
debruçaram sobre o tema ao longo da história.
De antemão é possível
dizer que a maioria dos Pensadores vinculou-o ao comportamento do homem,
dando-lhe o encargo de “Juiz”, “Bedel”, “Repressor”, “Recompensador” etc.; ao
contrário da minoria (praticamente os Iluministas modernos e os
pré-socráticos antigos e mais alguns afins) que se limitou
a considerá-Lo como um simples demiurgo, cuja função foi apenas a de criar o
mundo e as Leis Naturais, ficando totalmente afastado das condutas e dos
valores estabelecidos pela humanidade.
Para essa maioria, a
relação entre Deus e a “ordem moral” segue o relacionamento entre Deus e o
mundo físico, humano e nesse aspecto é possível diferenciar as três concepções
que são fundamentais. A saber:
a)
Deus como garantidor da ordem moral do
mundo.
b)
A que identifica (iguala) Deus com a ordem moral
c)
Deus como criador da ordem moral.
Na sequência
aprofundaremos as considerações sobre cada uma desses aspectos.
Deus como garantia da
Ordem Moral
Tal qual a “Ordem
Substancial (isto é, em Deus está a substância ou a essência de
todas as coisas existentes no universo, sem que seja, diretamente, as mesmas)”, Deus age
indiretamente, como uma espécie de fiador, para manter a Ordem Moral. Essa
concepção foi exarada primeiramente por Platão e, depois, foi adotada por Aristóteles,
sendo que nela, fica explicitada a tese de que Deus não tem responsabilidade
direta sobre a Ordem Moral, uma vez que confiou à humanidade a sua execução e o
seu seguimento, restando-lhe, apenas, apoiá-la e encorajá-la, usando de prêmios
e castigos conforme o mérito ou demérito de cada ação humana.
Platão afirmou que o
demiurgo predispõe todas as coisas para não serem causas ou motivos de
maldades entre os indivíduos e, por isso, a virtude e o vicio (ou seja, a
“ordem moral”) estão associados apenas ao mundo dos
seres criados, sendo o homem o único responsável por suas escolhas (note-se a
semelhança com a tese de Sartre, milênios depois).
O discurso de Aristóteles foi semelhante quando disse: “a divindade exerce a sua função apenas no mundo natural (isto é,
exime-se das questões morais, das condutas ou dos valores)”.
Todavia, Platão e Aristóteles admitiram que o “homem virtuoso*” fica
mais perto da divindade.
Nota
do autor – é claro que os conceitos de Bem e Mal, Virtude e
Vicio, são relativos e mutáveis, como se pode perceber, por exemplo, com a
“Escravidão” que à época dos sábios gregos era considerada “boa” e atualmente é
execrável. Assim, pede-se ao (a) leitor (a) que considere essa mutabilidade dos
Juízos (ou Julgamentos) de valores, mas que aceite a premissa de que o
indivíduo que acredita em algum tipo de “Ser Supremo”, também acredita em
alguma escala de valores.
No mundo moderno,
aquelas características positivas podem ser encontradas na ideologia dos
adeptos da chamada “Religião Natural” que parte da ausência de qualquer
“Revelação (ou imposição)
Divina” e se baseia exclusivamente na Razão humana; ou seja, na capacidade
intelectual do homem para definir o que seja o Bem e o Mal. Sobre ela, escreveu
o filósofo Grócio: “são quatro os enunciados dessa Religião, conforme segue:
a)
Deus existe e é uno (ou seja, tudo é
Deus, sendo (Ele) as coisas, os seres etc. que são apenas diferentes faces de
sua manifestação).
b)
Deus não é coisa nenhuma que se veja,
mas é muito superior a elas, pelos motivos explicitados anteriormente.
c)
As coisas humanas são cuidadas por Deus
e julgadas com perfeita equidade (isto é, as atitudes dos homens são avaliadas
segundo os parâmetros do equilíbrio racional, sem serem contaminadas pelas
paixões humanas).
d)
Deus é o artífice (o construtor)
de todas as coisas exteriores (materiais, físicas, concretas).
Crenças semelhantes a
essas, que excluem os comportamentos e atitudes humanas da interferência direta
de Deus, embora reconhecendo a ajuda e a garantia divina, são frequentes nos
Filósofos dos séculos XVII e XVIII, como Rousseau, que afirmou: “Deus intervém para por em ação as leis da
ordem universal, agindo de tal modo que, nesta vida, quem se comportar
corretamente e for infeliz, será recompensado na outra”. Para o filósofo,
aliás, a exigência de ver assim garantida a ordem moral é o único motivo
razoável (ou
racional) para (se) crer na imortalidade
da alma.
Posteriormente, o
grande Imannuel Kant, adotou concepção semelhante, insistindo que as
Leis Morais não são impostas arbitrariamente por Deus, embora Ele as inspire,
porque, só de “uma vontade moralmente
perfeita (ou Santa ou Boa)
poderia derivar as regras que produzem benefícios”.
A tese kantiana ficou
sendo a face mais popular da concepção que limita o poder de Deus a uma
garantia; ou seja, o Ser Supremo limita-se a atuar como avalista ou fiador (já que foi Quem a inspirou) das Leis
Morais, sem interferir diretamente sobre os conceitos Bom, Mau, Falso,
Verdadeiro etc., cujos parâmetros são estabelecidos pelos homens. Em
consequência, também é limitada a sua ação direta as ações humanas que devem
adequar-se às Leis Morais estabelecidas pela sociedade ou sofrer as represálias
da mesma ao não cumpri-las.
Deus identificado com a
Ordem Moral do Mundo
Essa concepção, tal
como a que concebe Deus como “Criador da Ordem Moral” apoia-se nos seguintes
conceitos:
a)
Providência divina
b)
Ordem racional, não só dos eventos
acontecidos no mundo, mas, também, das ações humanas, pois os atos praticados
pela humanidade só podem estar de acordo com a Ordem Racional (ou ordenamento
lógico) do “Todo”, porque o homem é parte deste “Todo”.
c)
Ordem (moral)
que é oriunda de Deus ou o próprio Deus.
Os primeiros Filósofos
a formular o conceito de “Providência (ou destino)”
foram os chamados “Estoicos” que assim nomearam o governo racional do mundo (feito por Deus);
ou seja, a razão ou o motivo pela qual as coisas passadas aconteceram, as
presentes acontecem e as futuras acontecerão. Para os Estoicos, essa razão ou
motivo é o mesmo que Deus, sem que isto implicasse em negar a liberdade humana,
já que ela estaria embutida nos desígnios divinos. E, com efeito, os Estoicos
reconheciam a necessidade da ação humana, comparando-a com a forma de um
cilindro que contribui para que ele gire sobre um plano inclinado.
Posteriormente, o
filósofo neoplatônico, Plotino, retomou o conceito da
Providência Divina que, pode ser entendida com a ação pela qual Deus conduz os
acontecimentos e as criaturas para o fim que lhes foi destinado e, por isso, os
seres haurem de Deus não só o Ser (ou existir)
e a vida, mas, também, a ordem das ações em que o seu Ser e a sua vida são exercidos. Plotino procurou não vincular a
origem o Mal na “ordem providencial”, preferindo debitá-la a uma espécie de
acréscimo acidental que alguns Seres fazem ao já referido ordenamento divino.
Várias outras doutrinas
adotaram a tese de que Deus é o Criador da Ordem Moral, sem, contudo,
igualar-se com ela e, também, serviram-se das expressões e imagens usadas por
Plotino e pelos neoplatônicos; e aprofundaram a questão da “liberdade humana”
ante a inexorabilidade da “providência”, o que, a rigor, tornar-lhe-ia nula.
O grande Giordano
Bruno, por exemplo, disse que: embora as orações não possam influir nos
decretos do Destino (ou nos desígnios da Providência Divina),
que é inexorável, o próprio Destino deseja que lhe supliquem para fazer o que (já) estabelecera
fazer.
E, também, o ilustre Espinosa
negou que algo possa modificar os decretos do Destino, pois, em suas palavras: “Deus não é “Causa Livre” no sentido de
poder agir diferente do modo como age; Ele é livre apenas no sentido de que age
pelas (segundo) Leis de sua natureza”;
isto é, sua ação decorre de sua maneira de ser. Desse modo, pode se observar
que para o holandês, a noção de “Providência” iguala-se à noção de “Necessidade”;
ou seja, o modo como Deus age está conforme ao modo como Ele pode agir. Seus
atos ou ações não são aleatórios, mas, lógicos, racionais.
O filósofo Fichte
ecoou a tese spinosiana ao declarar que Deus era igual (isto é, o mesmo
que)
à “ordem (ou
ordenamento) moral, viva e atuante”; enquanto,
também, negava que Ele fosse uma “Substância (ou seja, um ente, um Ser, uma
pessoa, por assim dizer) Particular”, diferente dessa
“ordem”. É claro que essa afirmativa de Fichte fê-lo ser acusado de ateísmo, já
que para os crentes das diversas religiões sempre foi importante conservar a
noção de um “Ser Supremo” que atua como “pai”, “provedor”, “julgador” etc.
Todavia, não obstante
essa qualificação como ateia, a tese de Fichte foi mantida e acabou tornando-se
um dos fundamentos da tendência filosófica chamada de “Romantismo”, como se
pode notar em um dos discursos de Hegel a esse respeito. Em suas
palavras: “o verdadeiro Bem, a razão
divina e universal, é também potência de realização de si mesmo. Em sua representação
mais concreta, este Bem, essa razão é Deus. O que a Filosofia vê e ensina é que
nenhuma força prevalece sobre a força do bem, ou seja, de Deus, de tal modo que
a impeça de atuar: Deus prevalece, e a história do mundo não representa outra
coisa senão o plano da providência. Deus governa o mundo: o conteúdo de seu
governo, a execução de seu plano, e a história universal”. Observe-se que
para Hegel, inobstante certas ambiguidades em sua exposição, Deus é a Razão que
habita o mundo; e a Razão que habita o mundo, é a própria realidade histórica (ou, em outros termos: a marcha da
humanidade sempre observou certa lógica racional e em conformidade com a
racionalidade (ou Razão) divina que governa o mundo, apesar de parecer que
certas atitudes pareçam irracionais).
Esta parte da doutrina
hegeliana avançou pelos séculos e nos dias atuais embasa algumas tendências que
buscam renovar a teologia cristã, propondo empenhar o Cristianismo numa ação
mais direta e eficaz no mundo.
O pensador Bonhoeffer,
por exemplo, iguala a realidade com o Bem e ambos com Deus, já que, “todas as coisas se mostram distorcias se
não são vistas nem reconhecidas em Deus” e, por isso, (a ética cristã)
é “a realização, entre as criaturas de
Deus, da realidade reveladora de Deus em Cristo”.
Doutrinas desse tipo
apresentam como novidade, por um lado, o abandono das antigas especulações
filosóficas e, por outro, a ênfase dada à figura de Cristo. Contudo, note-se,
que, a rigor, o pressuposto básico continua inalterado: a igualdade (ou a identidade)
de Deus com o “mundo moral”.
Deus como Criador da
Ordem Moral
Essa terceira concepção
de Deus é caracterizada por dois pontos principais:
a)
A Diferenciação entre Deus e a sua “ação
providencial”, sendo que Ele é a “causa livre” da ordem moral.
b)
A tentativa de preservar a liberdade ou
o livre-arbítrio do homem.
O ponto de partida
dessa concepção ainda é a noção de Providência, conforme elaboração dos
Filósofos Estoicos e Neoplatônicos e, dessa forma, é possível ver que o sábio Boécio
a enaltece com a seguinte afirmativa: “a
Providência é a própria Razão Divina, constituída como princípio soberano de
tudo, que ordena (organiza) todas as coisas, ao passo que o Destino é (apenas)
a ordem que rege as coisas em seu movimento, por meio da qual a Providência as
liga, dando a cada uma o lugar que lhe compete”.
Boécio não pretendeu
diferenciar a Providência e o Destino, já que ambos coincidem. Pretendeu, sim,
explicar a natureza do “livre-arbítrio”, pois, para ele, a Providência é a Ordem
(ou
o ordenamento ou a organização) vista pela
inteligência divina e o Destino é essa mesma ordem, vista enquanto se realiza
no tempo, sendo que, entremeio a essa diferenciação, é que surge a questão do
livre-arbítrio, que para Boécio é possível, justamente porque as ações humanas
estão embutidas na Providência Divina e no movimento das coisas (ou das
situações) através do Destino.
Essa tese avançou para
a Filosofia medieval, onde sábios, como Santo Tomas, deram-lhe um formato
mais elaborado e preciso. Para o santo de Aquino, por um lado, há que se
reafirmar o fato de que a Providência é absoluta e totalizante e, por outro,
que a liberdade humana é possível por ser “parte” dessa mesma Providência.
E ainda sobre a questão
da Providência ser absoluta, são Tomaz avançou na tentativa de explicar a
existência do Mal, dentro desse contexto. Em suas palavras: “é próprio da Providência ordenar as coisas
para um fim. Depois da bondade divina, que é um separado das coisas, o bem
principal, existindo nas próprias coisas, é a perfeição do universo; esta não
existiria se não se encontrassem nas coisas todos os graus do ser. Daí se segue
que é da divina providência produzir todos os graus do ser e, por isso e para
certos efeitos, ela preparou causas necessárias, a fim de que acontecessem
necessariamente, mas para outros efeitos preparou causas contingentes (isto é, que
podem ou não acontecer)
a fim de acontecessem contingentemente em conformidade com a condição das
causas próximas... por isso, acontece infalível e necessariamente aquilo que a
providência divina dispõe que aconteça assim, mas acontece de forma contingente
aquilo que a providência divina quer fazer assim acontecer”.
Essa proposição de São
Tomaz é de difícil explicação, pois a mente humana tende para a análise
maniqueistamente dual de algo “ser ou não ser” e, então, como entender que a
realização de um desígnio perfeito e minucioso pudesse ser confiada, mesmo que
parcialmente, ao comportamento imprevisível de um fator arbitrário? Porém, essa
fórmula foi repetida frequentemente e se firmou com o intuito de ressaltar a
liberdade da Causalidade Divina para explicar a existência do Mal. E, dessa
sorte, chegou aos Pensadores dos séculos XVII e XVIII – mormente com Bayle,
Leibniz
e os Deístas
– que se debruçaram sobre a questão sem encontrarem novas soluções.
Bayle, por um lado,
afirmava ser uma questão insolúvel contida nos “mistérios de Deus”,
incognoscíveis à mente humana; Leibniz, por outro, buscava algum esclarecimento
nas soluções antigas, adaptando-as à sua concepção de mundo como “ordem que se
organiza espontaneamente a partir de Deus enquanto principio dessa
organização”. E Leibniz prosseguiu com o reaproveitamento de teses antigas,
para admitir um “determinismo não necessitante (ou seja, uma predestinação sujeita
a variações)” que embasava a liberdade do homem;
assim como a ideia de que o Mal não existe por si, sendo, apenas, um
ingrediente incômodo do “melhor dos mundos possíveis”.
“Causalidade Livre de
Deus” que, diga-se, é difícil de compatibilizar com a outra proposição de ser
Deus uma “Substância (ou essência) Necessária* (isto é,
capaz de agir apenas segundo a sua natureza, ou forma de ser, e dentro de
certos parâmetros, ainda que os mesmos sejam incomensuráveis e superlativos)”.
E tal incompatibilidade forneceu munição para vários de seus críticos, dentre
os quais o grande Voltaire.
De qualquer modo, com o
correr do tempo, combinaram-se as teses de “Plano Providencial” e Deus enquanto
“Substância (ou essência) Necessária”
e, ambas, com a noção judaico-cristã de Deus como “Causa Livre (que age sem qualquer tipo de limitação)”.
É claro que essa
combinação de conceitos diferentes criou vários conflitos e dificuldades e
mesmo a Filosofia contemporânea ainda não foi capaz de elucidar os muitos
questionamentos que se colocam, em virtude da ênfase dada à condição da
divindade ser “Real e Necessária”, conforme proposição do Movimento Romântico
em sua tese sobre a imanência de Deus.
Nota
do Autor - Em verdade, foi o filósofo árabe chamado Avicena quem enunciou pela primeira vez
a tese de Deus enquanto “Substância Necessária” e que, por isso, só pode ter
uma “Causalidade Necessária”, do que resulta que as coisas só podem ser o que
são. Essa concepção consolidou-se com o tempo, a despeito de trazer consigo
alguns elementos incompatíveis entre si, já que tira da mesma o conceito de
“Plano Providencial”, que na história da Filosofia surgiu da igualdade que se
deu ao mundo ou à sua ordem e Deus.
Encerrando este Ensaio, convido os (as)
interessados (as) a lerem o terceiro da série sobre “Deus”, segundo as
considerações feitas pelos Filósofos, onde será abordada a relação entre Deus e
a divindade.
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