segunda-feira, 30 de maio de 2011

Calar

Andei no tempo
do degredo.
Escondi algum
segredo
e nem sempre
fugi de medo.

Fiz versos inocentes
e rimas insolentes
para as paixões
indecentes.

E foi dolorosamente
bonito,
mas a vida passou
e eu fiquei.

Agora eu sei
que o Futuro
que pingava
da caneta,
virou Passado.

E a cor
que dele escorria,
perdeu-se no ralo.
Ou sempre que me calo.

domingo, 29 de maio de 2011

Jogo

Um verso colado
na parede,
relembra o
adeus
que não se quis;

e justo
quando a paz
esteve por um triz.

Coisas da vida:
uma angústia
recém-saída e
uma saudade
adquirida.

Junta-se os cacos,
as setas e os arcos
e se caminha
para as novas fases
desse jogo sem ases.

sábado, 28 de maio de 2011

Peso

A solidão
de um toque.
Por acaso
e arrependido,
como se
minha pele lhe
tivesse doído.

Tão pesado
ficou
o silêncio, que antes
nos unia.

Tão larga
ficou
a cama, que antes
nos ardia.

Tão longe ficou
o sonho comungado,
o riso gargalhado,
o desejo declarado
e o choro evitado.

Tão perto,
o amor
acabado.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Dragões

O cinza do Outono,
do tempo sem dono,
revive os dragões
que afastam
os amores dos portões.

Caminho novos mapas,
revido velhos tapas
e tatuo no braço
o tempo e o espaço.

Um bordel me chama.
E um prostituto sorriso
me declama,

quantas rúpias
custarão
minhas volúpias?

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Pré

Pressentia
o riso aberto,
o desejo desperto
e a vontade
de longe
ser perto.

Mas agora pressinto
o riso escondido,
o desejo proibido
e a vontade
de não ter ido.

Pressinto a
verdade
que minto;
e o desespero
preto retinto.

Pressinto a Saudade
que virá.
E a vida
"ao Deus dará".

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Haver

As tulipas
de Maio,
viajam terras
e mares.

Poetas Simbolistas
cantam liberdades
amarelas.
E mudas sinfonias
preenchem
os silêncios.

Marianne insiste
na Revolução
e o grito do Homem
dobra as
esquinas
do Mundo.

Sonhos delirantes
preenchem papéis
com insanos
poemas.
Alguém os lerá.
Alguem haverá.

domingo, 22 de maio de 2011

Chanson des Béret

A moça
da boina
traz a "Provence"
no sorriso.

Há densidade
de "Piaf"
em cada olhar;
e se presume
a Primavera
em Paris.

Em cada verso
que a poesia
dita,
o "Sena"
refaz o curso

e se sabe
que a moça
da boina,
espalha "Monet"
em cores
que pintam
a noite
de
Mariela.

              Dedicado à poetisa Mariela Mei

sábado, 21 de maio de 2011

Cisnes

Morrem os Cisnes
pelo vazio
que
transborda.

Morrem os Cisnes
pela vontade
calma,
do desejo
que já não há.

Morrem os Cisnes
pela só querência
de corpos juntos
em espaços
desiguais.

Morrem os Cisnes
pelo gostar de te
ouvir, te falar.
E te ver partir.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Ciclos

A água
que chove,
repõe
o que o Céu
levou.

A terra
bebe
a ressureição;
e

A flor
da Quaresmeira
escreve na Primavera
que a vida
sempre volta.

E no círculo
fechado,
vida e morte
são apenas
alamedas
que caminho.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Gregas Tragédias - 11 - OS PERSAS

Ésquilo

Cenário – ao fundo o Palácio Real, diante do qual se reúne o Coro, formado pelos anciãos chamados de “Fiéis”.

Época da ação – em 480 aC. logo após a Batalha de Salamina, na qual Ésquilo lutou e ajudou na vitória grega.

A 1ª apresentação em 472 aC. em Atenas.

Personagens:

1. Atossa, a rainha-mãe de Xerxes (ou Ataxerxes) e a viúva de Dario.

2. Coro – formado pelos anciãos e conselheiros de Xerxes.

3. Fantasma de Dario, filho e sucessor de Ciro, o Grande e pai e antecessor de Xerxes.

4. Xerxes – filho e sucessor de Dario e o Imperador Persa.

Sinônimo:

Iônios – gregos, ou helenos.

Talvez seja desnecessário dizer, por ser auto-evidente, que a maior singularidade dessa peça está no fato dela acontecer entre os persas, inimigos dos gregos. E quando se pergunta o porquê dessa preferência do dramaturgo, vê-se que ele agiu com maestria única, pois como poderia colocar na boca de personagens gregas os textos trágicos, que são a essência óbvia desse gênero, se naquele momento toda a Grécia vivia a euforia da vitória? Não haveria como; então e até para tornar maiores às glórias gregas, o bardo as colocou cantadas pelos inimigos recém vencidos. Nesse espírito, Ésquilo contrapõe a riqueza incalculável dos persas ante a simplicidade dos gregos, a soberba arrogância daqueles em contraponto com a humilde piedade dos helenos, a enorme diferença numérica e de apetrechos bélicos e mais algumas outras divergências que retratam o heroísmo de seus compatriotas.

Desse primeiro fato decorre outra particularidade: essa peça é a única que conta um fato histórico, as guerras médias, da qual Ésquilo participou como soldado. E esse condicionante, aliás, pode justificar certa simplicidade da mesma, pois atado a fatos reais e quase contemporâneos, o poeta viu-se impedido de dar asas à imaginação, como fez em suas outras obras, aqui presentes, desmembradas da trilogia chamada de “Oréstia”. Porém, se o aspecto poético sofreu pequenos prejuízos, houve a compensação em termos de História quando se vê que Ésquilo nomeou detidamente os chefes e povos aliados (ou subjugados e lutando contra sua vontade) aos persas, assim como relatou locais e fatos que serviram para melhor compreensão daquele evento que foi crucial para a manutenção da civilização Ocidental.

A peça ou o texto gira em torno dos fatos ocorridos na Batalha de Salamina, na qual os invasores Persas foram vencidos e escorraçados pelos gregos. As ações dramáticas acontecem em Susa, capital do Império de Xerxes, onde os anciãos se mostram preocupados com a demora e a falta de noticias das tropas; e depois com as conseqüências funestas da derrota.

A peça se inicia com os anciãos do Coro confabulando sobre as forças persas, a reunião dos contingentes de várias nações asiáticas, subjugadas e vassalas da Pérsia; sobre sua teórica invencibilidade e sobre os sentimentos humanos que envolvem os participantes e seus entes queridos, que sofrem por suas ausências. Como se disse no preâmbulo são citados nominalmente vários comandantes aliados, dentre os quais podem ser pinçados os nomes de AMISTRES, ARTAFENES, MEGABATES e ASTAPES, subordinados apenas ao Imperados; e alguns outros chefes, dentre os quais PEGÁSTENES, filho do rei EGITO (epônimo do país), ARTAMES da Tebas egípcia; MASISTES e IMEU os arqueiros por excelência; ARTREU e METROGARTES de SÁRDIS; TARIBIS e MÁRDON da MISIA etc.

Também falam de suas preocupações com um eventual motim, sobre a magnífica ponte (1) de barcos que Xerxes construiu no Helesponto e, principalmente da angustiante premonição que sentem, a qual, certamente, é alimentada pela falta de noticias e pela demora da campanha. E suas divagações só cessam com a chegada em cena da rainha Atossa, que recebe suas reverências dentro do magnífico carro que a trouxe à frente de numeroso cortejo de servas.

(1) conforme Homero, em “História”, Xerxes mandou amarrar a lateral de um barco à lateral de outro e por cima estender um assoalho de tábuas, formando uma extensa ponte que permitiu às suas forças atravessar o Estreito marítimo de Helesponto, evitando que seus exércitos tivessem que contornar todo o litoral do mar Egeu. Com isso pôde avançar com mais rapidez e sem tanto desgaste, sobre a Europa e, principalmente, sobre a Grécia, seu alvo preferencial. Ésquilo faz aqui uma bela metáfora sobre esse feito, comparando-o à colocação de um pesado jugo (usado em bois de tração) sobre a cerviz do mar.

O Corifeu toma a palavra e a saúda dizendo: salve mulher! A mais venerada dentre as mulheres “de fina cintura” que ornamentam a Pérsia. Salve, ó rainha que partilhou do leito de um deus persa e trouxe ao Mundo outra deidade preciosa.

Velhos e Fiéis persas, responde a rainha, acabo de levantar-me do leito em que dormi por longo tempo ao lado de Dario e trago meu coração angustiado por temer dois grandes perigos: o primeiro é relativo à segurança de nossa riqueza, de nosso tesouro, sem os homens que podem defendê-lo da ganância da multidão, que livre dos soldados já começa a demonstrar assustadora falta de respeito e de temor. Um risco, amigos, que ameaça também aos ricos que já não podem ostentar sua fortuna ou poder, por não terem quem os proteja da avidez do populacho. Meu segundo temor é relativo à nossa segurança física, também pela falta de quem a defenda.

Note-se que Ésquilo desenha a rainha Atossa com cores pejorativas. Mostra-a como uma matrona preocupada apenas com seu próprio bem-estar e extremamente arrogante. Seria, pois, uma mulher totalmente dissociada de seu povo, a quem julga como uma malta de ladrões perigosos. Aqui o bardo já retrata as elites persas como fúteis, arrogantes e distantes do próprio povo. É uma das criticas que faz aos inimigos recém vencidos, durante todo o texto.
Observe-se, também, que os temores da rainha são os mesmos que ainda afligem os ricos e poderosos atuais. O medo de que um levante, ou uma revolução popular termine com seus privilégios e até com sua vida.

Digam-me, pois, confiáveis aliados se concordam sobre a existência desses riscos e me digam palavras que possam tranqüilizar minhas inquietações.

O Corifeu responde-lhe dizendo que eles sempre estarão à disposição para lhe dar conselhos proveitosos.

Atossa retoma a palavra para dizer: “Fiéis Conselheiros”, desde que meu filho partiu para devastar a Grécia à frente de numeroso exército, eu passo as noites entre vários sonhos. Até a noite passada nenhum deles me foi muito claro, ou apavorante, mas o de ontem afigurou-se como uma certeza maligna e inabalável. Escutem-no: apareceram duas mulheres. Uma, com trajes persas e a outra com roupas gregas. Ambas eram mais altas e belas que as mulheres comuns. Soube, não sei como, que elas eram irmãs de sangue e que uma morava na Grécia que lhe coube por herança, enquanto a outra residia na terra dos “bárbaros”. Pareceu-me que brigavam e que meu filho Xerxes quis apartar-lhes, tentando colocar arreios nos pescoços de ambas. Uma se envaideceu, achando que era um ornamento, mas a outra se debateu e terminou por despedaçar o arreio com que Xerxes tentava atá-la ao carro. Em pouco tempo sua ferocidade a livrou do jugo, ficando a correia partida em duas partes. Nesse momento o pesadelo mostrou que meu filho caía e que Dario, seu pai, aparecia para consolá-lo, mas o filho vendo o pai enfureceu-se e rasgou seus trajes e se quedou nu e solitário. Terrível pesadelo, do qual, ao acordar ainda tinha o coração disparado. Logo depois deixei meu leito e fui me lavar no córrego impoluto, onde fiz oferendas e aproximei-me do sacro altar para consagrar o alimento ritual dos deuses. Na seqüência, leais anciãos, eu vi uma águia que fugia rumo ao altar de Febo (Apolo) tendo em seu encalço um feroz falcão que a destroçou com suas potentes garras. Essa visão causou-me profunda dor e creio que também em vós, tal narrativa cause desconforto, pois sabem que se meu nobre filho for bem sucedido na campanha contra a Grécia, virará um herói inigualável; mas se o contrário suceder, sua imagem será abalada, ainda que ele continue sendo o “rei do Mundo” se conseguir voltar.

Observe-se novamente o quão incrustado estava nos povos antigos a noção do “Direito Divino”. Mesmo que Xerxes não atingisse a meta proposta, ele “paira” tão acima do conjunto da sociedade que naturalmente continuará sendo o “Rei do Mundo” sem que ninguém lhe obrigue a prestar contas pelos custos em recursos e vidas despendidos na fracassada campanha. Esse “Absolutismo”, copiado da organização social de outros animais (as hienas, por exemplo), em que a posição social depende da boa ou má sorte no nascimento, e não na meritocracia, é uma herança que ainda hoje percorre as sociedades, não obstante os esforços que são feitos para exterminar essa praga milenar.

Responde o Corifeu que não deseja assustar ou criar falsas esperanças para a rainha e que, por isso, nada dirá sobre o sonho. Porém, ele a aconselha a dirigir-se, como simples devota suplicante, aos altares dos deuses e fazer as devidas libações e os devidos ritos; e que também peça ao finado Dario para que só as boas coisas aconteçam a si, à sua família, ao seu País e aos seus súditos. Que Dario retenha no subterrâneo em que está, todos os males. Isto, venerada rainha, é o que eu, Profeta obediente ao coração, recomendo-te.

Responde Atossa: não duvido de tua afeição a Xerxes e à Casa Real e é por isso que a ti eu revelei meu sonho. Sabia que tu me darias respostas favoráveis e sinceras. Que eu, ó deuses, tenha o poder de determinar que todos de minha Casa sejam abençoados. Agora, Fiéis, antes de voltar ao Palácio, digam-me para que lado fica Atenas? Em que parte do Mundo fica a Grécia?

Fica, responde o Corifeu, lá no poente, onde se oculta o Deus Sol no fim do dia. Muitas e muitas léguas nos separam, rainha.

- E meu filho quer conquistá-la?

- Sim, pois caindo Atenas, toda a Grécia cairá.

- Mas Atenas tem um exército poderoso?

- Sim, ó rainha. É o único capaz de vencer os inúmeros persas.

- Por que, Corifeu? Eles têm arqueiros como os nossos?

- Não. Eles lutam com lanças e espadas no corpo-a-corpo.

- E que rei esse exército obedece?

- A nenhum, rainha Atossa. Os gregos não são escravos, nem súditos de ninguém.

- Mas essa gente sem rei, sem ordem, nos venceria?
- Sim, é possível. Sua coragem vem do fato de lutarem por si próprios, por suas famílias, por suas terras. E não por um rei distante e inatingível.
- Oh, deuses! Exclama Atossa. O que tu dizes conselheiro? Que angústia terrível é isso para as mães dos nossos expedicionários.

Aqui se nota os elogios ufanistas que Ésquilo faz aos gregos, à sua democracia, à sua coragem e ao seu valor guerreiro que ganham amplitude por estarem “sendo dito por um inimigo”. São elogios procedentes de fato, mas apenas os espectadores mais inteligentes percebiam tratar-se de um genial recurso teatral. A maioria acreditava em sua literalidade, o que, talvez, servisse para afagar-lhe o orgulho pátrio.

Nesse ponto do diálogo o Corifeu nota a aproximação de um mensageiro e diz à rainha que em breve eles terão noticias sobre a guerra.

Estafado, o mensageiro entra em cena e diz: cidades da Ásia, rico solo da Pérsia amada, são funestas as noticias que trago. Em uma só batalha a nossa elite guerreira tombou. E, pior, outras calamidades eu tenho o dever de contar-vos. Nossa desventura é enorme, o “exército dos bárbaros” já não existe.

Observe-se que Ésquilo sempre coloca na boca de suas personagens a autodenominação de “bárbaros”. É claro que se o texto fosse escrito por um persa, qualquer autodenominação não teria esse caráter pejorativo, que remete ao conceito de incivilizado, primal, bruto.

O Coro, em sua primeira participação, entoa uma sofrida ária de lamentação, na qual conclama os persas a chorarem pela ruína que os abate: oh, persas! Chorem pelos soldados caídos. Nossas tropas foram dizimadas. E geme a dor de ter vivido tantos anos para verem essa desgraça no fim da vida.

Eu mesmo, pobre mensageiro, nem sei como aqui cheguei, pois já não tinha esperança de voltar ao lar. E vejam ilustres senhores, eu não repito as palavras de outrem. O que digo é na condição de testemunha ocular dos fatos.

O Coro recomeça sua cantilena e lamenta a ineficácia de tantas armas e guerreiros que passaram pelo solo pátrio.

O mensageiro, mais calmo, inicia seu relato falando dos cadáveres persas que recobriam as praias de Salamina e as redondezas.

O Coro diz que aquelas palavras, fazem-no ver o mar cobrindo e descobrindo os corpos de tantos amigos ali tombados.

Novamente se pode ver aqui a dimensão humana da tragédia desfechada pela guerra. O sofrimento das mortes, da orfandade, da viuvez. Os fatos deixam de ser meras estatísticas para contarem da dor humana.

Sim, diz o mensageiro, de nada valeram os arcos e as flechas persas, pois nosso exército foi aniquilado no choque contra os gregos.

O Coro se propõe a entoar outro triste canto para externar a profunda dor que sentem e o mensageiro chora e diz o quanto lhe custa ouvir os nomes de Salamina e de Atenas. O Coro concorda e diz sentir o mesmo, pois a lembrança de ambos remete às milhares de viúvas que ficaram com suas dores. Oh, deuses! Por que tanta dor?

Nesse momento, Atossa que escutava em sofrido silêncio, toma a palavra e se diz aniquilada pela dor provocada por tamanho desastre, mas que aceita resignadamente os desígnios dos deuses, pois nada mais se pode fazer. Em seguida dirige-se ao mensageiro e lhe pede que descreva todo o infortúnio. Que diga os nomes dos chefes que sobreviveram e os daqueles por quem irão chorar, pois estes foram escolhidos diretamente pelo rei e ao morreram deixaram seus lugares vazios.

Digo-lhe majestade que teu filho ainda vive.

Oh! Como essa noticia ilumina a minha alma, diz Atossa ao mensageiro.

Sim ele vive, mas ARTEMBARES é um cadáver nas rochas do Silênio (promontório em Salamina). Outro que tombou foi DADAQUES. Também TENAGON, da Báctria. Idem com LILEU, ARQUESTES e ARSAMES. Mortos estão os guerreiros da margem do Nilo e ARTEU e ADEVES. NÁTALO foi outro que pereceu igual ao mago ÁRABO, ao bactriano ARTANES. Também tombaram após lutarem bravamente, AMISTRES e ANFISTEU, ARIOMARDO, SEISAMENES, TÁRIBIS. Também caiu o bravo SIÊNESIS e muitos outros que me fogem da memória, ó venerada rainha.

Aqui nesse trecho é possível observar o caráter de texto histórico e não dramaturgo da obra. A longa relação dos comandantes mortos registrou para a História seus nomes e serviu como base para se estimar a abrangência do Império Persa, haja vista que cada qual é citado com seu lugar de origem e/ou morada (não citados aqui, por colidir com o escopo do resumo). Além do mérito artístico essa é outra contribuição dada por Ésquilo ao Conhecimento universal.

Atossa retoma a palavra e lhe pede que conte dos outros males que envergonham a Pérsia e causam os sentidos soluços; e que também conte do poderio grego que foi capaz de derrotar a numerosa força persa.

Responde o mensageiro dizendo que se o fator decisivo fosse a quantidade de soldados e de armas, a vitória certamente seria persa, pois as naus de Xerxes chegava a mais de mil, enquanto a dos helenos não chegavam a trezentos. Mas não foram as armas gregas que nos derrotaram; foi sim a vontade dos deuses. Atenas, minha rainha, teve seguramente a proteção dos “Imortais”.

Aqui Ésquilo, com mal disfarçada ufania, menciona a diferença entre os recursos gregos e os persas. Com isso reforça o sentimento de grandeza da vitória helênica.

E a terra dos atenienses ficou intacta, pergunta a rainha?

Sim, responde o mensageiro, e assim ficará enquanto seus defensores forem tão firmes quanto os que nós enfrentamos.

O elogio, agora, refere-se à qualidade guerreira dos soldados da Grécia. O bardo também deixa implícito um apelo para as novas gerações: que elas sejam tão valentes, disciplinadas e efetivas quanto foram seus antepassados.

Diga-me agora, mensageiro, quem foi que iniciou a contenda? Foram os atenienses ou foi meu filho Xerxes?

Oh, majestade! Um espírito perverso iniciou nossa perdição. Um grego que se pensava ser um traidor disse ao nosso Rei que suas naus fugiriam sem ordem, tão logo a noite caísse. Xerxes não desconfiou de falsidade do pseudo-traidor e mandou que naus formassem três barreiras paralelas para impedir qualquer fuga. E avisou que se alguma evasão houvesse o Comandante persa responsável, seria decapitado como castigo. Assim, majestade, foi feito. Três linhas, de frente para as naus gregas, vedando-lhes o caminho para o mar aberto. Em boa ordem estratégica, os persas aguardaram e quando o dia findou cada remador deixou seu remo e foi cear. Mais à noite os Comandantes ordenaram que as naus mantivessem a formação, mas quando o novo dia chegou, ouviu-se um cadenciado alarido dos gregos e o terror nos confundiu e paralisou. Percebemos que não fugiam, mas sim que nos atacavam. Suas naus avançaram em boa ordem e logo se ouviram seus gritos de guerra. Do nosso lado só se ouvia um clamor confuso. As naus helênicas começaram as colisões e os navios persas se entrechocavam, pois eram numerosas e o espaço de manobra muito pequeno. Cada barcaça persa chocava-se com outra e a arruinava, enquanto os tripulantes viam seus remos serem destroçados, o que lhes impedia qualquer manobra, ou retirada estratégica. A partir daí, as naus gregas envolveram com muita habilidade as nossas naves e as destruíram completamente. O mar, em pouco tempo, ficou repleto de corpos e de destroços. O mesmo aconteceu nas praias adjacentes. O que restou de nossa frota fugiu como pôde, enquanto os gregos matavam os sobreviventes que boiavam nas águas, como se eles fosse atuns ou outros peixes a serem abatidos. E a carnificina, majestade, perdurou o dia todo, encerrando-se apenas com a chegada da outra noite. Nunca, venerada Senhora, morreram tantos homens num só dia, como naquele.

A “Batalha de Salamina” é um dos eventos bélicos mais estudados por militares e interessados em todo Mundo. Nesse trecho, no original, Ésquilo fornece um painel estupendo do que foi a vitória grega. Temístocles, Comandante Naval Grego, usou sua inteligência, seu conhecimento e sua visão estratégica superior para reduzir a quase nada a imensa vantagem numérica de soldados e aparelhos que os Persas tinham. Na realidade ele fez dessa vantagem uma desvantagem, pois como um gigante aprisionado em curto espaço, o máximo que os persas conseguiram foi destruir seus pares. Uma verdadeira auto-mutilação.

Estupefata a rainha Atossa lamenta dizendo que o “Mar dos Males” trasbordou sobre os persas e sobre os outros “bárbaros”.

Repare-se na genialidade de Ésquilo que com uma simples locução – O Mar dos Males – conseguiu sintetizar e ilustrar à perfeição o horror e a impotência que tomaram conta da rainha.

- Oh, venerada rainha, isso que relatei não é nem a metade do infortúnio que caiu sobre nós.

- Diga, ó mensageiro, quais são os outros males?

- Inúmeros persas, jovens ainda, leais e bem nascidos tombaram vitimados por morte humilhante.

- Oh, amigos, quanta desdita! Como foram suas mortes?

Relata o mensageiro que à frente de Salamina há uma ilha estreita, sem ancoradouro, onde não é raro que o deus Pã, mestre dos Coros, apareça. Para lá, Xerxes mandou inúmeros desses jovens com o objetivo de massacrarem os gregos que escapassem da batalha no mar; e, também, para não estafá-los na difícil luta contra as correntes oceânicas. Porem, os gregos, já vitoriosos no mar, ali desembarcaram e através das pedras que jogavam e das flechas que atiravam abateram sem número dos persas aturdidos com aquele ataque inesperado. Aos que sobreviviam, os gregos davam a morte através da lança curta e da espada. Teu filho, rainha, estava postado em alta colina assistia impotente à derrota e com gritos lamentosos tentava organizar suas forças, mas de nada adiantaram seus urros e suas preces. Após o massacre só lhe restou dar a ordem de retirada que aconteceu sem ordem e acabou se transformando em fuga desesperada. A derrota era incontestável. São essas, rainha, as desgraças que faltava contar.

Deusas, que sorte adversa a nossa! Geme Atossa. Meu filho bem poderia ter-se conformado com o desastre ocorrido em Maratona, quando tantos “bárbaros” pereceram. Mas sua obstinação por vingança cegou-lhe a razão e só aumentou as nossas dores. Mas diga mensageiro, onde estão as nossas naus que restaram?

Perceba-se que as criticas a Xerxes tem inicio dentro de sua própria casa. Novamente se vê um comportamento típico dos humanos: menosprezar o derrotado, dizendo que faria tal coisa deste ou daquele jeito, mas sem ter nunca a coragem de efetivar tal feitura. Porém, se o derrotado fosse vitorioso, não faltaria quem dissesse que sempre acreditou no sucesso. Idiossincrasias dos Homens.

Não sei responder, rainha. Os comandantes dessas naus fugiram espavoridos para várias direções. Em relação aos soldados, eu sei que muitos morreram de fome, de sede e de exaustão. Outros pereceram afogados no rio Estrimon, que fora congelado por uma nevasca inesperada e logo depois, descongelado por um calor extemporâneo. Outros mais faleceram em decorrência dos ferimentos não cuidados. Apenas uma pequena fração das tropas que partiram é que logrou retornar à casa. Trazem os corpos feridos e as almas dilaceradas e por eles só se pode pedir que a Pérsia chore pelo Inferno em que vivem. Após esse triste relato, o mensageiro deixa a cena.

O Corifeu lamenta o peso de tantas adversidades e é acompanhado no pranto pela rainha, que vê na derrota a materialização do pesadelo que teve. Em seguida, Atossa dirige-se ao Coro e diz aos anciãos que como sua premonição foi concretizada, só resta fazer as oferendas e os outros rituais à deusa Terra e consolar as famílias dos mortos. Para tanto voltará ao seu Palácio onde apanhará o que for necessário para os ritos; porém, diz, eu lhes peço, ó ilustres conselheiros, que não saiam de onde meu filho possa vê-los se ele chegar antes de meu retorno. E caso ele chegue, ó anciãos, consolem-no de todas as maneiras, pois eu temo que ele acrescente mais uma desgraça à nossa dor, suicidando-se (como era habitual, nessas situações). Isso dito, Atossa sai de cena.

O Coro retoma a palavra e lamenta que Zeus tenha desbaratado o exército persa e, com isso, mergulhado SUSA, a ECBÁTANA e o resto do Império na negra noite do sofrimento. Lamenta pelas jovens e inconsoláveis viúvas, pelos órfãos e pelos pais que perderam seus filhos. Tantos idosos que agora já não contam com nenhum arrimo. E prosseguindo, o Coro faz uma critica direta a Xerxes, a quem acusa de ter levado tantos homens a uma morte inútil, em sua insânia de vingar-se a qualquer preço. Clama por Dario e exalta as virtudes do falecido imperador, enquanto canta um vaticínio que prevê o colapso do Império, com as Províncias recusando-se a pagar tributos, acatar as ordens do Imperador e reverenciá-lo como um deus. Já não existe a “Aura de Divindade” sobre a cabeça de Xerxes. Por fim lamenta que a grandeza do Império de Dario tenha sido enterrada sob as praias de Salamina, transformada no “Mausoléu do extinto Império Persa”.

Nota-se aqui o peso da derrota e se percebe, de acordo com a ótica de Ésquilo, o quão frágil era o alicerce desse Império, (construído sobre o medo e não por adesão respeitosa, senão voluntaria), que findou na primeira brecha que se abriu. Vários povos, vários idiomas, várias culturas forçadas a uma convivência que terminou junto com o último golpe grego. Pode-se ver na ex-URSS um modelo semelhante, nos tempos atuais.

Nesse ponto o Cenário muda para frente do túmulo de Dario, onde Atossa – em trajes simples e sem o carro - encabeça um longo cortejo de servas que portam as oferendas rituais. Em seguida, o Coro entra em cena. Atossa diz que do Palácio foi para ali sem o luxo do carro e nas roupas, pois a situação não os enseja e nem seriam apropriados a momentos tão tristes quanto aquele. Angustiada, diz que aquele que é bafejado pela boa sorte, acostuma-se aos ventos favoráveis; mas quem é atingido pela má sorte, só espera os ventos desfavoráveis, malfazejos. E é por isso que ela, doravante só esperará ventos furiosos, pois só calamidade é o que prevê. Na seqüência fala das ofertas que trouxe: flores, mel, água pura, leite etc. e pede que os outros evoquem Dario, enquanto ela prestará reverências às Entidades Infernais.

Responde o Coro dizendo que fará de imediato as libações aos deuses do Tártaro (a parte mais tenebrosa do Inferno), ao deus Hermes e à deusa Terra, pedindo-lhes que deixem a alma de Dario voltar ao “mundo dos vivos”, pois só ele conhece a cura para os males que afligem todos os persas. Só por ele saberão quando terminará tantas desditas. Em seguida os anciãos iniciam a evocação da alma do Imperador e a intercalam com gritos estridentes e com as batidas no peito com as mãos que se entrechocam. Entre rezas e súplicas entoam um hino cheio melancolia: “...ó finado rei, igual aos deuses...escuta nosso brado na bárbara língua que te é tão familiar...gritaremos nossos infinitos sofrimentos...ouve-nos nas profundezas da Terra...deuses do Inferno deixem vir à luz o nosso amado Imperador...oh, Aidoneu (epíteto do deus Hades) deixe-nos ver o Imperador que nunca levou seus soldados para a morte certa por causas menores...venha rei Dario...escute nosso pranto pelo duplo erro que resultou na morte de nossa juventude e na perda de todas as nossas naus. Oh, sábio Imperador divino...”

Nesse ínterim o espectro do Dario surge acima de seu túmulo e de pronto começa a falar: fiéis amigos e companheiros de minha juventude, eu vejo minha amada mulher em frente a este túmulo e também vejo minha cidade amada. Oh, como sofrem! Vossas queixas são comoventes, mas é muito difícil voltar a esse Mundo e para vir eu tive que implorar aos Deuses Infernais e alegar que minha fama gloriosa se fazia necessária ante tanto sofrimento; por isso, amigos, eu lhes peço que sejam rápidos e breves, pois meu tempo é escasso. Que desgraças caem sobre vossos ombros?

O Coro responde que não consegue falar, tampouco olhar diretamente para o Imperador, em razão da antiga reverência que prestava. Dario lhe pede que abandone os circunlóquios, pois seu tempo é curto. Porém, o Coro responde que tal comportamento vai além de sua vontade. Que lhe é impossível deixar de se inibir perante a figura do Imperador.

Dario, então, dirige-se a Atossa e lhe pede que seque as lágrimas e lhe conte toda a verdade. Se os Conselheiros ainda se inibem com sua presença, que ela diga tudo que aflige ao Império.

Responde-lhe Atossa: amado esposo, tu tivestes vida longa e feliz e eu me sinto alegre por tu já não estar vivo para sofrer o que estamos sofrendo. Saiba marido, que muitos persas gostariam de estar mortos como tu, ante a humilhação que nos foi imposta e a penúria que se aproxima. Dario pergunta se a desgraça decorre da peste ou de uma guerra-civil? Diz-lhe Atossa que nem de uma, nem de outra. A causa de tanto sofrimento decorre da acachapante derrota ante os gregos, que além do orgulho, minou os recursos humanos e materiais do Império.

- Mas qual dos meus filhos fez tal guerra?

Responde Atossa que foi Xerxes, o impetuoso. Sim, foi ele quem deixou sem homens todas as partes de nosso continente.

- Ele cometeu essa loucura por terra, ou por mar?

- Por ambas as rotas. Xerxes abriu duas frentes de batalha, ó rei, diz Atossa.

Os estudiosos da “arte” da guerra, dizem que essa situação, duas frentes de batalhas, é o pior pesadelo dos Generais, pelas dificuldades que apresenta no tocante à logística, ao avanço e recuo estratégicos, moral das tropas etc. Se na guerra de Xerxes essas duas frentes combatiam um só inimigo – embora cada Cidade-Estado fosse independente – o mesmo não se pode dizer de Napoleão e de Hitler que também utilizaram dessa estratégia com o mesmo resultado dos persas.

- Mas como ele atravessou o mar?

- Xerxes foi engenhoso e construiu uma ponte sobre o Helesponto usando antigas embarcações como base de flutuação (veja notas anteriores), diz a rainha-mãe com certo orgulho.

- Mas Xerxes ousou ligar os dois Continentes, espanta-se Dario?

- Sim! Mas penso que algo turvou sua razão.

- Um deus muito poderoso, certamente.

- Sim, mas que triste desfecho teve sua genial ousadia.

- Fale-me, rainha, das agruras que os legionários passaram; e que nos causou essa derrota tão dolorosa.

- Nossas naus foram aniquiladas e as forças de terra tiveram destino igual.

- Então foi uma luta deveras furiosa, pois levou à semi-extinção um país como o nosso.

- Oh, Dario, as perdas foram tão numerosas que em Susa não existe mais qualquer varão.

- Ai de nós, geme Dario. Perdemos um exército inteiro. Exército que era nossa garantia de proteção.

- Ai de nós, geme Atossa. Toda Báctria ficou sem homens; jovens e velhos.

- Xerxes infeliz, de quantos jovens ele privou nossas províncias?

- Conforme o Mensageiro, ele está só, com raros acompanhantes.

- Onde se consumou sua desgraça? Ainda há esperança para ele?

- Sinta-se alegre, rei, por ele ter sobrevivido. Por estar de volta usando a mesma ponte que mandou construir. Mas, só por isso, Dario.

- Mas é certo que ele vive? Que está na Ásia?

- Sim, diz Atossa. Os relatos são fidedignos.

Os oráculos divinos se confirmaram depressa, diz Dario. Zeus lançou sobre meu pobre filho a realização das antigas profecias. Eu acreditei que nossos deuses nos protegeriam por longo tempo, mas vejo que se um mortal quer se perder é o que basta para que os deuses o ajudem a cair no abismo. Pobre filho que tentou domar as águas do Helesponto. Que, insano, tentou desafiar as águas de Poseidon. É certo que uma loucura severa dominou sua razão. Agora, nessas circunstâncias, o que mais posso esperar? Talvez só o roubo da nossa imensa riqueza que eu acumulei em vida e que, agora, está sem proteção contra qualquer aventureiro que dela queira se servir.

Observe-se que Dario não culpa seu filho pela derrota. Concede-lhe a dúvida sobre sua sanidade mental e ao invés de dizer que a derrota aconteceu por mérito dos gregos e por inabilidade e/ou covardia do filho, debita-a à fúria de algum deus, ultrajado pela ponte que Xerxes construiu. Esse comportamento não é raro. Ao invés de culpar quem de fato errou, tenta-se transferir o erro para terceiros, buscando preservar - com resultados pífios - o familiar, ou o ente querido.

Pobre filho, diz Atossa. Perdeu-se por ouvir os falsos e perversos amigos que lhe diziam constantemente que ele era um indolente que vivia à custa da fortuna que o pai amealhou. Pobre Xerxes, por ouvir os maus conselhos cismou que tinha que aumentar a nossa fortuna e deixar de viver à tua sombra, ó amado marido. E foi por isso que ele tentou empresa tão temerária.

Note-se aqui a repetição de uma desculpa que ainda hoje é comum para justificar os erros de algum ente querido. A culpa será sempre das “más companhias”.

Dario, com súbita volta à racionalidade, pergunta a Atossa se foram mesmos os maus conselheiros que causaram a ruína presente? E, após citar alguns antepassados, como MEDO (epônimo da Média), CIRO, o Grande, o usurpador MÁRDIS e ARTAFERNES que repôs a legalidade, matando o anterior; rememora as campanhas que ele próprio realizou e, também, o quanto seu filho era rebelde aos seus conselhos e advertências.

O Corifeu enfim toma coragem e fala com Dario perguntando-lhe como levantar-se após golpe tão duro? Dario responde que só haverá um caminho: abster-se totalmente de fazer nova guerra contra os helenos. Mesmo, diz, que nossos exércitos sejam superiores aos deles, pois a maior força dos mesmos está em sua geografia. Em seu solo.

- Mas como, Imperador, a terra pode lhes ajudar militarmente?

- Vejam o sucedido em Esparta, quando um desfiladeiro defendido com bravura por Leônidas e seus poucos guerreiros anulou a nossa vantagem numérica e de aparelhos.

- Mas e se mandarmos apenas forças especiais, táticas?

- Nem assim, pois ainda se pode ver que grupos reduzidos de nossos soldados perambulam pela região sem conseguirem ao menos voltar; o que se dirá se forem encarregados de alguma ação?

- Que dizes, ó rei? Ainda existem persas que não conseguiram voltar para casa?

- Da multidão de soldados que Xerxes levou, restaram alguns que dão ao meu filho a falsa esperança de que triunfarão sobre os gregos, como forças de elite. Mas em breve, na planície de “Platéia”, a lança grega fará o sangue persa jorrar novamente. Como se fosse uma rubra fonte a lavar os pecados que eu cometi. E os que foram cometidos por Xerxes e seus soldados que tão logo chegaram se puseram a insultar os deuses gregos e a incendiar seus Templos. Agora, Zeus exige vingança por essa impiedade e logo o monte de cadáveres contará aos homens do futuro a nossa derrota. Que a todos sirva de lição essa nossa insolente ganância; e que cada qual se contente com o que tem e não deseje a sorte alheia e nem queira fazer mais que a frágil condição humana permite. Anciãos do Coro, Xerxes, meu pobre filho, carece de vossos bons conselhos, não o abandonem. Eu rezo para que ele os escute e aprenda com essa amaríssima lição.

Em seguida Dario dirige-se a Atossa e a aconselha a colocar seus belos trajes para bem receber a Xerxes que não tarda. Arrasado, diz Dario, será de ti, mulher, a única voz que ele gostará de ouvir. Vá minha amada, pois findou o meu tempo e eu retornarei ao Hades.

Na seqüência, Dario dirige-se ao Coro para dizer que embora estejam todos imersos em cruel dor, que alegrem seus corações pelas benesses que virão num dia futuro, pois tudo se transforma conforme a vontade dos deuses.

Dario desaparece e um longo e perturbador silêncio se faz enquanto as cortinas são fechadas. Ao reabrirem, mostram o primeiro cenário: a frente do Palácio Real.

Diz o Corifeu o quanto sofreu ouvindo a narrativa das desgraças do Presente e a das que ainda virão.

Atossa, já com belos trajes, repete as queixas do Corifeu e acrescenta a dor que sente por prever que seu filho está coberto por andrajos, como se fosse um reles mendigo. Irei, diz, ao Palácio buscar as mais belas roupas para ele e depois volto para esperá-lo com vós, ó Fiéis Conselheiros. É nessa hora amarga que eu quero lhe mostrar como eu o amo e o orgulho que ainda sinto por tê-lo como filho.

O Coro retoma a palavra e canta as delicias e os encantos que a vida tinha quando Dario reinava. Mostrávamos ao Mundo, diz, nosso glorioso exército que, então, era invicto. Nossos guerreiros, quase sempre, voltavam todos para seus lares, sem grandes provações e com ricos despojos. Quantas cidades conquistaram aquém do rio HÁLIS, como as situadas às margens do rio ESTRIMON, nas proximidades dos trácios. E, também, aquelas outras, além do HÁLIS, e as dos dois lados do Helesponto. Mais a PROPONTIS e as “bocas do Ponto”. As ilhas batidas pelas ondas do carro marítimo também obedeciam aos nossos monarcas, assim como as ilhas vizinhas da Ásia e chamadas de LESBOS, SAMOS, QUIOS, PAROS, NAXOS E MICONOS. E, ainda, as chamadas de ANDROS e TEMNOS. Também se renderam as ilhas que ficam entre os dois continentes, LEMNOS (a terra natal de Ícaro) e RODES E CNIDOS. Além dessas, as cidades CIPRIOTAS (da ilha de Chipre), de PAFOS, SOLOS e SALAMINA (homônima à grega), também estiveram sob nosso jugo. O mesmo com as opulentas cidades da IÔNIA (habitadas pelos gregos), que a Dario prestavam obediência. Mas agora, uma reviravolta chega com a fúria de uma tempestade enviada pelos deuses e estamos naufragando sob o peso da derrota que o Destino nos impôs.

Nesse trecho Ésquilo enumera as regiões dominadas pelos persas com o claro propósito de exaltar a proeza grega de vencer inimigo tão poderoso. Mantivemos a relação, talvez entediante, com a finalidade de expor o tamanho do Império Persa e colocar a questão: não teria sido essa imensidão, a sua própria fraqueza?

Nesse ponto entra em cena um pequeno carro coberto. Xerxes desembarca lentamente e vacilante segue em direção ao grupo de Conselheiros. A eles diz: infeliz de mim! Eu fui ao encontro dessa terrível provação. Com que fúria, ó deuses, o Destino abateu-se sobre a raça dos persas. Quantas provações eu ainda terei que suportar? Sinto-me caído ante vós, cidadãos de Susa. Oh, Zeus, por que não morri como meus soldados?

Ante essa última pergunta um (a) leitor (a) mais atento (a) e critico (a) responderia que “não morreu como os soldados, porque não lutou como eles”; ou “porque se escondeu covardemente atrás dos mesmos”. Seriam respostas lógicas, mas não foram (e não são) formuladas por causa do antigo medo pelo superior que reina entre os subalternos, que, assim, não desmascaram a hipocrisia dos “poderosos”.

O Corifeu responde que também chora pelo fim do poderoso exército e do esplendor persa; e pela morte de tantos persas.

O Coro geme pela juventude morta nos campos gregos, a qual só morreu por ser obediente a ti, ó Xerxes. Tuas ordens encheram o Hades com nossos arqueiros, antes invictos; e com uma multidão de soldados, que antes nos enchia de orgulho. Ó Xerxes, hoje, toda Ásia está de joelhos. Nossos sustentáculos se foram, ó filho de Dario.

Xerxes responde que ele é o culpado pela ruína e que só merece comiseração.

Retoma a palavra o Coro e diz que ao saudar o retorno de Xerxes, só pode gemer para exprimir seu desencanto, acompanhado de abundantes lágrimas.

Sim, diz Xerxes, daí prosseguimento ao seu canto lúgubre, pois o Destino voltou-se contra mim.

Vamos todos, responde o Coro, soluçar, ó rei. Gemer e lamentar os golpes que tu sofreste no mar. Choremos unidos pela desgraça que a abate um País, uma raça inteira.

Xerxes volta a se lamentar, dizendo que o deus Ares, da IÔNIA, aniquilou sua pretensão. Ares dos navegadores, selou nosso destino e ceifou nossas tropas na praia e na planície repleta de aflições.

Sim, brada o Coro, gritemos! Desejamos saber tudo! Onde estará a multidão dos teus soldados, ó rei? Onde estarão aqueles que ficavam ao teu lado, os ilustres SUSAS, PSAMIS, PÉLAGON, FARANDAQUES, DOTAMES, AGDABATO, SUSICANES, o leal recém chegado da ECTÁTANA?

Mantivemos essa relação de assessores de Xerxes para ilustrar, novamente, o grande poderio persa em toda a Ásia.

Constrangido, Xerxes balbucia: perdidos, mortos. Todos devem estar longe, caídos nas águas de Salamina. Viram-nos flutuando sem vida no Oceano de minha vergonha.

E FARNUCO, pergunta o Coro? E ARIOMARDO, o príncipe SEUACES? E LILEU, de nobres antepassados? E ISTECMO, MASISTRO, ARTEMBARES?

Ai de mim, Xerxes geme. Eles viram a odiosa Atenas, mas pouco depois expiraram na praia.

Enquanto prossegue relatando os nomes de persas sacrificados, Ésquilo propagandeia com indisfarçável ufanismo, a importância da vitória grega. Tanto no geral, quanto nesses relatos pontuais, Ésquilo também cria uma nova espécie de literatura, que ainda hoje é incomum: a versão da história segundo a ótica dos derrotados.

Ante essa nova citação de vários comandantes e assessores, feita pelo Coro, Xerxes suspira sua imensa dor pela perda de tantos companheiros leais.

Aqui, novamente, é possível enxergar os sentimentos humanos que ficam atrás dos dados estatísticos.

O Coro volta a lamentar perdas tão importantes, mas as debita aos deuses. Xerxes corrobora, dizendo que foram esmagados por forças inelutáveis.

Cabem as dúvidas se o Coro desvia o ônus da derrota para os deuses, por ainda temer uma represália de Xerxes; e se Xerxes acreditava efetivamente na culpa divina, ou só aproveitava-se dessa versão para fugir de sua responsabilidade.

As lamentações repetem-se, intercalando-se entre as de Xerxes e as do Coro. E antes que as cortinas se fechem, encerrando a encenação, o rei e os Conselheiros unem-se na derrota.

Esse final abrupto, sem menção a qualquer futuro, revela outra genialidade de Ésquilo que, desse modo, sinaliza a ruína e a queda completa do Império Persa, que estima acontecer em breve.

São Paulo, 17/05/2011

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Arte

Estranheza
dos delirios
que se propaga,
nos versos
que a noite
afaga
e que a chuva
alaga.

Surrelismo
da arte.
Desse mundo
a parte,
que descreve
a insânia
da vida
e da Verdade
esquecida,
na
Pedra Polida.

Desacerto
de ser
Objeto
e Sujeito,
na frase
e na vida
que nunca termina
sem metro
ou rima.

E se a vida vai
até o limite
que há,
resta a Arte
que sempre
haverá.

domingo, 15 de maio de 2011

Ibéria

Despe-se Cabral
da Sevilha
que o vestiu.

O Eldorado
que a estrela
traria,
perdeu-se na
bruma fria.

Ofélia chora
o verso perdido.
Mercedes,
o Cid proibido.

Fez-se calada a Poesia.
Fez-se Lorca
amordaçado,
em verde silêncio.



Referências às poéticas de João Cabral de Melo Neto e Frederico Garcia Lorca.

sábado, 14 de maio de 2011

Montevidéu

- Está com dó do cavalo, Salustiano?
- Ele está cansado, doutor. Veio trazendo todo mundo.
- Todo mundo, não. Aqui só tinha um monte daquilo. Passa o chicote...

Por algum motivo eu o vejo parecido com “Carlitos” de Chaplin. Não é sua caricatura e tampouco suas roupas imitam as do inglês, mas a patetice do seu olhar enche-me com a mesma ternura que já tive. Porque eu faço essa associação não sei direito, mas o "Chaplin patético" faz-me recordar a antiga e majestosa Montevidéu. Recorda-me a Montevidéu que agasalhava Miraflores de Ordonez y Cervantes (isso, igual ao escritor). Morena, alta, magra e com longos cabelos pretos. Escuros como os dias. Olhos que escondiam o carinho que os tempos não permitiam.


Ter onze anos é terrível; ainda não se é “rapaz”, mas também já não se é mais criança. O Marcos pôs no fogo os livros e as revistas 'da Rússia que o pai recebia. O velho disse que o Dr. Murilo lhe assegurou que “eles” não invadiriam aqui em casa, mas mesmo assim o Marcos queimou tudo que pudesse servir de prova. É estranho pensar no que mais eles poderiam fazer com ele. Desde que escapou da Ilha Grande que ele não pára de vomitar sangue. Ele diz que é por causa dos cacos de vidros que punham na comida, mas a mãe disse que é por conta dos choques e das bordoadas que ele tomou. O ruim é que a gente vê e não pode fazer nada.


Mas logo o suplicio dos “11 anos” termina. Daqui a dois dias eu farei os sonhados doze e entrarei de vez no “Mundo dos Adultos”; e com essa maturidade e “experiência de vida” o Eduardo me ensinará a fazer “Coquetel Molotov” e me levará na zona, onde eu conhecerei o corpo de uma mulher. Os coquetéis serão meu batismo de fogo na “luta contra os ianques e contra a burguesia”. A “mulher da vida” tirará a minha virgindade. Virgindade, diga-se, que eu já tinha perdido ainda em criança. Anisete, a prima ninfomaníaca, incumbiu-se da tarefa e agora eu temo que a “moça da zona” me machuque como ela fazia. Eu não posso contar para os outros, mas eu tremo só de pensar que essa “moça”, já adulta, me morda o pênis com muito mais força.


O diabo é que parece que o dia 13 chegará, mas não o dia doze. P... Será minha primeira festa de aniversário e eu sei que as meninas já estão fazendo as pizzas de sardinha e os meninos estão tentando empenhar os respectivos relógios para comprarem as bebidas. Teremos, certamente, Rum misturado com Coca Cola, pois, afinal, lutamos por um Brasil e por uma “Cuba Libre”.


Mas aos trancos e barrancos, o dia 12 chegou. E, então, o que começou a demorar foram os segundos, os minutos e as horas. O último adulto já tinha vindo, o “Pão Frito”, que militava com meu pai e estivera preso com ele. Aos poucos as meninas chegaram, logo depois os meninos e a vitrola foi pouca para tantos discos dos Beatles, e claro, música da Guerrilha, de Chico, de Caetano e de tantos outros que emprestaram voz e coragem para combater o monstro, cujo nome não se diz. Mas como tudo que é bom acaba rápido, assim que a Gina pôde dançar comigo eu comecei a ouvir os gritos, as cadeiras arremessadas, os pratos caindo e as pizzas de sardinha voando pelos ares. Demorei alguns segundos para entender o que acontecia, mas logo compreendi que a “Gloriosa” entrava na minha casa, na minha festa e na minha vida. Eram 23h59 do dia 12 de Dezembro de 1968 e um tenente com cara de japonês berrou vivas ao AI5 e por ter estourado o “aparelho” de um bando de perigosos “terroristas”.


Eu só me lembro do cassetete comendo. Minha mãe caída e meu pai algemado. E dos gritos. Muitos gritos. Deles e delas, eu nunca mais tive noticia. Restou um irmão e fui com ele para Goiás. Fui com ele para o “Movimento Armado”. Um bando de malucos que de manhã estudava Marx com obsessão e à tarde treinava tiro. Mas como o único revolver disponível era tão velho quanto o exemplar de “O Capital”, pouco se avançou nessas duas habilidades. Ninguém aprendeu direito essas duas matérias de suma importância para a “Redenção dos Povos Latinos” (meu deus, a gente acreditava nisso...)


O f... É que por não saber a teoria e menos a prática não fui admitido no Movimento de Guerrilha que lutava na Amazônia. Após alguns dias de frustração, decidimos fazer o caminho inverso e rumamos para o Sul e dali, para Montevidéu, foi um pulo.


Montevidéu é apaixonante à primeira vista. E a primeira impressão que tive é que estava em uma São Paulo bem cuidada. Largas avenidas, largos passeios, postes da iluminação pública com lustre em Art’decó, homens de sobretudo 7/8, mulheres de echarpes e a sensação de se estar em plena Europa. Igual a que eu conhecia, através dos livros que o velho tinha e que o Marcos queimou.


Mostrando-nos toda essa beleza, Mira falava em puro “portunhol” e com tal velocidade que me fazia perder quase todo seu discurso. Mas que eu perdesse o discurso e o rumo, pois lá estava Mira. Só ela eu não poderia perder.


A confeitaria na Avenida 8 de Octubre, cuja bomba de creme me faria cantar o “Deus Salve a América”; o vinho na Estacion Lorenzo Carneli e o perfume das rosas no casarão da Av. Batle y Ordônez foram sabores e perfumes que percorri com Mira, cientes de “nossa missão histórica”. Mira dos longos cabelos, que certo dia os encheu com as flores que vicejavam ao lado do campo de tiro e me fez ver como a Primavera em pessoa confirma que a vida existe.


- filho da p..., tu não te lembras que eu joguei no Inter? Eu, Didi da canhota, lembra?


Mira, cujos olhos espelhavam as estrelas quando o sono teimava de não aparecer, pois o que antes era bicho-papão virou “Operação Condor”.


- filho da p... Comunista ordinário, tu lembra agora?


Mira das longas e frias mãos, como se fosse a Isolda desse Continente tão triste. Mira do branco sorriso.

- leva a biscate pra baixo. Vou amolecer primeiro o “carne ruim” e pegar o “filé” depois.
- já ouviu falar dele, comuna? Não quer responder?
- Didi, traz o mata-cavalo!
- Slapt.
- ai
- slapt, slapt, slapt.
- ih, doutor, acho que foi pro saco.

Certo dia o doce olhar de um cavalo, escravizado em uma carroça, deu-me vergonha de ser Homem.

- slapt
- Doutor, acho que deu
- tá com dó?
- não, é que não respira mais.
- leva pra baixo.

Mira, meu primeiro corpo, meu primeiro amor. Pelas velhas ruas do centro de Montevidéu descobrimos cada sentimento escondido, cada medo reprimido e todo grito contido. Mira dos longos cabelos negros e das longas mãos cheias de carinho. Mira, que desapareceu no escuro do corredor. Na sujeira do Mundo.


Chegar à Argélia e ser recebido como “herói latino” encheu minha vida de falso sentido. E dali o tempo passou e a reta burguesia me sugou. Casamento, filho e emprego. Tríade que se consumiu pela lógica da Razão. E, então, eis-me de novo viajando pelo Mundo que não é maior que a caneta que escrevo. Na bolsa carrego um caderno e um lápis e vou escrevendo as banalidades da vida. As crônicas que faço, dão-me uma mesa e uma cama, mas só cantam o de sempre: a maldade do homem, o tempo da Guerrilha, a escravidão do bicho, um ou outro amor que se foi, ou que voltou; uma saudade que ficou, uma música que toca no rádio e no coração, outra assembléia no Partido, que sempre repete Marx redivivo “ad eternum” e sonha ser o que pensávamos ser.


Uma moça pára e fala com o “meu Carlitos”. Ele parece não entender o que ela diz e, então, sorri sem jeito. Logo depois, toca uma música alegre em que todos os instrumentos são utilizados. A moça deixa-lhe uma gorjeta no chapéu e sai insatisfeita. Eu continuo a ouvir-lhe, pois mesmo sem qualquer público ele toca a melodia toda, enquanto suspira por alguma saudade e balbucia "hasta luego".


Vida que segue no rumo conhecido. O câncer não cumpriu a promessa de liberdade e ao contrário do cavalo que a morte libertou, continuo escravo do corpo enquanto minha alma vagueia pela Montevidéu de antes. Montevidéu de Mira.


Personagens e lugares fictícios.Qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência.
São Paulo 16 de Maio de 2011





quarta-feira, 11 de maio de 2011

Antúrios

Lembranças
semi-esquecidas,
rodam a ciranda
entre os antúrios
da varanda.

Beijos proibidos,
corpos requeridos
e o desejo
dos enxames
remexidos.

Coisas da idade,
da gente da cidade,
entre as lamparinas
da santa castidade.

Amores de
recém virgens,
no tempo
sem cicatrizes
das paixões meretrizes.

Amores do Passado
que fogem da memória,
como alguma
banalidade
da História,

Ou como um fato da vida,
cujo fim e começo
foi só um tropeço.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Presença

Moça que o
tempo devolve,
qual canto
que tudo envolve
e lágrima
que nos comove,
ainda me sei
todo teu,
como teu,
é tudo
que te participa:

O Sol que
te bronzeia,
a presença
que tudo permeia
e o santo desejo
que o corpo incendeia
nessas praias
de Lua Cheia,
nessas noites
de uma saudade
e meia.

domingo, 8 de maio de 2011

Gregas Tragédias - 10 - EUMÊNIDES (as Fúrias; Orestes)

Dedicado ao anjo que se escreve com três letras. Feliz Dia das Mães!

Ésquilo

Época da ação – idade heróica da Grécia – c. 1.200 aC.

Cenário – a ação ocorre em duas cidades. Em Delfos, diante do Templo de Apolo. Em Atenas, no Areópago.

1. Eumênides – forma positiva e amistosa que os gregos usavam para referir-se às Erínias (Fúrias, latinizado e aportuguesado) na tentativa de aplarcar-lhes.

Personagens:

1. Apolo, deus.

2. Atená, deusa.

3. Coro – composto por seis Fúrias.

4. Escolta

5. Fantasma de Clitemnestra

6. Hermes, deus.

7. Orestes, filho de Agamêmnon e de Clitemnestra

8. Pítia, sacerdotisa já em avançada idade.

Lembra-se o leitor (a) que ao final da peça “Coéforas”, Orestes parte apressado para Delfos, aonde no Templo de Apolo irá se purificar pelo matricídio que cometeu. Purificação que lhe urge, pois as Fúrias (ou o remorso, a culpa) já iniciaram seu castigo.

A peça de Ésquilo inicia-se com a profetisa caminhando para a porta fechada do Templo. Antes, porém, de entrar ela pára e reverencia a “Trípode (2)” onde sentava para profetizar.

2. Trípode – do grego “Tripous”, “odos”; móvel dividido em três partes, no qual a Pitonisa proferia seus oráculos.

Após reverenciar o móvel, a Pítia inicia uma oração na qual cita as seguintes deusas e deuses: Terra, a 1ª deusa; Têmis, filha da Terra e a 2ª deusa (Segundo a tradição, foi Têmis quem inventou os Oráculos e instruiu Apolo na arte de profetizar. Era uma das esposas legitimas de Zeus); Febe (titânica), também filha da deusa Terra, a 3ª deusa; Febo (Apolo), natural dos Montes Delos que se fixou em Delfos, onde os filhos de Hefestos (os atenienses) o homenagearam e favoreceram para a conquista de toda a região. O rei Delfos, epônimo do lugar, instituiu o culto solene a ele e a Zeus. Em Delfos, Apolo tornou-se o porta-voz do Pai dos Deuses.

Na seqüência, a Pítia volta-se para a imagem da deusa Atená e para as dos outros deuses que invoca. Prossegue sua prece, dizendo que Atená também tem situação destacada em sua crença e no seu discurso. Depois, menciona as Ninfas, o deus Dionísio (chamado de Brômio), o divino rei Pleisto, o deus olímpico Poseidon e o Pai de todos, Zeus. Só depois de invocar todas essas deidades é que ela se dirige como Sacerdotisa, ao seu trono. Antes, porém, fala aos presentes no pátio: se aqui estiverem peregrinos gregos, que eles se aproximem conforme a ordem ditada pelo sorteio, pois eu profetizarei o que for inspirado pelos deuses. Na seqüência entra no templo, mas após poucos segundos volta horrorizada, cambaleante, escorando-se nas portas e nas colunas da edificação.

Aos que lhe esperavam, conta que ao se dirigir ao altar avistou um homem que carregava um punhal ainda ensangüentado e um ramo de oliveira recoberto de alva lã de carneiro. Cercavam-no figuras tão sinistras que nem às Górgonas podiam ser comparadas. Pareciam medonhas Hárpias sem as asas. Tinham o hálito que enojava a todos e, além disso, tinham olhos que vertiam um liquido pútrido e asqueroso. Não sei, diz a Pitonisa, quem é o suplicante, mas sei que só poderá encontrar ajuda com o próprio deus Loxias (= oblíquo, um dos epítetos de Apolo, referente aos seus vaticínios obscuros). Apenas ele, que sempre cura os homens e é um interprete confiável de Zeus e doutros deuses, terá poderes para salvar o pobre homem.

Na seqüência, a profetisa se afasta e as portas do templo são abertas mostrando Orestes sentado no meio do recinto, o deus Apolo, em pé, ao seu lado e as “Fúrias”, adormecidas nos bancos.

Dirigindo-se a Orestes, Apolo diz: nunca te abandonarei. Perto ou longe, sempre te protegerei. Veja que as Fúrias já estão dominadas, presas por pesado sono. Criaturas malditas que herdaram o Tártaro (a parte mais escura e tenebrosa do Hades. Talvez o “Inferno” cristão) e são odiadas pelos Homens e pelos Deuses do Olimpo.

Todavia, Orestes, fuja rápido, pois elas te procurarão por todos os lugares. Não deixe o cansaço te vencer e vá para a cidade de Palas (Atenas) onde deves ajoelhar-se e abraçar a estatua da deusa. Então, à frente dos Juízes, teremos as palavras corretas que te libertarão em definitivo. Tenho essa obrigação contigo, pois fui eu quem te mandou matar a própria mãe.

Orestes responde que Apolo é justo, quando isso é de seu interesse; assim, que continue a protegê-lo, pois só então sua libertação será completa e o sucesso de sua vingança terá sido verdadeiro.

Na seqüência o deus Hermes entra em cena. Apolo fala com Orestes e depois com o “Mensageiro dos Deuses”. Ao primeiro pede que não se entregue ao medo. Ao segundo, seu irmão, solicita ajuda para proteger Orestes, pois ele conta com a benção de Zeus, sempre favorável aos mortais que estão naquela situação. Que Hermes lhe ajude a protegê-lo até que ele seja julgado por outros Homens.

Aqui se menciona pela primeira vez um julgamento nos moldes atuais. É a primeira referência aos ritos processuais que, com o tempo, foram sendo lapidados até o formato atual.

Feito o pedido, Apolo sai e Orestes é conduzido por Hermes. Os três são substituídos na cena pelo fantasma de Clitemnestra que se dirige ao Coro, composto pelas Fúrias adormecidas. Diz-lhe a falecida rainha: Oh, como dormem! Qual a sua serventia Coro sonolento, se não vingam os insultos que recebo amiúde no Hades? Sim, lá, sou frequentemente chamada de assassina e outros nomes. E em meio a tantas humilhações não vejo nenhum deus apiedar-se dessa pobre mãe, assassinada pelo próprio filho. Ninguém se mostra contra o assassino. Oh, destino cruel! Vejam com vossos corações as chagas que trago, pois seus olhos estão vencidos por pesado sono. E lembrem-se de quantas celebrações e sacrifícios eu lhes fiz quando estava viva. Vamos, levantem-se! Orestes escapou e zomba de vós com sarcasmo. De pé, deusas das profundezas infernais! Eu, Clitemnestra, a invoco!

As Fúrias respondem com lúgubres uivos. Clitemnestra torna a lhes falar: oh, dragões malignos, por que vos acomodam? Vejam que o matricida tem amigos divinos que o protegem, enquanto eu não tenho quem me valha. E entre os uivos descoordenados do Coro, Clitemnestra continua sua cantilena atiçando o apetite dos monstros e incitando-as a prosseguir na caçada.

O leitor (a) notou que mesmo morta, Clitemnestra continua extremamente egoísta. Nada lhe importa que não seja seu interesse individual. Aqui, ela não se preocupa com a feitura da justiça, ou da injustiça, pois quer apenas saciar sua vingança pessoal.

Em seguida, o fantasma da rainha dirige-se particularmente ao Corifeu (a líder das Fúrias) dizendo: por que só persegues a caça em sonhos, como os cães que nunca saem do canil? O que fazes? Vamos, não deixe que cansaço impeça-te de queimar o sórdido Orestes com o tenebroso hálito de tuas entranhas. Extenue-o até deixá-lo invalido, prostrado. Vá!

Se havia dúvida sobre o sentimento da mãe pelo filho, aqui ela fica desfeita totalmente. Ao contrário da maioria de pais e de mães que perdoam todas as ofensas dos filhos e nem cogitam desejar-lhes o menor dos males, Clitemnestra mostra que o filho não lhe era nada. Ela mostra por ele apenas ressentimento e ódio.

Isto dito, o fantasma de Clitemnestra sai da ribalta e as Fúrias acordam. O Corifeu apressa o despertar de todas, ordenando que cada uma acorde a que lhe estiver mais perto. O conjunto do Coro, enfim desperto, reclama dos sofrimentos que experimentando. Oh, penas insuportáveis! A fera matricida rompeu nossa armadilha e fugiu rápido como uma lebre. Sim, outra Fúria diz: todo nosso trabalho e sofrimento foram inúteis. Uma terceira se queixa pelo sono ter-lhes vencido e que, por isso, tenham perdido a presa. O conjunto une sua voz enfim e classifica o comportamento de Apolo como mero e vergonhoso roubo. Justo ele, “um jovem deus (por serem da 3ª geração, a de Zeus, que foi precedida pela de Cronos e pela de Urano. Geração que também é chamada de Olímpica)”, surrupia as “velhas deusas”. Oh, filho de Zeus, só por piedade é que tu proteges o cruel facínora? Mas veja filho de Latona, ele é um homem crudelíssimo, um ateu que mata a própria mãe e que se livra da justa punição, graças a tua interferência. Como se pode ver Justiça nesse resgate, ou nesse roubo, que tu nos fez? Uma das Fúrias toma a palavra para dizer que aquela afronta a fere como se fosse um poderoso chicote na mão de cruel verdugo. Volta o Coro dizendo: é dessa forma que agem os deuses mais jovens? Tudo isso só para conquistar mais poder no Mundo, sem se importarem com a Justiça. Outra Fúria diz que vê o Oráculo de Delfos – o centro do Mundo – maculado pelo acobertamento de tão odioso crime. O Coro diz que Apolo transgrediu antigas Leis e por um mero mortal sujou seu próprio lar. Com isso, outra Fúria diz: ele só conseguiu ganhar o meu ódio, sem conseguir salvar seu protegido. Orestes não se livrará de nós! Aonde for encontrará um vingador.

Nesse instante Apolo sai do seu Templo com um arco preparado para atirar. Irado, ele grita para as Fúrias: saiam daqui! Deixem minha casa! Andem, pois caso contrário as “serpentes sibilantes (metáfora para as flechas) sairão do arco, fazendo-as vomitar o sangue que tomaram de tantos humanos. Vossas aparências horrorosas já indicam, por si, que vosso lugar é entre os bárbaros que degolam, empalam, mutilam etc. Ouviram monstros odiados pelos deuses? Saiam desse Templo, onde faço profecias verdadeiras e úteis. Não atormentem os vários visitantes que aqui vêm.

Responde-lhe o Corifeu que ele, Apolo, não é um mero cúmplice, mas o verdadeiro artífice e culpado pelo matricídio.

Como? Pergunta-lhe o deus. Ou tu só disseste essa asneira pelo gosto de falar?

Não, responde o Corifeu. Foi teu Oráculo que o mandou matar a própria mãe.

O Oráculo, Apolo retruca, mandou-o vingar o pai.

Sim, mas tu lhe prometeste proteção, antes mesmo dele ter sujado as mãos com o sangue da mãe.

Sim, prometi e é por isso que o mandei vir a mim para que eu o purificasse.

Mas se é assim, por que tu impedes que minhas irmãs fiquem aqui? Nós só queremos cumprir com nossa obrigação de punir o culpado.

Obrigação? Que obrigação? Vocês sempre se apóiam nesse argumento.

Sim, cumpre-nos banir do lar o sórdido matricida.

E o que fizeram com a mulher que matou o marido?

Nada. Eles não eram parentes. Não tinham o mesmo sangue, diz o Corifeu.

Argumento que não se aplica quando o assassino é o pai Agamêmnon e a vitima sua própria filha, Ifigênia. Novamente, nada é comentado sobre esse assunto. Por que as Fúrias não o atacaram? Resposta racional não se tem e nem seria Ésquilo obrigado a fornecê-la, pois ele não escreveu uma tese sobre o Direito Grego, mas sim uma Dramaturgia onde as “licenças poéticas” são plenamente aceitáveis. O mesmo se pode dizer doutros Trágicos em suas maravilhosas peças.

Apolo retruca dizendo: vocês são degradadas. Apequenam esse sagrado pacto entre homens e mulheres que é abençoado por Hera e pelo próprio Zeus. Também afrontam Afrodite ao não darem o devido valor ao sentimento do amor conjugal que ela deu aos Homens. Fica claro porque, então, vocês não punem o crime entre esposos e até o esquecem. É por essa parcialidade, no torto julgamento que vocês fazem que eu não reconheço como justificável a perseguição contra Orestes. Vossos corações só querem castigar um crime, enquanto se esquecem dos outros. Mas deixe estar, a poderosa deusa Atená será justa em sua avaliação.

A Fúria líder responde que jamais deixará Orestes livre. Impune. Apolo lhe diz que então vá, pois isto só lhe trará sofrimento. O Corifeu replica que não. Que nem ele, deus do Olimpo, pode tirar seus poderes, seus privilégios. Responde Apolo dizendo que suas palavras são vazias; que seus poderes pouco lhe importam. O Corifeu retruca: fala-se do seu grande poder, mas eu sou impelida pelo sangue de uma mãe e é com esse estimulo que perseguirei Orestes. Volta Apolo para dizer: pois seja, com igual denodo eu o defenderei. Nós outros, deuses do Olimpo, não toleramos ouvir uma súplica dos mortais e não vir em seu socorro. Para os deuses e para os humanos é impossível ficar estático ante um suplicante que sofre.

Nesse ponto a peça muda de cenário. O Coro das Fúrias se retira e as portas do Templo são fechadas. Quando as cortinas são reabertas aparece a Acrópole com o Templo de Palas (Atená) e a imagem da deusa à frente do mesmo.

Entram em cena Hermes e Orestes que imediatamente abraça-se a estátua da deusa dizendo-lhe: aqui cheguei por ordem de Apolo. Deusa soberana acolhe-me com clemência. Já não tenho sangue nas mãos, pois o convívio com as pessoas generosas que me abrigaram por tanto tempo, lavou minha mácula. Sempre obediente às ordens de Loxias (Apolo) chego ao teu sagrado Oráculo e aos pés de tua imagem aguardo com humildade o veredicto da Justiça.

Nesse ínterim chegam as Fúrias, que tão logo despertaram seguiram as pegadas do fugitivo Príncipe de Argos. O Corifeu logo exclama: aqui está o facínora! Já vejo seus rastros. Como determinados cães de caça seguimos os pingos de sangue que ainda caem de suas mãos. Estamos exaustas após percorrer toda a Terra a seguir-lhe, mas aqui o encurralamos. As outras Fúrias, em uníssono, falam ao Corifeu que ela atente em tudo para que Orestes não lhes fuja de novo. Depois, cada uma delas fala com a outra, até que uma o vê ajoelhado aos pés da imagem divina e diz que ele quer ser julgado por seu crime. Outra Fúria responde que tal julgamento não pode ocorrer, pois o sangue derramado não reflui e está perdido para sempre. Outra, ironicamente, pede que Orestes deixe-lhe beber seu sangue para aplacar a sua sede. Outra delas ameaça extenuá-lo e levá-lo, ainda em vida, para o pior abismo do Universo onde ele pagará por seu crime. Mais uma fala complementando a ameaça da anterior: lá, naquele terrível abismo, ele encontrará outros impiedosos que afrontaram os deuses, ou seus hospedeiros, ou seus genitores. Cada qual sofrendo o horrendo castigo imposto pela Vingança. A última Fúria diz: o deus Hades (epônimo do Mundo dos Mortos) cobra sem compaixão a divida contraída pelo mortal.

A crença na pós-morte foi deveras importante no Mundo Antigo e é interessante notar como seus conceitos chegaram integralmente aos nossos dias. Vê-se que o avanço tecnológico não é suficiente para acabar com lendas tão antigas. Essa carência humana de buscar algum sentido para o ato de viver pode ser vista, entre outras, como uma forma do Homem imaginar que paira acima da Natureza. Tudo nasce, vive e morre cumprindo seu papel no mosaico natural, cujo espaço e tempo de cada indivíduo são pré-determinados; exceto para a esperança humana, que se permite um Tempo extra (num lugar imaterial) após desaparecer do Espaço que a Natura lhe havia concedido.

Orestes, em resposta, diz que sua desventura ensinou-lhe que há várias formas de purificação e que há o tempo de calar e o tempo de falar. Agora, orientado por um sábio, é chegado o momento de falar. A mancha do matricídio que cometi desbotou graças à purificação do deus Apolo. Outrossim, o grande número de pessoas que me hospedou, sem temor e sem rancor, deu-me a certeza que o Tempo tudo apaga em sua passagem. Assim, purificado por um deus e também pelos Homens é que venho a ti, deusa querida, pedir com os lábios imaculados o teu socorro. Saiba Atená que se tu me favorecer conquistará sem luta a minha admiração e minha fé, bem como a de todos os meus súditos na grande cidade de Argos.

Note-se, novamente, que um mortal oferece suborno a um deus como se a sua proteção nada tivesse de divina. Como se fosse um mero negócio humano.

O Corifeu, porém, em tom de ameaça diz a Orestes que sua súplica é vã, pois tal como Apolo, Atená também não o ajudará. Ficará, diz, na mais completa solidão e após sua morte a tua alma será abandonada pela Felicidade. Será mera sombra a ser eternamente sugada pelas Entidades Infernais.

Orestes cospe em sua direção, demonstrando seu desprezo.

O Corifeu, indignado, protesta contra aquele gesto de desdém e o ameaça de ser devorado ainda vivo. As outras Fúrias, de mãos dadas, aproximam-se do Príncipe Argivo e dançam de maneira tosca e bizarra enquanto entoam um Canto que tem o poder de imobilizar a vitima. Fechando o circulo, dizem que são as “Vingadoras Implacáveis” e que falam pelos mortos em testemunho contra os vivos. Dizem que o homem sem crimes viverá sua vida sem que elas o importunem, mas o celerado, com as mãos sujas do sangue alheio, experimentará a força de seu ódio. O Corifeu invoca a sua mãe, a deusa Noite, queixando-se que Apolo está atrapalhando sua missão de castigar os culpados, estejam vivos ou mortos. Reclama que o deus tenta humilhar-lhes ao tentar salvar Orestes, autor de um dos piores crimes: o matricídio. O Coro, à frente do Príncipe, entoa o hino dedicado às Sagradas Fúrias. Inebriante, este hino provoca tais delírios que os mortais sentem a mente imobilizada. É um canto isolado, sem acompanhamento da Lira, que apavora de tal modo que todos os movimentos escapam de quem o escuta. Nele, está escrito que essa é a tarefa que o deus Destino deu às Fúrias por toda a Eternidade: perseguir implacavelmente as criaturas, cuja demência lançou no charco do crime; até que elas sumam no mais fundo dos Infernos.

Observe-se que no arrazoado das Fúrias já existia um atenuante para os homicídios; ou seja, a demência, a insanidade, ou incapacidade mental do criminoso. Contudo, esse atenuante não era considerado pelas mesmas, ao contrário de hoje que serve, em certos casos, para declarar um réu demente como inimputável.

Nem a morte libertará de nossas garras o homicida. Já nascemos para essa tarefa e nem os deuses podem interferir. Não freqüentam nossas casas ou festas, mas também nunca os bajulamos. Destruiremos todas as casas onde a deusa “Discórdia” se instalar e disso resultar um crime de morte entre os consangüíneos. Por mais poderoso que o culpado seja logo iniciamos a perseguição até consumir suas últimas chamas. É esse nosso papel: evitar que alguma “divindade nova (1)” tenha que se ocupar desse horripilante mister.

1 – por “divindades novas” entenda-se os Deuses e Deusas do Olimpo, a 3ª geração – Urano, Cronos e Zeus; em contraponto com as “Divindades Velhas”, dentre as quais as próprias Fúrias, surgidas no inicio dos tempos.

Livramos-lhes dessa terrível tarefa, mas em contrapartida estabeleceu-se que nenhum deles tivesse autoridade sobre nós. Por isso, o sórdido Orestes não pode nem ser levado à presença de uma deidade. O próprio Zeus considera maldita essa classe de mortais, sujas com o sangue. As maiores glórias para os Homens, mesmo que trazidas do Céu para a Terra, perdem seu brilho se forem tocadas por nossos véus e pelos efeitos nefastos que se originam em nossas danças. Saltamos com vigor e pisamos até nos corredores mais velozes. Orestes, insano, caiu num terrível delírio que o perdeu (horrenda mácula cobriu seus olhos, como se o cegasse) enquanto pesada nuvem já envolvia o Palácio paterno, segundo os rumores que nos chegaram. Somos lentas para pensar, mas ágeis para executar, nunca esquecendo os crimes praticados. Humildes e desprezadas temos, no entanto, poder para cumprir nossa missão. Somos como um horroroso pântano sem Sol, longe dos outros deuses e intolerável para os vivos e para os mortos. Por isso, que mortal pode ouvir sem temor a “Lei” que a Parca nos deu? Embora moremos num negro abismo, ainda é nossa a antiga prerrogativa de fazer justiça. E não nos faltam honrarias.

Nesse ínterim entra em cena a poderosa deusa Atená dizendo que desde as margens do rio Escamandro (em Tróia, cuja terra lhe foi consagrada pelos gregos vitoriosos) escutou um apelo angustiado e que célere fez o caminho de volta, a bordo de sua égide transformada num carro puxado por fogosos corcéis. Agora, aqui chegada, eu vejo um bando de seres estranhos que não me causam temor, mas um espanto natural e condizente com suas bizarras figuras. Na seqüência fala às Fúrias e a Orestes: quem são vocês? Tu, ajoelhado aos pés de minha imagem; e vós, que não se parecem com os mortais, tampouco com os deuses. Por que insultaram a quem não vos deu motivo? Por que cometem essa iniqüidade?

O Corifeu responde explicando que são descendentes da deusa Noite e que são conhecidas, no fundo da Terra, onde têm sua morada, como “Maldições”. Logo, deusa, tu conhecerás nossas prerrogativas e obrigações.

Sim, responde Atená, diga-me claramente para eu saber.

Estamos em sua casa buscando um assassino que matou a própria mãe. Nossos gritos que ouvistes foram dados nas ocasiões em que ele nos fugiu. Que escapou de ser levado ao “lugar onde ninguém se sente alegre”.

Atená a interrompe para perguntar-lhe se alguém ou alguma circunstância levou o criminoso a cometer tal crime?

Mas pode alguma compulsão levar ao matricídio? Responde perguntando o Corifeu.

A palavra volta para Atená que sentencia: já que aqui estão as duas partes e eu só ouvi uma delas, quero ouvir à outra antes de exarar qualquer comentário ou julgamento.

Pretextando uma questão de ordem, o Corifeu diz: poderosa deusa, ele nem jurou. Nem quis que nós jurássemos (que diria a verdade, como acontece nos julgamentos atuais).

Sim, diz Atená, quereis parecer justa, mas não estais sendo. Como? Responde a Fúria. O que pretendes dizer? Nós, Fúrias, não temos capacidade de te compreender. Diz a deusa que os Juramentos são apenas uma formalidade, pois não podem transformar a Justiça em Injustiça. Então deusa, retruca o Corifeu, ouve-o e julgue corretamente. Mas por quê? Pretendes que eu seja a árbitra dessa questão? Sim, por que não, assente a líder das Fúrias. Assim prestaremos reverência a ti, que é digna da nossa veneração.

Atená, então, dirige-se a Orestes e diz: fala-me primeiro quem tu és e donde vens. Qual é a tua raça e quais são teus infortúnios? E se tens confiança na Justiça? Vejo que se apega à minha sagrada imagem com o mesmo fervor que Ixion, o rei dos Lápitas, segurava a de Zeus enquanto buscava abrigo após cometer mais um de seus crimes cruéis. Depois, suplicante, diga-me o motivo de estar sendo perseguido.

Orestes responde: Atená soberana, eu começarei pelo fim, pois assim logo eliminarei qualquer preocupação ou pré-julgamento sobre a minha pessoa. Não sou um bandido, nem um maldito. E nem tenho sangue sujando minhas mãos, pois tive purificações em todas as terras que conheci e de todas as pessoas que me acolheram, sem medo ou rancor. Aqui a Lei impõe silêncio a um criminoso até que ele seja purificado, mas como eu não sou um facínora posso lhe dizer que sou de Argos, filho de Agamêmnon – que tu bem conhece e que, com tua ajuda, conquistou Tróia. Após a guerra, meu pai voltou ao lar onde minha mãe o matou traiçoeiramente, como comprovam o tecido, a malha e a banheira que foram usadas no triste episódio. Esse acontecimento eu não vi, pois desde meus primeiros dias ela meu exilou na corte de Estrófio, na Fócida. Do exílio só voltei na idade adulta e o fiz a pedido do espírito do meu pai que reclamava vingança e a conselho e incentivo do deus Apolo, que a par do encorajamento, ameaçou-me com terríveis castigos no caso de eu não cumprir a vingança, matando Clitemnestra e seu amante Egisto. Chegando a Argos cometi os assassinatos, crente na palavra de Apolo de que eu só sofreria algum castigo se não o fizesse; mas como tu vê, não foi isso que sucedeu. Desde aquele dia estou sendo implacavelmente perseguido pelas Fúrias Vingadoras, como se eu fosse um criminoso qualquer. Assim, nobre deusa, se não houver qualquer atenuante em meu caso, pelo fato de vingar meu pai e obedecer a um deus, aceitarei resignadamente a pena que tu me impuser.

A versão de Orestes e seus argumentos causaram efeito na deusa que viu o caso de outra maneira. Não era um crime banal, mas, ao contrário, uma questão complexa por envolver justa vingança (sic) e intromissão de um dos deuses. Responde Atená que a complexidade da questão estava além de seu poder ou de seu julgamento. De um lado, Orestes com suas razões e seus atenuantes; doutro lado, as Fúrias e suas prerrogativas e suas obrigações. Prerrogativas, aliás, que se não forem respeitadas resultarão em graves conseqüências para a cidade de Atenas. Assim, diz a filha preferida de Zeus, eu indicarei doze Juízes de crimes sangrentos. Escolherei os melhores cidadãos e todos se comprometerão, por Sagrado Juramento, a julgarem sem qualquer preconceito, sem qualquer tendência pessoal e sem qualquer outra iniqüidade. Destarte esse “Alto Tribunal”, assim constituído e assim regido, terá perpetuamente essa nobre missão.

Note-se como foi o surgimento do Tribunal do Júri, enquanto Instituição civilizatória. A bruta vingança deixaria de existir, sendo substituída pela apuração da verdade que há em cada caso. Merece atenção, também, o fato da Instituição ser delegada aos Homens. Ao contrário da “Vingança” que era atributo de alguns deuses, como as Fúrias, por exemplo, que a todos os homicídios puniam sem considerar a existência de algum atenuante (legitima defesa, por exemplo), ou de algum agravante (crime contra indefesos, por métodos cruéis, por motivos fúteis etc.).

Prosseguindo, Atená diz que as duas partes devem preparar as suas provas, suas testemunhas, seus argumentos etc. para reforçarem suas razões. Enquanto isso, diz, escolherei os melhores cidadãos de Atenas para que julguem o caso corretamente, fiéis ao juramento de não decidirem contrariamente aos mandatos da boa justiça.

O Coro das Fúrias assume a cena e faz um prognóstico sombrio: se esse matricida for favorecido no julgamento, logo se instalará uma grande subversão resultante dessas novas Leis. As justificativas que aceitarem para seu crime, em breve acobertarão crimes similares. E isto se dará porque nós, Fúrias, deixaremos de punir os homicidas. A partir desse momento abrir-se-á as portas para todos os tipos de celerados que antes continham suas perversidades pelo medo que nós impúnhamos. Sim, o medo é bom e deveria estar sempre vigilante. Mas, findo o temor, os mortais atingidos por crimes, em vão nos invocarão, pois nada poderemos fazer. Ficarão os homens subjugados pela anarquia, haja vista que a desordem reinará levando ao fim a vida feliz. Um sofrimento adicional, aliás, pois no fim todos serão colhidos pela morte e seus crimes alongados pelo beneplácito da demora na Justiça os farão sofrer com mais rigor, do que seriam antes.

Note-se que Ésquilo não escapa da regra grega que associa a Felicidade com a Ordem, a Organização. E a desgraça com a Desorganização. Esse conceito norteou o Pensamento grego de forma quase unânime, tendo em Aristóteles seu expoente máximo. Note-se, também, que a Fúrias exaram um raciocínio torto e primário, muito em voga nos dias de hoje, que associa o respeito aos “Direitos Humanos” como incentivos aos criminosos. Desse primarismo intelectual é que surge o apelo da maioria da população atual para o endurecimento na repressão como única forma de combater o crime.

Ao fim do discurso do Coro, Atená volta à cena acompanhada pelos Juízes escolhidos, que se sentam de frente para o público enquanto o Coro ocupa as laterais do proscênio. Orestes, como réu, a um gesto dos Juízes fica em pé. Atená ordena que o Arauto que a seguia desse o sinal para que a ordem e o silêncio fossem respeitados pelo povo. Diz-lhe que o sinal tenha tal força que seja ouvido até nos Céus, pois será o prenúncio das novas Leis que ela promulgará para que o Tribunal do Júri possa julgar com acerto e retidão, até o fim dos tempos.

Apolo adentra ao recinto e o Corifeu pergunta-lhe o que ele faz ali? O que tem a ver com aquele processo? Em resposta, Apolo diz que ali veio para testemunhar a favor do réu, Orestes. Este mortal, diz, além de meu suplicante é um fiel sempre bem vindo ao meu altar. Fui eu quem o purificou do sangue que derramou. Aqui serei seu defensor, pois eu sou o responsável pelo matricídio que ele cometeu.

Na seqüência, Apolo pede que Atená abra os debates. Atendendo-lhe a deusa dá a palavra às Fúrias. Cabe-lhes, diz, que nos informem com clareza sobre os fatos a serem julgados. O Corifeu diz que assim fará e que falarão pouco, apesar de serem muitas as Fúrias presentes. Para Orestes diz: responda sucintamente a cada pergunta.

- Mataste tua mãe?

- Sim, não posso negar esse fato.

- Essa primeira queda já nos favorece, comemora o Corifeu; mas Orestes retruca:

- queda? Ainda não caí, por que te vanglorias?

- como te atrevestes a matá-la?

- degolei-a com minha espada.

- quem te persuadiu?

- foi o deus Apolo, que agora é minha testemunha.

- como, o deus-profeta comandou o matricídio?

- sim, foi ele. Mas não me queixarei de meu destino.

- será? Não pensarás assim após o veredicto, diz o Corifeu.

- eu tenho fé em meu pai e creio no seu auxilio, responde Orestes.

- tu que mataste a própria mãe ainda tem confiança nos mortos?

- sim, pois foi ela própria que se sujou em dois assassinatos.

- dois? Como assim, dois? Explica-te aos Juízes.

- matando seu marido e meu pai, responde com certa ingenuidade o Príncipe Orestes.

- sim, diz o Corifeu, mas ela já se redimiu sendo assassinada, enquanto tu vives apesar de ter matado quatro.

- quatro? Como assim?

- sim. A tua mãe, a viúva de Agamêmnon, a amante de Egisto e a mãe do filho deste; responde em forma de zombaria a ardilosa Fúria.

- por que vós não a perseguistes como fazem comigo? Por que não a exilaram enquanto estava viva?

- o Corifeu responde, motivo é simples: ela não tinha laços de sangue com a sua vitima.

- Orestes, novamente ingênuo, pergunta: mas tu pensas que ela e eu somos consangüíneos?

- sim, diz o Corifeu, pois não foi ela quem te deu à luz. Agora tu renegas o precioso vínculo de mãe e filho?

- percebendo que caía na armadilha que a Fúria lhe armava, Orestes pede que Apolo dê o seu depoimento. Explica-lhes, ó deus, que quando a matei estava agindo segundo a Justiça. Não nego o fato, mas quero tua opinião se esse homicídio pode ser justificado? Desfaze a dúvida dos Juízes.

Apolo cumprimenta cerimoniosamente os membros do júri e inicia sua fala: esse Instituto, recém fundado pela deusa Atená será, posso profetizar, um reduto de equidade e da reta justiça. Do meu Oráculo jamais proferi qualquer palavra sobre homens ou mulheres que não fosse com a aprovação de Zeus. Fiquem atentos, pois, à justificativa que darei para o fato aqui julgado e sejam obedientes à vontade do meu Pai, o Pai dos Deuses Olímpicos. Juramento algum deve prevalecer sobre as ordens do grande Zeus.

Pergunta-lhe o Corifeu se veio de Zeus a ordem para Orestes matar a mãe, ou só vingar o pai (matando apenas Egisto, por exemplo)?

Sim! Pois a morte de um grande herói é mais importante que a de um anônimo. Sua vingança exigia o sangue de quem, ardilosa e traiçoeiramente, o abateu quando saía da banheira e se secava no longo manto que a facínora lhe estendeu com falso carinho. Preso naquele pano, não pôde o Comandante dos Aqueus desvencilhar-se, dando a Clitemnestra o tempo necessário para que o apunhalasse com a espada do amante. Isso eu volto a relatar a vós, nobres jurados, para que se indignem com a sórdida traição.

O Corifeu retoma a palavra para colocar um paradoxo: segundo o relato de Apolo, Zeus teria predileção pelos pais, porém com o seu, Cronos, a sua atitude foi totalmente diferente, haja vista que ele o matou sem pejo algum. Como, Apolo, tu conciliarás esse paradoxal ódio de Zeus com a tua argumentação? Em seguida, a líder das Fúrias dirige-se ao júri pedindo que prestem atenção àquelas contradições que acabou de expor.

Apolo retoma e diz: vós, monstros execrados, sabem muito bem quais são os imensos poderes do meu Pai. São quase infinitos, mas contra a morte ele nada pode.

Devolve o Corifeu: então, atente Apolo, para o modo com que tu defendes Orestes. Deverá ele, que derramou o sangue da própria mãe, morar no Palácio Real? Em quais altares ele poderá rezar e fazer os sacrifícios? Que Confraria dar-lhe-á consentimento para purificar-se com a água lustral (sagrada, benta)?

A isso responderei Fúrias, diz Apolo. O filho não é gerado pela mãe. Ela é somente a nutriz do germe que o homem nela semeou. Aqui mesmo, nesse egrégio Tribunal, temos uma prova de que é possível ser pai, sem que tenha havido uma mãe. Sim, falo de Palas Atená (1), filha de Zeus que a gestou em seu cérebro e lhe deu à luz já adulta e plena de poderes. Alguma deusa poderia ter feito semelhante? Poderosa deusa, eu sempre darei glórias a ti e à tua cidade. E Orestes, aqui chegado graças ao meu amparo, também traz sua devoção eterna, bem como farão seus descendentes e seus súditos.

1 – Zeus engoliu Métis, sua primeira esposa divina que estava grávida de Atená. Quando ele sentiu que era hora do nascimento, ordenou que Hefesto (deus do fogo) lhe partisse a cabeça para que dela emergisse a deusa, já adulta e poderosa.

O argumento de Apolo acerca da impossibilidade da mulher gerar um filho sem a participação de um homem foi comum na antiguidade, eivada do conceito da “superioridade masculina”. Com os avanças atuais, sabe-se o quão falaciosa é essa teoria.

Atená assume a palavra e dirigindo-se ao Coro pergunta se já pode pedir que os juízes depositem seus votos, vez que a argumentação e a réplica foram feitas.

Sim, concorda o Corifeu. Já disparamos todas as flechas que tínhamos e agora só nos resta esperar pelo veredicto. Para Apolo e Orestes, Atená repete a pergunta e acrescenta: para vós, o que devo fazer para não merecer vossa reprovação? O deus do Sol não lhe responde diretamente e dirigindo-se aos juízes dá seu consentimento dizendo: ouvistes o que ouvistes. Ao votarem, juízes, lembrem do juramento que fizeram.

Presidindo os trabalhos, Atená retoma a palavra para dizer: atenienses foram convocados entre os melhores cidadãos. Por mim mesma eles foram escolhidos e julgarão pela primeira vez um homem, autor de um crime em que foi derramado sangue. A partir deste dia e para sempre, terão vós a incumbência de manter intactas as normas e os objetivos deste Tribunal. Sobre este monte, chamado de “Colina de Ares”, minha voz conclama a “Reverência” e seu irmão o “Temor” para que evitem os crimes, pois caso contrário cidadãos, vós beberão a água da fonte que poluíram, haja vista que desprezar as Leis equivale a voltar à barbárie. Que não haja Opressão, nem Anarquia eis o lema que todos devem seguir. Proclamo, pois, instituído um Tribunal incorruptível, venerável, inflexível e sempre vigilante para que a cidade durma em paz. Agora juízes, levantem-se e depositem seus votos.

Especialmente caro aos homens e mulheres relacionados com os assuntos jurídicos, esse trecho muitas vezes deixa de ser dramaturgia para ganha contornos de História. É uma atitude, claro, que não prima pela precisão, mas não deixa de ser elegante dar essa gênese ao Direito e, especificamente, ao Tribunal do Júri.

Os juízes vão até o pote onde depositam seus votos. Apolo e o Corifeu continuam a troca de insultos e ameaças, dentre os quais, a das Fúrias que prometem cataclismos sem fim à cidade de Atená (Atenas), caso seus direitos não sejam respeitados. Apolo as exorta a aceitarem suas profecias, que são inspiradas por Zeus. O Corifeu argumenta que ele está se intrometendo em crimes sangrentos que não se relacionam com seus vaticínios. Apolo recorda o socorro que Zeus ofereceu a Ixion (o primeiro assassino [o Caim judaico-cristão?]). Rebate o Corifeu repetindo a ameaça contra a cidade de Atenas. E a troca de insultos se estende até que Atená anuncia que seu voto será o último e que será somado aos favoráveis a Orestes. Nasci, diz, sem ter estado em ventre materno e, por isso, sempre sou favorável aos homens, aos pais. O assassinato de Agamêmnon dói-me muito mais que o de Clitemnestra, justamente por isso. Assim, prossegue, basta que os juízes se dividam pela metade para que Orestes vença, com o meu voto. Na seqüência a deusa apressa os juízes, os quais tiram da urna os sufrágios e iniciam a apuração dos mesmos.

Ansioso, angustiado, Orestes pergunta a Apolo qual terá sido o resultado. O Corifeu clama por sua mãe, a deusa Noite, para que veja o que está acontecendo naquela assembléia. Orestes pergunta-se se será degolado ou libertado. O Corifeu se questiona se haverá sucesso ou sua ruína total?

Nessas poucas linhas é possível saborear a grandeza de Ésquilo. Nesse pequeno trecho, no original, ele constrói um magnífico painel que mostra os sentimentos das partes envolvidas. Orestes, entre a morte ou a liberdade. As Fúrias, entre o reconhecimento de sua autoridade, ou o fim de suas atribuições, o desprezo por sua utilidade. Prerrogativas que agora são substituídas pelos julgamentos de simples mortais.

Também impaciente Apolo ordena que os juízes confiram os votos com muito cuidado, pois qualquer falha ou fraude acarretará uma grande injustiça e a continuação de valores e conceitos que precisam ser revistos, renovados; numa clara alusão à substituição da pura vingança, como a praticada pelas Fúrias, pela equidade de um julgamento justo.

Enfim os votos são mostrados a Atená que proclama: empate! Orestes foi absolvido! Os votos dividiram-se em quantidades iguais e eu, diz a filha de Zeus, desempatei a favor do réu (daí a expressão Voto de Atená [Minerva, em latim]), que é utilizado para desempatar uma questão em que nenhum dos lados alcançou a maioria. É uma prerrogativa do Presidente ou da autoridade máxima do julgamento).

Enquanto Apolo sai de cena, Orestes inicia a série de perorações que fará. Começa agradecendo a Atená, ao deus Apolo e a Zeus e comemorando seu retorno à sociedade dos argivos e ao seu Palácio. E, principalmente, por estar liberto das Fúrias, graças ao julgamento e por iniciativa do próprio Zeus, em reconhecimento dos méritos de Agamêmnon e da correta (sic) vingança que lhe foi feita. Depois, dirige-se especialmente a Atená jurando solenemente que nunca a sua terra, Argos, se voltará contra Atenas e se um sucessor assim tentar, ele próprio, mesmo de sua tumba, lançará tal maldição que o impedirá de concretizar a má intenção. Mas se meus sucessores honrarem meu juramento e forem fiéis aliados da nobre terra de Palas, eu os favorecerei sempre. Por fim, deusa, eu me despeço de ti e de teu nobre povo, desejando-lhes pleno êxito em todos os campos, inclusive no das guerras. Isto dito sai da cena.

Após a saída de Orestes, o Coro inicia um canto nostálgico dirigido aos “deuses novos (1ª geração = Urano, as Fúrias e outros; 2ª geração = Cronos e a 3ª geração = Zeus e os deuses Olímpicos.)” e especialmente a Atená: vós, jovens deuses humilham as deidades antigas. Arrebatam nossas funções e nossos direitos com a arrogância dos conquistadores. Mas tu, deusa, não perde por esperar. Nossa vingança será terrível, pois as gotas de veneno que destilaremos dos nossos corações humilhados cairão sobre teu solo e será a praga de tua cidade. O mal atingirá todos os atenienses. Nós, filhas da deusa Noite arruinaremos teu reino.

Atená responde em tom conciliador, dizendo: Sagradas Deusas, reflitam antes de agir. O resultado do julgamento, metade a metade, é prova de que ao menos a metade dos mortais gostaria da pura vingança que vós lhe proporcionaríeis. Vejam, portanto, que não há razão para sentirem-se humilhadas, pois o que aconteceu com Orestes foi uma exceção determinada pelo próprio Zeus. E como todos sabem os decretos do Pai, não podem ser modificados. Fiquem em minha cidade e meus súditos sempre as honrarão.

O Coro retruca dizendo: não, nós fomos humilhadas, sim. E nossa vingança contra tua pátria será pesada.

Atená retoma com o mesmo tom conciliador: não, não fostes humilhadas. Como eu disse, Orestes foi uma exceção, mas seus privilégios permaneceram intactos. Evitem que essa cólera imensa as estimule a perseguir homens inocentes, ou inocentados pelo conjunto das circunstâncias em que agiram. Já com tom mais ameaçador, prossegue aludindo ao estreito relacionamento que mantém com Zeus e que a torna especialmente poderosa. Sugere, pois, que pode defender sua terra e seus súditos com a mesma intensidade com que forem atacados. Na seqüência, como um pêndulo intencional que reveza amizade e adversidade, volta ao tom mais moderado e torna a convidar as Fúrias para morarem (terem um Templo) em Atenas, onde receberão todas as honrarias destinadas às deusas.

As Fúrias, contudo, rejeitam a ofertam e voltam a prometer dura vingança.

Atená volta a exortá-las para que esqueçam os maus intentos, pois ela, Atená, pode profetizar e já prevê as glórias vindouras que Atenas terá. Que elas, ilustres deidades, juntem-se a ela para serem, também, recobertas com as mais ricas oferendas. Todavia, se insistirem no desejo de voltar ao seu antro, que elas lhe concedam a dádiva de não inspirarem ódio nos corações antenienses, os quais, por causa desse rancor logo se porão a matar seus irmãos, ao invés de reservarem a coragem e a força para combaterem os inimigos estrangeiros.

Não, diz o Corifeu. Não queremos ter um Templo em tua cidade e sermos tratadas como “seres impuros”. Oh, Noite! Ouve-nos, mãe, que esses deuses perversos despojam-nos das nossas honrarias, fato que até hoje nunca havia acontecido. Nunca nossas prerrogativas foram negadas, como hoje foram.

Pacienciosa, Atená prossegue em sua tentativa de convencê-las a aceitarem suas oferendas e poupar sua terra das medonhas vinganças. Não pensem que eu, a deusa mais nova, ou meus súditos, teve a intenção de expulsá-las daqui. Ao contrário, gostaríamos muito de homenageá-las por serem as “deusas mais antigas” e, portanto, as mais sábias e poderosas. Se vós, como eu, veneram a deusa “Persuasão” concordem com as minhas palavras e sejam minhas hóspedes eternas, pois se não aceitarem e causarem ódio e desgraça para minha cidade, todos saberão que as Fúrias são “deusas intratáveis e injustas”.

O Corifeu, já desarmando o espírito, indaga-lhe: mas onde ficará o nosso Templo, soberana Atená? Digo-lhes que num lugar onde não há tristezas, responde a dileta filha de Zeus. Mas se aceitarmos tua oferta, como seremos honradas? Sem vossa benção, nenhum lar prosperará, responde a deusa de Palas. Mas, pergunta o Corifeu, teremos de fato todo esse poder? Sim, e só os vossos devotos é que poderão contar com a minha proteção, responde Atená. E tua palavra valerá para sempre? Sim, pois nada me obriga a prometer o que não quero, afirma a deusa. Certo, filha de Zeus, tu abrandaste meu rancor e nós renunciaremos ao ódio e à cizânia. Sejam bem-vindas antigas e sábias deusas. Por gratidão, deusa, que hino nós deveremos cantar, pergunta o Corifeu, para homenagear a tua e a nossa nova cidade? Cantem Fúrias benévolas, Eumênides, os hinos que remetem às vitórias sem tristezas. Que falem das calmas brisas e se refira às preces para que o solo e o rebanho nunca deixem de dar mesa farta ao nosso povo. Que exortem aos deuses a protegerem as sementes dos mortais, e que ameacem os descrentes e infiéis. São esses, deusas, os hinos que devem entoar, pois são essas as bênçãos que vocês trarão aos atenienses. Da guerra eu cuidarei, enquanto vós, Corifeu, cuida dos homens.

Observe-se nesse trecho, que decidimos alongar um pouco mais, a magnífica metáfora que Ésquilo faz acerca do difícil processo que transformou a bruta vingança em reta justiça, onde os ritos permitem (ou deveriam permitir) que se encontre o verdadeiro culpado e se adeque a pena ao crime cometido, evitando-se as iniqüidades que a falta de um julgamento ponderado sempre causa. A vingança transformada em justiça assenta-se em lugar de honra no mosaico da sociedade, onde recebe as honrarias que sua nobre tarefa enseja.

O Coro confirma seu desejo de ter um Templo em Atenas, junto com Atená, e jura que nunca aviltará a sua cidade enquanto faz efusivos votos de plena prosperidade para a terra que também é abençoada por Hermes e por Zeus.

Atená, feliz com decisão diz que deixará com seu povo essas deusas incorruptíveis. Que a elas caberá dirigir a vida dos mortais, sendo um açoite para aqueles que não viverem segundo suas normas e regras. Mesmo que o infrator desconheça quais são as normas e as regras (como acontece no Direito atual onde se parte do pressuposto que todos conhecem a Lei). Nasceram tais deusas dos Pecados cometidos pelos antepassados (o original da lenda judaico-cristã sobre o Paraíso?) e mesmo que alguém tente vencê-las com rudes palavras será em vão, pois elas sempre prevalecerão.

O Coro retoma a palavra e diz em tom de súplica: que as colheitas e as criações nunca sofram com as pragas vistas alhures e que os céus revelem as riquezas ocultas no sub-solo, para que os homens possam sempre honrar e agradecer aos deuses pelas benesses que lhes são concedidas.

Atená dirige-se aos próceres da cidade indagando-lhes se bem ouviram os benefícios que as Fúrias farão por Atenas? Vejam como é grande o poder dessas deusas e sua influência sobre as “Entidades Infernais”. Para os mortais serão quem dará motivo de riso para o justo e de pranto para o iníquo.

O Coro proclama que livrará Atenas da morte dos jovens e para tanto intercederá junto das Parcas (as deusas que controlam a vida e morte dos homens) para que todas as virgens desfrutem das delicias do amor. Vós, Parcas, dizem, confirmem vossas presenças em todos os lares, pois neles vós sois as sagradas deusas mais respeitadas.

Atená retoma o discurso para manifestar sua alegria pela deusa Persuasão ter colocado as palavras certas em sua boca, as quais venceram a dura resistência das Fúrias que assim depositaram suas bênçãos sobre a cidade.

O Coro clama para que a deusa Discórdia jamais inspire ódio e vinganças entre os atenienses. E que assim eles troquem as lutas fratricidas pela generosidade entre irmãos, pois só assim a Felicidade prospera entre os humanos.

Atená pergunta às Fúrias se elas descobriram o caminho da bondade? E diz que seus rostos, antes esquálidos, agora só prometem bem aventuranças ao povo. E que o amor que demonstram as fará veneradas para sempre e uma unanimidade em todo Mundo.

Responde o Coro desejando que os atenienses sejam prósperos e felizes, sempre ao lado de Atená e por ela, protegidos de Zeus.

Atená retribui-lhes os votos e pede que elas a acompanhem à frente de piedosa procissão até o caminho para sua morada. De lá, deusas, das profundezas da Terra, retenham os males que nos seriam destinados. E vós, homens ilustres de Atenas, mostrem a rota às bem-vindas recém chegadas.

Diz o Coro: tornamos a desejar felicidades aos moradores dessa cidade. Sejam eles, mortais ou deuses. Cidade que é de Palas Atená, seja-nos reverente, pois a deusa soberana deu-nos a cidadania, e serão felizes.

Atená congratula-lhes pela santa invocação e as convida a lhe seguirem, à luz das tochas, até a descida para as entranhas da Terra, em companhia de minhas seguidoras e da minha sacra imagem. Os olhos dessa minha cidade, que já foi a de Teseu (célebre herói grego), irão conosco nesse cortejo. Matronas e virgens adornem-se com belas roupas para que as bênçãos das novas cidadãs sejam constantes.

O povo que as escoltam cantam: marchem poderosas deusas, filhas da Noite; ao vosso lado seguem seus novos amigos e protegidos que irão convosco até a gruta subterrânea, onde as esperam santas oferendas e preciosas ofertas. Cidadãos de Atenas desejem-lhes bons votos! Aqui sereis sempre cultuadas como deusas benevolentes, pois sabemos que vós sois leais a nossa terra. Nossas tochas indicam vosso caminho divino. O povo de Atenas, o preferido por Atená, ganhou paz e felicidade e assistiu a união entre as Parcas e Zeus onividente. Gritemos de jubilo, cidadãos! Nossa ventura será perpétua.

São Paulo, 01/05/2011.