quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

M...

Pressinto nova querência.
De novo, essa urgência.
Esse sonhar, esse querer
e o medo de não acontecer.

Há música em seu nome
e luz em seu riso.
Cor e som,
como promessa de Réveillon.

De onde veio essa moça
de riso farto e olhos negros?
De que noite restou essa estrela
que agora brilha
em minha trilha?

Andaremos a mesma estrada?
Ou desse pré devaneio
só ficará o quase nada
doutro poema na madrugada?

                                                 Para M...

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A Vida é...

O vento do sudeste
que expulsa a inocência agreste.
O amor de Alceste,
expresso na morte e na peste.
A fruta carnuda
e a mulher que se desnuda.

É a orgia dos sentidos,
na tortura dos inqueridos.
São Sereias, Ninfas e Faunos
nas covas de sete palmos.

São as Deusas e os Deuses,
que no Oráculo de Elêusis,
vociferam avisos
sobre o fim dos Paraísos.

E tudo que gira,
já que a vida é lira
nas mãos de Caligula.
Loucos somos todos
enquanto dançamos
nos incêndios que ateamos.

Evoé! Gritam velhas Bacantes
para as novas debutantes.
Gozem esses instantes,
pois já se aproxima
nova bomba de Hiroshima.

A vida é cisma...

domingo, 26 de dezembro de 2010

A Ceia

Tanto tempo já passou
entre quem senta à mesa.
Cinquentões, como disse Drumonnd*.

Espetam as carnes 
e os sonhos que não se fizeram.
E sorriem de si e do que não tiveram...
Tanto já houve
entre o peru e a couve:
amores vividos,
desejos partidos
nos bons (?) tempos idos.
Ri-se da realidade que ficamos,
das lágrimas que secamos
e das utopias que abandonamos...

Assados, bebidos,
tristes, desiludidos
fazemos o arremedo
de quem já quis tudo
e hoje se queda mudo.

A crianças viraram o que fomos
e repetem a velha pantomima
da extinta Minas com rima:
Sonhos calados
e engolidos aos bocados,
com os presuntos
dos que não são mais juntos.

Mágoas sufocadas
chegam com as sobremesas.
Logo o sono dos embriagados
apagará os certos e os errados...





*Inspirado em "A Mesa" de Carlos Drumonnd de Andrade.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Monção

A chuva transborda
o dia que não acorda.
Quantas rosas nuas dançarão
na marítima monção?

Cheiro de terra molhada
e de paixão insaciada,
nessa noite aumentada
pela ausência indesejada.

Que caminho tomou Lilian?
Que secreto jardim
guarda seu riso carmim?

Em qual Oceano
direi que a amo?
Será o Atlântico Mar
que a fará chegar?

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Paragem

Cansei-me da viagem
por esse rio sem margem.
Esmaga-me a bagagem
e se esvaie um resto de coragem.

Suga-me a moagem,
peça da engrenagem
vivo minha personagem.

Busco outra paragem,
mas a rigidez da friagem
impedem-me nova hospedagem.

Cerradas, as portas da Estalagem
indicam-me um leito de serragem
para buscar outra miragem.

Tosca e sem forragem,
qual espinheira selvagem
embalada em saco de aniagem

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Esquecer

Choremos toda morte,
fado da má sorte
que subtraí o Homem,
seu tempo e seu norte.

Choremos em cada ausência,
o fim d'alguma essência.
São elos partidos
em tempos perdidos.

De tudo só restará
uma frágil lembrança,
uma trêmula esperança
de que outra vida nascerá.

Mas ainda que nova vida
justifique a morte havida,
que não seja esquecida
a última lágrima sofrida.

Natal em Mandarim

O holofote me seduz
como quem oferta luz,
ou só outra fuga
da realidade que se aluga.

Delicia que degusto
antes do próximo susto.
É hora de levantar
para outro dia em vão.
O corpo não está são,
nem a Mente está sâ,
nessa hora vã.

São apêndice que carrego,
cartas que não entrego
nesse chão em que escorrego.

O Natal se aproxima,
Berra o camelô da esquina.
Estou cercado,
qual leitão a ser ceiado
pela fome do rejeitado.

Vermelho e dourado dominam.
Mandarins predominam.
Dourado e Vermelho,
Vermelho e Dourado,
como se o riso fosse dado

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Adaptação de "OS LUSÍADAS" ao Português Atual - Canto X - 2ª Parte

Notas à Edição


1. Correções ortográficas foram feitas apenas nas Estrofes Adaptadas por motivos óbvios. Essa adaptação não é uma tradução, até porque o idioma é único. Destarte, o leitor notará que as estrofes adaptadas não brilham pela perfeição da métrica ou do sistema rimático. Aliás, sobre as rimas vale uma observação: praticamente todas as estrofes adaptadas foram rimadas, porém algumas rimas atendem ao Português falado em Portugal onde algumas sílabas são abertas enquanto que no Brasil são fechadas; ou vice-versa. O autor conta com a indulgência dos leitores para esses fatos.

2. No texto original, provavelmente escrito em 1556 e publicado pela primeira vez em 1572 (pouco depois do descobrimento do Brasil), Camões emite conceitos e Juízos (ou Julgamentos) que eram apropriados à sua época, mas que atualmente são considerados ofensivos. Por fidelidade ao texto, o autor da Adaptação conta com a compreensão dos (as) leitores (as) por ter transposto alguns desses Conceitos, os quais não são, obviamente, endossados pelo mesmo.

3. Os deuses gregos são chamados pelos seus nomes em latim. Embora incorreto, o autor da adaptação optou por tal modo em vista de estarem mais popularizados dessa maneira.

4. Sugere-se que a Estrofe Adaptada seja lida em primeiro lugar, para que ao se ler a Estrofe Original toda a genialidade de Camões possa ser desfrutada integralmente, quer no tocante ao esquema rimático, quer no quesito da perfeição de sua métrica e a todos os outros elementos que o bardo expôs com maestria singular.

5. Por último, o autor dessa Adaptação coloca-se ao inteiro dispor para fazer eventuais e fundamentadas correções, acréscimos ou subtrações, pois o Monumento erguido por Camões merece cuidados que nunca serão excessivos.



Dedicado aos Poetas Portugueses

Inês Dupas e Filipe Campos Melo

Canto X


 
80o Aqui vês a engrenagem do Universo e do Mundo,
Etérea, com os Quatro Elementos (1) foi fabricada
Pelo “Saber Divino” mais alto e profundo
Que é sem principio e de existência ilimitada.
Quem abraça este redondo Universo e esse Mundo
E a sua superfície tão bela e polida
É Deus, mas o quê é Deus ninguém entende,
Pois a tanto, o raciocínio humano não compreende.

1-Quatro Elementos: água, ar, fogo e terra.


«Este orbe que, primeiro, vai cercando

Os outros mais pequenos que em si tem,

Que está com luz tão clara radiando

Que a vista cega e a mente vil também,

Empíreo se nomeia, onde logrando

Puras almas estão daquele Bem

Tamanho, que ele só se entende e alcança,

De quem não há no mundo semelhança.


81o Esse primeiro Globo que vai cercando
Os menores, os quais em si próprio contém,
E que está com essa clara luz brilhando,
Que cega à vista e as más intenções também,
Chama-se Empíreo (1), onde vivem desfrutando,
As almas puras, desse supremo Bem.
Pois só este tipo de alma é que entende e alcança
Tal Paraíso, do qual, nada na Terra tem semelhança.

1- Empíreo: a parte mais elevada do céu, habitada pelas almas puras.



«Aqui, só verdadeiros, gloriosos

Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,

Júpiter, Juno, fomos fabulosos,

Fingidos de mortal e cego engano.

Só pera fazer versos deleitosos

Servimos; e, se mais o trato humano

Nos pode dar, é só que o nome nosso

Nestas estrelas pôs o engenho vosso.



82o Ali estão apenas os verdadeiros e gloriosos
Santos Divinos; porque eu, Saturno, Jano,
Júpiter e Juno somos só imaginários e fabulosos,
Criados pelos mortais, num tolo engano.
Só para ilustrar versos primorosos
É que servimos; e se algo mais o ser humano
Pôde nos dar, foi colocar o nome nosso
N’algumas estrelas, conforme o entendimento vosso.

«E também, porque a santa Providência,

Que em Júpiter aqui se representa,

Por espíritos mil que têm prudência

Governa o Mundo todo que sustenta

(Ensina-lo a profética ciência,

Em muitos dos exemplos que apresenta);

Os que são bons, guiando, favorecem,

Os maus, em quanto podem, nos empecem;



83o Essas almas puras auxiliam a Divina Providência,

Que Júpiter, Pai e Senhor dos deuses, representa.

Através de mil almas de muita luz e prudência

Governa todo o Universo, ao qual, Ele sustenta.

(Ensina-nos a profética ciência,

Em muitos dos exemplos que apresenta,

Que os bons tais almas guiam e favorecem,

Mas aos maus, como podem, sempre aborrecem).



«Quer logo aqui a pintura que varia

Agora deleitando, ora ensinando,

Dar-lhe nomes que a antiga Poesia

A seus Deuses já dera, fabulando;

Que os Anjos de celeste companhia

Deuses o sacro verso está chamando,

Nem nega que esse nome preminente

Também aos maus se dá, mas falsamente.



84o Aqui a representação varia,

Ora divertindo, ora ensinando:

Dá-se aos Puros, nomes que a antiga poesia

Aos deuses já dera, quando as lendas iam-se criando;

São eles os anjos da Celeste companhia,

Conforme as Sagradas Escrituras vão lhes chamando;

Contudo, não se nega que esse nome proeminente,

Também se dá aos Maus, mas erroneamente.



«Enfim que o Sumo Deus, que por segundas

Causas obra no Mundo, tudo manda.

E tornando a contar-te das profundas

Obras da Mão Divina veneranda,

Debaxo deste círculo onde as mundas

Almas divinas gozam, que não anda,

Outro corre, tão leve e tão ligeiro

Que não se enxerga: é o Móbile primeiro.



85o Enfim, vê-se que o Supremo Deus, através de segundas

Santidades, opera no Universo e em tudo manda.

Mas devo voltar a falar-te das profundas

Obras e mistérios da Mão Divina veneranda:

Saiba que abaixo desse círculo, onde as mundanas

Almas tornadas divinas vivem e que não gira e não anda,

Outro círculo existe, correndo tão sutil e tão ligeiro,

Que não se vê e que é chamado de Móbile Primeiro (1).



1- Móbile Primeiro; círculo celeste que segundo os astrônomos antigos envolvia e dava movimento, do Oriente para o Ocidente, aos outros círculos.



«Com este rapto e grande movimento

Vão todos os que dentro tem no seio;

Por obra deste, o Sol, andando a tento,

O dia e noite faz, com curso alheio.

Debaxo deste leve, anda outro lento,

Tão lento e sojugado a duro freio,

Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,

Duzentos cursos faz, dá ele um passo.



86o Com este rápido e grande movimento,

O Móbile arrasta os Mundos, em seu seio;

Por causa desse movimento, o Sol atento

Traz dia e noite, conforme cada Globo desse meio.

Abaixo deste, gira outro círculo que é muito lento,

Tão vagaroso e submetido a um tão duro freio,

Que enquanto o Sol, que de luz nunca é escasso,

Faz duzentos giros, ele move apenas um passo.

«Olha estoutro debaxo, que esmaltado

De corpos lisos anda e radiantes,

Que também nele tem curso ordenado

E nos seus axes correm cintilantes.

Bem vês como se veste e faz ornado

Co largo Cinto d, ouro, que estelantes

Animais doze traz afigurados,

Apousentos de Febo limitados.



87o Olha esse outro mais abaixo, de giro enfeitado

Pelos seus Globos lisos e radiantes,

Os quais seguem o rumo por ele determinado

E nos seus eixos correm cintilantes.

Veja bem como ele se veste e se faz ornamentado

Com o largo cinto de ouro, no qual, estrelantes

Signos, em número de doze, são afigurados

E aos aposentos de Febo estão limitados.





«Olha por outras partes a pintura

Que as Estrelas fulgentes vão fazendo:

Olha a Carreta, atenta a Cinosura,

Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo;

Vê de Cassiopeia a fermosura

E do Orionte o gesto turbulento;

Olha o Cisne morrendo que suspira,

A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.



88o Olhe nessas outras partes, a figura

Que as brilhantes estrelas vão fazendo;

Olhe a Carreta (1); observe a Cinosura (2),

Em Andrômeda (3) e o pai; no Dragão (4) horrendo.

Repare na Cassiopéia (5), de tanta formosura;

E no Orionte (6) note o semblante turbulento;

Olha o Cisne (7), que morrendo suspira,

A Lebre (8), os Cães (9), a Nau (10) e a suave Lira (11).



1- Carreta: a constelação da Ursa Maior.

2- Cinosura: a constelação da Ursa Menor.

3- Andrômeda: filha de Cefeu, rei da Etiópia, e de Cassiopéia. Perseu salvou-a quando ia ser sacrificada em conseqüência do orgulho de sua mãe, que desafiara as nereidas, num concurso de beleza. Constelação no hemisfério boreal.

4- Drago: constelação do hemisfério boreal composta por oitenta estrelas.

5- Cassiopéia: constelação perto do Pólo Norte, que se acha sempre em oposição à Grande Ursa.

6- Orionte: constelação do hemisfério sul. Também conhecida por Órion.

7- Cisne: constelação no hemisfério norte.

8- Lebre: pequena constelação, vizinha da Ursa Maior.

9- Cães: constelações dos hemisférios norte e sul: “Cão Maior e Cão Menor”.

10- A nau: constelação do Hemisfério Norte.

11- Lira: constelação do hemisfério norte, entre Hércules e o Cisne.



«Debaxo deste grande Firmamento,

Vês o céu de Saturno, Deus antigo;

Júpiter logo faz o movimento,

E Marte abaxo, bélico inimigo;

O claro Olho do céu, no quarto assento,

E Vénus, que os amores traz consigo;

Mercúrio, de eloquência soberana;

Com três rostos, debaxo vai Diana.



89o Abaixo deste grande Firmamento,

Veja o céu de Saturno (1), deus do povo antigo;

Depois está Júpiter (2), que faz o seu movimento,

Mais abaixo está Marte (3), guerreiro inimigo;

O límpido “olho do céu”, no quarto assento,

É Vênus (4), que os amores traz consigo;

Depois está Mercúrio (5), de grandeza soberana,

E abaixo, com três faces diferentes, está Diana (6).



1) Saturno: filho do Céu e da Terra. Pai de Júpiter, de Netuno, de Plutão e de Juno. O sexto planeta em relação ao sol.

2) Júpiter: pai e senhor dos deuses. O maior planeta do sistema solar.

3) Marte: o deus da guerra. O quarto planeta no sistema solar e o mais parecido com a Terra.

4) Vênus: a deusa do amor e da beleza. O mais brilhante dos planetas, cuja órbita situa-se entre a de Mercúrio e a da Terra.

5) Mercúrio: deus do comércio e mensageiro dos deuses. O planeta mais próximo do Sol.

6) Diana: a deusa da caça. Nesta estrofe representa a Lua, pois dispunha de três personalidades: na terra era Diana, no inferno era Hecate e no céu era Febe, a Lua.



«Em todos estes orbes, diferente

Curso verás, nuns grave e noutros leve;

Ora fogem do Centro longamente,

Ora da Terra estão caminho breve,

Bem como quis o Padre omnipotente,

Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,

Os quais verás que jazem mais a dentro

E tem co Mar a Terra por seu centro.



90o Em todos esses planetas, diferentes

Rumos verás: aqui mais intenso, ali mais leve;

Ora fogem do centro (1) longamente,

Ora ficam da Terra, por um espaço breve,

Pois assim quis o Pai onipotente,

Que criou o fogo, o ar, o vento e a neve.

Tu verás que eles ficam mais para dentro

E tem o mar e a Terra como o seu centro.



1-Como se sabe, na época de Camões julgava-se que a Terra fosse o centro do universo.



«Neste centro, pousada dos humanos,

Que não somente, ousados, se contentam

De sofrerem da terra firme os danos,

Mas inda o mar instábil exprimentam,

Verás as várias partes, que os insanos

Mares dividem, onde se apousentam

Várias nações que mandam vários Reis,

Vários costumes seus e várias leis.



91o Neste centro, que é a morada dos humanos,

Homens ousados não se contentam

De sofrer apenas com os terríveis danos

Da terra e a fúria do mar instável enfrentam.

Tu verás as diversas regiões que os Oceanos

Dividem; e onde ficam e se assentam,

Variadas nações, governadas por vários Reis,

De variados costumes, religiões e outras leis.



«Vês Europa Cristã, mais alta e clara

Que as outras em polícia e fortaleza.

Vês África, dos bens do mundo avara,

Inculta e toda cheia de bruteza;

Co Cabo que até’aqui se vos negara,

Que assentou pera o Austro a Natureza.

Olha essa terra toda, que se habita

Dessa gente sem Lei, quási infinita.





92o Veja a Europa cristã, mais elevada e clara

Que as outras, tanto em cultura quanto em fortaleza.

Veja a África, a qual dos “bens do mundo” é ávara,

Por isso é selvagem, inculta e cheia de rudeza;

Veja o Cabo (1) que ao vosso conhecimento se negara,

E que no extremo sul foi assentado pela natureza.

Olha também esta terra toda, na qual habita

Esta gente sem religião e que é quase infinita.



1-Cabo: o “Cabo da Boa Esperança”, antes “Cabo das Tormentas”.



«Vê do Benomotapa o grande império,

De selvática gente, negra e nua,

Onde Gonçalo morte e vitupério

Padecerá, pola Fé santa sua.

Nace por este incógnito Hemispério

O metal por que mais a gente sua. .

Vê que do lago donde se derrama

O Nilo, também vindo está Cuama.



93o Veja o Benomotapa (1) que é um grande império,

Habitado por gente selvagem, negra e nua;

É onde o padre Gonçalo (2) a morte e o vitupério

Padecerá por ter uma Religião, igual a tua.

Nasce neste desconhecido hemisfério,

O rico metal pelo qual mais se trabalha e mais se sua (3)

Veja ainda, que do lago donde se derrama

O rio Nilo (4) também mina o rio Cuama (5).



1- Benomotapa: império africano que abrangia a região onde atualmente se situa Manica e Sofala.

2- Gonçalo: Gonçalo da Silveira, missionário jesuíta que foi martirizado no império Monomotapa, em Moçambique, na África.

3- Nilo: o rio Nilo, do Egito.

4- Cuama: o atual rio Zambeze, na África.



«Olha as casas dos negros, como estão

Sem portas, confiados, em seus ninhos,

Na justiça real e defensão

E na fidelidade dos vizinhos;

Olha deles a bruta multidão,

Qual bando espesso e negro de estorninhos,

Combaterá em Sofala a fortaleza, Que

defenderá Nhaia com destreza.



94o Repare como as casas dos negros estão

Sem as portas, pois confiam em seus ninhos,

Na justiça de seu País, na real proteção

E na fidelidade dos seus vizinhos;

Olha a imensa e brutal multidão

Qual bando de negros estorninhos (1),

Que atacará em Sofala a grande fortaleza,

Que por Nhaya (2) será defendida com destreza.



1- Estorninhos: passarinhos de cor negra, naturais da África.

2- Nhaya: Pero de Nhaia, castelhano a serviço do rei de Portugal que construiu uma fortaleza em Sofala e repeliu poderosos ataques das forças africanas.



«Olha lá as alagoas donde o Nilo

Nace, que não souberam os antigos;

Vê-lo rega, gerando o crocodilo,

Os povos Abassis, de Crista amigos;

Olha como sem muros (novo estilo)

Se defendem milhor dos inimigos;

Vê Méroe, que ilha foi de antiga fama,

Que ora dos naturais Nobá se chama.



95o Olhe as lagoas onde nasce o rio Nilo,

Que eram desconhecidas dos antigos;

Veja que ele rega, gerando o crocodilo (1),

Os povos abassis (2), que de Cristo são amigos;

Repare que sem muralhas (num novo estilo),

Eles se defendem melhor dos seus inimigos.

Veja Méroe (3), que já foi uma ilha de muita fama,

E que agora de Nobá se chama.



1-Crocodilo: a inclusão desse animal no verso parece atender mais uma necessidade de rima, do que uma alusão à fertilidade do Nilo, sugerida pelo fato de que gera e sustenta tanto a vida natural, quanto a humana.

2- Abassis: abexins, abissínios. Naturais da abássia ou Abissínia. Camões quase sempre a chama por Etiópia.

3- Méroe: região da África oriental, banhada pelo rio Nilo e que antigamente era conhecida como se fosse uma ilha.



«Nesta remota terra um filho teu

Nas armas contra os Turcos será claro;

Há-de ser Dom Cristóvão o nome seu;

Mas contra o fim fatal não há reparo.

Vê cá a costa do mar, onde te deu

Melinde hospício gasalhoso e caro;

O Rapto rio nota, que o romance

Da terra chama Obi; entra em Quilmance.



96o Nessa terra distante um filho teu,

Contra os Turcos, terá um renome raro;

Dom Cristóvão (1) será o nome seu;

Mas contra o fim fatal não há reparo.

Veja aqui a costa de mar, onde te deu,

O reino de Melinde (2) abrigo nada ávaro.

Note que o rio Rapto (3), que o romance (4)

Da terra chama de Obi (5), entra por Quilmance (6).



1- Cristovão da Gama, filho de Vasco da Gama. Foi aprisionado e degolado pelo xeque de Zeila.

2- Melinde: cidade e reino na costa oriental da África.

3- Rio Rapto: rio da África oriental.

4- Romance: neste contexto, o mesmo que dialeto, ou linguajem vulgar, popular.

5- Obi: rio da África oriental.

6- Quilmance: vila situada no curso inferior do rio Obi, perto de Melinde.



«O Cabo vê já Arómata chamado,

E agora Guardafú, dos moradores,

Onde começa a boca do afamado

Mar Roxo, que do fundo toma as cores;

Este como limite está lançado

Que divide Asia de Africa; e as milhores

Povoações que a parte Africa tem

Maçuá são, Arquico e Suaquém.



97o Veja o Cabo que de Arômata (1) já foi chamado;

Agora, de Guardafuié é intitulado pelos moradores.

Ali tem inicio a boca do afamado

Mar Vermelho, que do seu leito toma as cores.

Este mar é usado como fronteira, pois está situado

Entre a Ásia e a África; Também veja as melhores

Povoações que o Continente Africano tem:

Maçuá (2), Arquico (3) e Suaquém (4).



1- Cabo Arômata: ou Cabo Guardafui, situado na Somália, África Ocidental. Era assim chamado porque dele partiam os perfumes que abasteciam a Europa.

2- Maçuá: cidade do litoral do Mar Vermelho.

3- Arquico: porto da África Ocidental.

4- Suaquém: porto do Mar Vermelho, na costa da Núbia.



«Vês o extremo Suez, que antigamente

Dizem que foi dos Héroas a cidade

(Outros dizem que Arsínoe), e ao presente

Tem das frotas do Egipto a potestade.

Olha as águas nas quais abriu patente

Estrada o grão Mousés na antiga idade.

Ásia começa aqui, que se apresenta

Em terras grande, em reinos opulenta.



98o Veja o Extremo de Suez (1), que antigamente,

Segundo dizem, foi dos Héroas (2) a cidade,

(Outros que foi de Arsínoe [3]) e que no presente

A frota do Egito a tem como sua propriedade.

Olhe as águas revoltas onde o potente

Moisés (4) abriu uma estrada na Antiguidade.

A Ásia começa aqui e se apresenta

Grande em terras; e, em Reinos, opulenta.



1- Extremo de Suez: porto no Mar Vermelho. A antiga Arsínoe.

2- Héroas: Heroópolis (Heroon Oppidum) cidade situada a noroeste de Suez.

3- Arsínoe: cidade junto a Suez, fundada por Ptolomeu Filadelfo.

4- Moisés: referência ao célebre episódio bíblico.



«Olha o monte Sinai, que se ennobrece

Co sepulcro de Santa Caterina;

Olha Toro e Gidá, que lhe falece

Água das fontes, doce e cristalina;

Olha as portas do Estreito, que fenece

No reino da seca Ádem, que confina

Com a serra d’Arzira, pedra viva,

Onde chuva dos céus se não deriva.



99o Olha o Monte Sinai (1) que mais se enobrece

Por abrigar o túmulo de Santa Catarina (2);

Olha Toro (3) e Gidá (4) que carece

Das águas das fontes, doce e cristalina;

Olha a entrada do Estreito (5) que fenece

No reino ressecado de Aden (6) que termina

Na serra de Arzira (7), uma pedra viva,

Pois a chuva, do Céu não deriva.



1- Monte Sinai: onde Moises recebeu as tábuas sagradas, situado na península do Sinai.

2- Santa Catarina: padroeira de Goa, na Índia. Foi mãe do imperador Constantino que colocou o Cristianismo como Religião oficial do Império romano. Catarina era devota extremada e fez várias excursões ao Oriente em busca de relíquias religiosas. Pediu para ser sepultada no Monte Sinai, o que de fato aconteceu, daí a alusão de Camões.

3- Toro: porto na costa ocidental da península do Sinai.

4- Gidá: o outro nome de Judá, cidade e porto no Mar Vermelho.

5- Estreito: o Estreito de Djibouti.

6- Aden: cidade no sul da Arábia Saudita.

7- Arzira: serra da Arábia.



«Olha as Arábias três, que tanta terra

Tomam, todas da gente vaga e baça,

Donde vêm os cavalos pera a guerra,

Ligeiros e feroces, de alta raça;

Olha a costa que corrre, até que cera

Outro Estreito de Pérsia, e faz a traça

O Cabo que co nome se apelida

Da cidade Fartaque, ali sabida.



100o Olha as três Arábias (1), que tanta terra

Ocupam com sua gente ociosa e baça (2),

Dali provém os cavalos para a guerra,

Ligeiros e ferozes, de alta raça;

Olha a Costa que percorre, até que se encerra

Num outro Estreito, o da Pérsia (3), que roça

Com o Cabo que se chama ou apelida

De Fartaque (4), graças à cidade ali estabelecida.



1- Arábias: as três Arábias situavam-se na parte oeste da Ásia Meridional. Camões refere-se a “Arábia Três” que são as seguintes regiões: Pétrea, Feliz e Deserta.

2- Baça: opaca, sem brilho.

3- Estreito da Pérsia: o atual Estreito de Ormuz.

4- Fartaque: Cabo e cidade no sul da Arábia.



«Olha Dófar, insigne porque manda

O mais cheiroso incenso pera as aras;

Mas atenta: já cá destoutra banda

De Roçalgate, e praias sempre avaras,

Começa o reino Ormuz, que todo se anda

Pelas ribeiras que inda serão claras

Quando as galés do Turco e fera armada

Virem de Castelbranco nua a espada.



101o Olha Dófar (1), célebre porque manda

Os mais perfumados incensos para as aras (2);

Mas, repare: aqui nessa outra banda,

Onde fica o Cabo Roçalgante (3), de praias raras,

Começa o reino de Ormuz (4), no qual, se anda

Pelas margens que ainda serão claras

Quando as Galés do Turco (5) e sua feroz Armada

Sentirem do Ibérico, a brava espada.



1- Dófar: cidade na costa sul da Arábia.

2- Aras: altares sagrados.

3- Cabo Roçalgante: o Cabo da Arábia, na entrada do Golfo de Omã.

4- Ormuz: ilha e cidade na entrada do Golfo Pérsico.

5- Turco: neste contexto, o mesmo que Mouro.



«Olha o Cabo Asaboro, que chamado

Agora é Moçandão, dos navegantes;

Por aqui entra o lago que é fechado

De Arábia e Pérsias terras abundantes.

Atenta a ilha Barém, que o fundo ornado

Tem das suas perlas ricas, e imitantes

A cor da Aurora; e vê na água salgada

Ter o Tígris e Eufrates üa entrada.



102o Olhe o Cabo Asaboro (1), agora chamado

De Moçandão, pelos bravos navegantes.

Por ali começa o lago (2) que é cercado

Pela Pérsia (3) e Arábia (3), de terras abundantes.

Observe a ilha de Barém (4), cujo fundo do Mar é ornado

Com ricas pérolas, que são imitantes

Da cor da Aurora; e veja que na água salgada

Os rios Tigre e Eufrates (5) têm uma entrada.



1) Asaboro: Cabo na entrada do Golfo Pérsico. Aqui Camões o identifica como o Cabo Moçandão.

2) Na verdade, Camões refere-se ao Golfo Pérsico, e não lago.

3) As atuais Arábia Saudita e o Irã.

4) Barém: arquipélago no Golfo Pérsico, famoso pela produção de pérolas.

5) Rio Tigre: grande rio na Ásia que nasce no Tauro Armênio e deságua no Golfo Pérsico, junto com o rio Eufrates.



«Olha da grande Pérsia o império nobre,

Sempre posto no campo e nos cavalos,

Que se injuria de usar fundido cobre

E de não ter das armas sempre os calos.

Mas vê a ilha Gerum, como descobre

O que fazem do tempo os intervalos,

Que da cidade Armuza, que ali esteve,

Ela o nome despois e a glória teve.



103o Veja a Pérsia (1), Império grande e nobre,

Sempre a postos nos campos e nos cavalos,

Embore a difamem por não usar o fundido cobre

E por não ter, do manejo constante da armas, os calos.

Mas veja também a ilha de Gerum (2) que descobre

As medidas do tempo e os seus intervalos;

E que, da cidade de Armuza (3), que ali esteve,

A glória e o renome ela reteve.



1) Pérsia: o atual Irã.

2) Gerum: a ilha onde fica situada Ormuz. Nela se concentrava um núcleo de estudo sobre o Tempo, suas divisões, variáveis etc.

3) Armusa: o mesmo que Ormuz.



«Aqui de Dom Filipe de Meneses

Se mostrará a virtude, em armas clara,

Quando, com muito poucos Portugueses,

Os muitos Párseos vencerá de Lara.

Virão provar os golpes e reveses

De Dom Pedro de Sousa, que provara

Já seu braço em Ampaza, que deixada

Terá por terra, à força só de espada.



104o Ali, o emérito Dom Felipe de Menezes (1)

Mostrará sua virtude na guerra de forma clara,

Quando com pouquíssimos portugueses,

Vencer aos muitos soldados persas de Lara (2).

Os quais também sofrerão os golpes e os reveses

De Dom Pedro de Souza (3), que já provara

A força do braço em Ampaza (4), deixada

Destruída apenas pela força de sua espada.



1- Dom Felipe de Menezes: comandante português de Ormuz, que venceu os persas de Lara.

2- Lara: cidade persa situada no Laristão.

3- Dom Pedro de Souza: comandante de Ormuz, antes de Dom Felipe de Menezes.

4- Ampaza: cidade da Pérsia ou da Índia. A sua localizaçã exata é discutida.

«Mas deixemos o Estreito e o conhecido

Cabo de Jasque, dito já Carpela,

Com todo o seu terreno mal querido

Da Natura e dos dões usados dela;

Carmânia teve já por apelido.

Mas vês o fermoso Indo, que daquela

Altura nace, junto à qual, também

Doutra altura correndo o Gange vem?



105o Mas deixemos o Estreito e o conhecido

Cabo de Jasque (1), que já foi chamado de Carpela,

Com o seu território mal abastecido

Pela natureza, que nele sonegou sua dádiva bela.

De Carmânia (2) já foi chamada, seu ex-apelido.

E ali, tu vês o formoso rio Indo (3), que naquela

Altura nasce? Junto dele corre o Ganges, porém

De qual nascente, o rio Sagrado vem?



1- Cabo Jasque: Cabo na entrada do Golfo de Ormuz, cujo nome em latim era Carpela.

2- Carmânia: região da Pérsia. Atual Quirman.

3- Rio Indo: rio indiano.

4- Ganges: o rio sagrado da Índia. Segundo a lenda nascia no Paraíso, donde a pergunta de Camões: onde estará sua nascente?



«OIha a terra de Ulcinde, fertilíssima,

E de Jáquete a íntima enseada;

Do mar a enchente súbita, grandíssima,

E a vazante, que foge apressurada.

A terra de Cambaia vê, riquíssima,

Onde do mar o seio faz entrada;

Cidades outras mil, que vou passando,

A vós outros aqui se estão guardando.



106o Olha a terra de Ulcinde (1), que é fertilíssima;

E veja em Jáquete (2) a encravada enseada;

Repare que a súbita enchente do Mar é violentíssima

E veja a vazante, que corre apressada.

Observe a terra de Cambaia (3), que é riquíssima

E onde o seio do mar faz uma entrada.

E outras mil cidades que vou repassando

A vós outros, que nesta área vão se infiltrando.



1) Ulcinde: a fértil região no delta do rio Indo.

2) Jáquete: golfo da Índia. Atual Katch.

3) Cambaia: reino e cidade da Índia.



«Vês corre a costa célebre Indiana

Pera o Sul, até o Cabo Comori,

Já chamado Cori, que Taprobana

(Que ora é Ceilão) defronte tem de si.

Por este mar a gente Lusitana,

Que com armas virá despois de ti,

Terá vitórias, terras e cidades,

Nas quais hão-de viver muitas idades.



107o Veja ali a célebre Costa indiana

Que no rumo sul vai até ao Cabo Comorim (1),

Que já foi chamado de Cori e que a Taprobana (2)

(Que agora se chama Ceilão) tem diante de si.

Por este Mar a potente gente lusitana

Com poderosas armas virá, depois de ti,

E conquistará vitórias, terras e cidades,

Nas quais viverão até as avançadas idades.



1- Cabo Comorim: situado no sul da Índia, chamado de “Cori” pela geografia ptolemaica.

2- Taprobana: ilha ao sul da Índia que já foi chamada de Ceilão. O atual Sri Lanka.



«As províncias que entre um e o outro rio

Vês, com várias nações, são infinitas:

Um reino Mahometa, outro Gentio,

A quem tem o Demónio leis escritas.

Olha que de Narsinga o senhorio

Tem as relíquias santas e benditas

Do corpo de Tomé, barão sagrado,

Que a Jesu Cristo teve a mão no lado.



108o Vê as províncias que há entre um e outro rio,

Com várias nações são quase infinitas:

Um é o reino Mahometa (1) e o outro o Gentio (2),

A quem o demônio deixou leis escritas.

Observe que o reino de Narsinga (3) tem o poderio

Das relíquias santas e benditas

Do corpo de Tomé (4), apóstolo sagrado,

Por ter Jesus Cristo ao seu lado.



1- Mahometa; seguidores de Maomé, muçulmanos.

2- Gentio: os nativos pagãos, cujos deuses eram os animais e outros “falsos” ídolos.

3- Narsinga: antigo reino do Decão, na Índia.

4- Tomé: o apostolo São Tomé famoso por seu ceticismo.



«Aqui a cidade foi que se chamava

Meliapor, fermosa, grande e rica;

Os Ídolos antigos adorava

Como inda agora faz a gente inica.

Longe do mar naquele tempo estava,

Quando a Fé, que no mundo se pubrica,

Tomé vinha prègando, e já passara

Províncias mil do mundo, que ensinara.



109o Ali existiu a cidade que se chamava

Meliapor (1), formosa, grande e rica;

E que aos antigos ídolos adorava,

Como, ainda agora, faz a gente iníqua.

Naquela época, longe do mar ela estava,

E a fé cristã, que no mundo se publica,

São Tomé vinha pregando; ele, que já passara

Por mil lugares do Mundo, que já catequizara.



1- Meliapor: cidade da península hindustânica, na atual região de Madrasta.



«Chegado aqui, pregando e junto dando

A doentes saúde, a mortos vida,

Acaso traz um dia o mar, vagando,

Um lenho de grandeza desmedida.

Deseja o Rei, que andava edificando,

Fazer dele madeira; e não duvida

Poder tirá-lo a terra, com possantes

Forças d’ homens, de engenhos, de alifantes.



110o Ali chegando, ficou pregando e dando

Saúde aos doentes e aos mortos nova vida;

Até que num certo dia, no mar vagando,

Chegou uma madeira de grandeza desmedida.

O rei da cidade a deseja, pois estava edificando,

E na obra a utilizaria; e não duvida

Que poderá levá-la para a terra, com as possantes

Forças dos homens, das roldanas e dos elefantes.





«Era tão grande o peso do madeiro

Que, só pera abalar-se, nada abasta;

Mas o núncio de Cristo verdadeiro

Menos trabalho em tal negócio gasta:

Ata o cordão que traz, por derradeiro,

No tronco, e fàcilmente o leva e arrasta

Pera onde faça um sumptuoso templo

Que ficasse aos futuros por exemplo.



111o Porém, era tão pesado aquele madeiro

Que só para abalá-lo, não há o que basta;

Mas o embaixador do Cristo Verdadeiro,

Para movê-lo, nenhum esforço gasta.

Amarra o cordão que traz, por derradeiro,

No tronco e facilmente o arrasta

Para onde faria um suntuoso templo

Que ficasse para os futuros, como exemplo.



«Sabia bem que se com fé formada

Mandar a um monte surdo que se mova,

Que obedecerá logo à voz sagrada,

Que assi lho ensinou Cristo, e ele o prova.

A gente ficou disto alvoraçada;

Os Brâmenes o têm por cousa nova;

Vendo os milagres, vendo a santidade,

Hão medo de perder autoridade.



112o Pois ele sabia, que com fé formada,

Se mandasse a um Monte que se mova,

Ele logo obedecerá à voz sagrada,

Como Cristo ensinou e como agora, comprova.

A população, ao saber do fato, ficou alvoroçada;

Os Brâmenes (1) já o viam como ameaça nova;

E vendo aquele milagre e aquela santidade,

Sentem medo de perder a sua autoridade.



1- Brâmenes: ou Brâmanes, sacerdotes que oficiavam os sacrifícios dos Vedas. Membros da mais alta classe ou casta dos hindus.



«São estes sacerdotes dos Gentios

Em quem mais penetrado tinha enveja;

Buscam maneiras mil, buscam desvios,

Com que Tomé não se ouça, ou morto seja.

O principal, que ao peito traz os fios,

Um caso horrendo faz, que o mundo veja

Que inimiga não há, tão dura e fera,

Como a virtude falsa, da sincera.



113o São nesses sacerdotes dos Gentios

Que mais tinha penetrado a inveja:

Buscam, então, mil maneiras e desvios,

De desacreditar Tomé, ou para que morto seja.

O principal, dentre eles, que manipula os fios,

Faz uma trama horrível, para que todo mundo veja

Que não há uma inimiga tão dura e feroz

Da verdadeira Virtude como a falsidade atroz.



«Um filho próprio mata, e logo acusa

De homicídio Tomé, que era inocente;

Dá falsas testemunhas, como se usa;

Condenaram-no a morte brevemente.

O Santo, que não vê milhor escusa

Que apelar pera o Padre omnipotente,

Quer, diante do Rei e dos senhores,

Que se faça um milagre dos maiores.



114o Ele mata o próprio filho e logo acusa

O Santo Apóstolo, que era inocente;

Dando falsas testemunhas, como se usa:

Condenaram Tomé à morte, rapidamente.

O Santo, que não vê melhor escusa

Que apelar ao Pai Onipotente,

Pede-lhe que diante do Rei e doutros senhores,

Aconteça um dos milagres comovedores.



«O corpo morto manda ser trazido,

Que res[s]ucite e seja perguntado

Quem foi seu matador, e será crido

Por testemunho, o seu, mais aprovado.

Viram todos o moço vivo, erguido,

Em nome de Jesu crucificado:

Dá graças a Tomé, que lhe deu vida,

E descobre seu pai ser homicida.



115o E roga a Deus que seja ressuscitado

O jovem e que lhe seja perguntado

Quem foi o assassino; pois será acreditado

Esse seu testemunho, que é o mais provado.

E todos, então viram o rapaz ser acordado

Pela graça do Santíssimo Jesus Crucificado.

Agradece a Tomé, que o trouxe novamente à vida,

E conta que o seu pai era o verdadeiro homicida.





«Este milagre fez tamanho espanto

Que o Rei se banha logo na água santa,

E muitos após ele; um beija o manto,

Outro louvor do Deus de Tomé canta.

Os Brâmenes se encheram de ódio tanto,

Com seu veneno os morde enveja tanta,

Que, persuadindo a isso o povo rudo,

Determinam matá-lo, em fim de tudo.



116o Este milagre causou tamanho espanto

Que o Rei logo foi banhar-se na água santa

E vários foram, depois dele; um beija o manto,

Outro, ao Deus de São Tomé, louvor canta.

Mas os Brâmenes se encheram de tanto

Ódio venenoso e de inveja tanta,

Que persuadindo o povo rude ao mal,

Decidem matar Tomé no final.



«Um dia que pregando ao povo estava,

Fingiram entre a gente um arruído.

(Já Cristo neste tempo lhe ordenava

Que, padecendo, fosse ao Céu subido);

A multidão das pedras que voava

No Santo dá, já a tudo oferecido;

Um dos maus, por fartar-se mais depressa,

Com crua lança o peito lhe atravessa.



117o Num dia, em que pregando ao povo estava,

Simularam na multidão um tumulto de grande alarido.

E também porque nessa época, Cristo já ordenava

Que se Tomé padecesse, fosse ao Céu erguido,

Foi que entre as pedras que voavam,

Tomé é atingido e resignado à morte vai oferecido.

Um, para saciar a sua ira mais depressa,

Com a dura lança, o coração lhe atravessa.



«Choraram-te, Tomé, o Gange e o Indo;

Chorou-te toda a terra que pisaste;

Mais te choram as almas que vestindo

Se iam da santa Fé que lhe ensinaste.

Mas os Anjos do Céu, cantando e rindo,

Te recebem na glória que ganhaste.

Pedimos-te que a Deus ajuda peças

Com que os teus Lusitanos favoreças.



118o Choraram-te Tomé, os rios Ganges e Indo;

Assim como em toda a terra que pisaste;

E mais ainda, as almas que já iam vestindo

O manto da Santa Fé, que ensinaste.

Mas os Anjos do Céu, cantando e rindo,

Recebem-te na glória que ganhaste.

Agora te rogamos que a ajuda de Deus

Peças, em beneficio dos lusos teus.



«E vós outros que os nomes usurpais

De mandados de Deus, como Tomé,

Dizei: se sois mandados, como estais

Sem irdes a pregar a santa Fé?

Olhai que, se sois Sal e vos danais

Na pátria, onde profeta ninguém é,

Com que se salgarão em nossos dias

(Infiéis deixo) tantas heresias?



119o E vós que o nome usurpam

De embaixadores Divinos, igual foi Tomé,

Digam: se são embaixadores, por que ficam

Aí parados, sem irem pregar a Santa Fé?

Se forem o “Sal da Terra” e vos danam

Na própria Pátria, onde profeta ninguém é,

Como é que purificarão, em nossos dias,

(Aos infiéis deixo) tantas heresias?



«Mas passo esta matéria perigosa

E tornemos à costa debuxada.

Já com esta cidade tão famosa

Se faz curva a Gangética enseada;

Corre Narsinga, rica e poderosa;

Corre Orixa, de roupas abastada;

No fundo da enseada, o ilustre rio

Ganges vem ao salgado senhorio;



120o Mas deixo esta conversa perigosa

E retornemos à Costa, ali pintada;

Veja esta cidade tão famosa,

Onde se torna curva a Gangética (1) enseada.

Ali, percorre a Narsinga (2), rica e poderosa;

Acolá, percorre Orixá (3), que de tecidos é abastada;

No fundo da enseada, o ilustre rio

Ganges entrega-se ao salgado poderio.



1- Referência a enseada onde o rio Ganges deságua.

2- Narsinga: antigo reino do Decão, na Índia.

3- Orixá: reino da Índia, no litoral de Bengala.



«Ganges, no qual os seus habitadores

Morrem banhados, tendo por certeza

Que, inda que sejam grandes pecadores,

Esta água santa os lava e dá pureza.

Vê Catigão, cidade das milhores

De Bengala província, que se preza

De abundante. Mas olha que está posta

Pera o Austro, daqui virada, a costa.



121o Ganges (1), no qual, os seus moradores

Banham-se para morrer, com a certeza

De que mesmo que sejam grandes pecadores,

Essa água santa os lava e lhes dá pureza.

Agora veja Catigão (2), uma das melhores

Cidades de Bengala, província que se preza

Por ser próspera. Observe que ela está posta

Virada para o sul, dali, girando a Costa.



1- Rio Ganges: do qual a lenda diz que nasce no Paraíso e que suas águas purificam os pecados. A cidade de Varanasi, em suas margens é um ponto tradicional de peregrinos à beira da morte que ali querem se purificar.

2- Catigão: cidade e porto da província de Bengala. Atual Chitagong.





«Olha o reino Arracão; olha o assento

De Pegu, que já monstros povoaram,

Monstros filhos do feio ajuntamento

Düa mulher e um cão, que sós se acharam.

Aqui soante arame no instrumento

Da geração costumam, o que usaram

Por manha da Rainha que, inventando

Tal uso, deitou fora o error nefando.



122o Olha o reino Arracão (1), veja o assento

E o de Pegu (2), onde os monstros já povoaram,

Os quais eram gerados pelo sujo acasalamento

Duma mulher e um cão, que a sós se encontraram.

Ali usam um pequeno sino, sonoro instrumento,

Nos órgãos genitais, ao que se acostumaram,

Desde que a rainha esse hábito foi impondo,

E com ele exterminando aquele vício nefando.



1- Arracão: antigo reino, junto a Bengala.

2- Pegu: reino indiano, na costa do golfo de Bengala.



«Olha Tavai cidade, onde começa

De Sião largo o império tão comprido;

Tenassari, Quedá, que é só cabeça

Das que pimenta ali têm produzido.

Mais avante fareis que se conheça

Malaca por empório ennobrecido,

Onde toda a província do mar grande

Suas mercadorias ricas mande.



123o Observe a cidade de Tavai (1), onde começa

O vasto reino do Sião (2), tão comprido;

Tenassari (3) e Quedá (4) que é a cabeça

Das pimentas que ali se tem colhido.

Mais adiante é oportuno que se conheça

Malaca (5) e seu grande mercado; conhecido

Por todas as províncias do Mar grande,

Cujas mercadorias ele demande.



1- Tavai: cidade do reino de Pegu, na Birmânia.

2- Sião: reino da Índia. A Tailândia atual.

3- Tenassari: cidade da península de Malaca.

4- Quedá: idem.

5- Malaca: península da Índia e importante entreposto comercial na época da expedição de Vasco da Gama.



«Dizem que desta terra co as possantes

Ondas o mar, entrando, dividiu

A nobre ilha Samatra, que já d’antes

Juntas ambas a gente antiga viu.

Quersoneso foi dita; e das prestantes

Veias d’ouro que a terra produziu,

'Aurea', por epitéto lhe ajuntaram;

Alguns que fosse Ofir imaginaram.



124o Dizem sobre esta terra que as possantes

Ondas do mar foram-lhe entrando e a dividiu

Da nobre ilha de Samatra (1), com a qual, antes

Era unida; segundo o povo antigo que assim as viu.

Já foi chamada de Quersoneso (2); e pelasbrilhantes

Veias de ouro que a terra produziu,

O adjetivo de Áurea lhe juntaram;

Pensaram que fosse a Ofir (3) que imaginaram.



1- Samatra: ilha do arquipélago de Sonda.

2- Quersoneso: a “Áurea Quersoneso” ou “Península de Ouro” seria a península de Malaca.

3- Ofir: região lendária situada no Oriente. Segundo a Bíblia as riquezas de Salomão, em ouro e prata, provinham desta região.



«Mas, na ponta da terra, Cingapura

Verás, onde o caminho às naus se estreita;

Daqui tornando a costa à Cinosura,

Se encurva e pera a Aurora se endireita.

Vês Pam, Patane, reinos, e a longura

De Sião, que estes e outros mais sujeita;

Olha o rio Menão, que se derrama

Do grande lago que Chiamai se chama.



125o Repare no extremo da Terra e veja Cingapura (1),

Onde o caminho dos navios se estreita.

Dali, retornando à Costa, no rumo da Cinosura (2),

Entorta-se e no rumo da Aurora (Oriente) se endireita.

Vês os reinos de Pam (3) e Patane (4) e a grande largura

Do reino de Sião (5), que a esses e a muitos outros sujeita?

Olha o rio Menão (6) que se derrama

Do grande lago que Chiamai (7) se chama.

1- Cingapura: região situada na península de Malaca.

2- Cinosura: a constelação da Ursa Menor.

3- Pam: reino indiano na costa oriental da península de Malaca.

4- Patane: idem.

5- Sião: reino da índia. A atual Tailândia.

6- Rio Menão: rio da Indochina que nasceria num suposto lago chamado de Chiamai e que deságua no golfo de Sião.

7- Chiamai: Há uma cidade na China (atual Chieng Moi) na margem do rio Menão, mas o lago é inexistente.



Vês neste grão terreno os diferentes

Nomes de mil nações, nunca sabidas:

Os Laos, em terra e número potentes;

Avás, Bramás, por serras tão compridas;

Vê nos remotos montes outras gentes,

Que Gueos se chamam, de selvages vidas;

Humana carne comem, mas a sua

Pintam com ferro ardente, usança crua.



126o Veja neste grande território os diferentes

Nomes de mil nações, até então, desconhecidas:

O Laos (1) de terras e população muito potentes;

Avás (2), Bramás (3), com suas terras tão compridas;

Veja naqueles montes distantes as outras gentes

Que se chamam Gueos (4) e vivem selvagens vidas.

Comem a carne humana dos inimigos e à sua

Tatuam com ferro em brasa, de maneira crua.



1- Laos: país vizinho ao Vietnã.

2- Avás: povo do interior da Birmânia.

3- Bramás: um dos povos da Índia.

4- Gueos: povo do Sião, que segundo Camões praticava a antropofagia e a tatuagem. Não há comprovação cientifica dessa prática de canibalismo.



«Vês, passa por Camboja Mecom rio,

Que capitão das águas se interpreta;

Tantas recebe d’ outro só no Estio,

Que alaga os campos largos e inquieta;

Tem as enchentes quais o Nilo frio;

A gente dele crê, como indiscreta,

Que pena e glória têm, despois de morte,

Os brutos animais de toda sorte.



127o Veja que pelo Camboja (1) passa o Mecom (2) rio,

Um comandante das águas, papel que bem interpreta,

Pois recebe tantos afluentes, só no Estio (3),

Que transborda e aos campos alaga e inquieta

(Como as enchentes iguais do rio Nilo frio).

Os ribeirinhos acreditam em magias secretas,

E que castigo ou prêmio, depois da morte,

Até os ferozes animais recebem, de toda sorte.



1- Camboja: o reino da Indochina.

2- Rio Mecom: grande rio da Ásia que nasce no Tibet, banha o Camboja e deságua no Mar da China.

3- Estio: Verão.



«Este receberá, plácido e brando,

No seu regaço os Cantos que molhados

Vêm do naufrágio triste e miserando,

Dos procelosos baxos escapados,

Das fomes, dos perigos grandes, quando

Será o injusto mando executado

Naquele cuja Lira sonorosa

Será mais afamada que ditosa.



128o Quase o Mecom receberia, plácido e brando,

No seu regaço este Poema, que todo molhado,

Vem de um naufrágio triste e miserando,

De furiosas tempestades marítimas, refugiado,

Assim como da fome e de grandes perigos, quando

O injusto castigo for executado,

Naquele (1) cuja poesia sonorosa,

Será mais afamada do que generosa.



1- Aqui, Camões refere-se a si próprio, quando sofreu um naufrágio. Enquanto ele trabalhava na China como “Provedor dos mortos e ausentes” foi acusado de algumas irregularidades e estava sendo levado para a Índia para ser julgado quando aconteceu o naufrágio no rio Mecom que quase lhe custou a vida e o manuscrito dos “Lusíadas”. Note-se que profeticamente Camões diz que “Os Lusíadas” lhe trará mais fama que prêmios materiais, o que de fato ocorreu, sendo que o fim de sua vida foi passado em extrema miséria. Segundo contam, vivia das esmolas que seu escravo javanês conseguia.



«Vês, corre a costa que Champá se chama,

Cuja mata é do pau cheiroso ornada;

Vês Cauchichina está, de escura fama,

E de Ainão vê a incógnita enseada;

Aqui o soberbo Império, que se afama

Com terras e riqueza não cuidada,

Da China corre, e ocupa o senhorio

Desde o Trópico ardente ao Cinto frio.



129o Veja ali a Costa que Champá (1) se chama,

Sua mata, de madeira perfumada é ornada;

Repare na Cauchichina (2), de obscura fama,

E na ilha de Ainão (3) veja a desconhecida Enseada.

Ali o soberbo império, que se afama

Por suas terras e pela riqueza nunca imaginada,

Chama-se China, cujo imenso poderio

Vai do Trópico de Câncer até ao Cinturão frio (4).



1- Champá: antigo reino, situado junto do Camboja e da Conchichina.

2- Cauchichina: a antiga Conchichina.

3- Ainão: ilha e cidade na costa sul da China.

4- O Cinturão frio: o norte do hemisfério.



«Olha o muro e edifício nunca crido,

Que entre um império e o outro se edifica,

Certíssimo sinal, e conhecido,

Da potência real, soberba e rica.

Estes, o Rei que têm, não foi nacido

Príncipe, nem dos pais aos filhos fica,

Mas elegem aquele que é famoso

Por cavaleiro, sábio e virtuoso.



130o Veja a Grande Muralha e o edifício desconhecido,

Que une o Império, enquanto o solidifica;

É um claro sinal e como tal é reconhecido,

Do grande poderio desta terra, soberba e rica;

Ali, os reis não chegam ao trono por terem nascido

Príncipes e nem o cargo do pai aos filhos fica;

O povo elege aquele que é famoso

Por ser valente, sábio e virtuoso.



«Inda outra muita terra se te esconde

Até que venha o tempo de mostrar-se;

Mas não deixes no mar as Ilhas onde

A Natureza quis mais afamar-se:

Esta, meia escondida, que responde

De longe à China, donde vem buscar-se, ,

É Japão, onde nace a prata fina,

Que ilustrada será co a Lei divina.



131o Ainda existe muita terra que se esconde,

Até que chegue a época certa de mostrar-se.

Mas não deixe de notar no Mar, as ilhas onde

A natureza mais quis afamar-se:

Veja aquela um pouco oculta, que corresponde

Paralelamente com a China, donde veio originar-se

É o Japão, onde nasce a prata fina

E que será iluminada (1) com a Lei Divina.



1- Camões refere-se ao apostolado de São Francisco Xavier neste país.



«Olha cá pelos mares do Oriente

Ás infinitas Ilhas espalhadas:

Vê Tidore e Ternate, co fervente

Cume, que lança as flamas ondeadas.

As árvores verás do cravo ardente,

Co sangue Português inda compradas.

Aqui há as áureas aves, que não decem

Nunca à terra e só mortas aparecem.



132o Observe que pelos mares do Oriente

Inúmeras ilhas estão espalhadas:

Veja Tidore (1) e Ternate (2), com o fervente

Cume que lança as chamas ondeadas.

Verás as árvores do cravo (3) ardente,

Que com o sangue dos lusos, ainda são compradas.

Ali existem as aves douradas, que nunca descem

À terra e só depois de mortas é que aparecem (4).



1-Tidore: ilha do arquipélago das Molucas.

2- Ternate: idem. Ambas vulcânicas.

3- Cravo: especiaria. O cravo da Índia.

4- Alusão às chamadas “Aves do Paraíso”, cuja beleza é de tal ordem que por muito tempo se acreditou que fosse Angelicais. Para contribuir com essa lenda e enganar os Ocidentais, os nativos amputavam as patas dos pássaros para “mostrar” que eles nem poderiam descer à Terra por não terem como andar. Atualmente essa crueldade é menor, mas ainda persiste em certas regiões.



«Olha de Banda as Ilhas, que se esmaltam ,

Da vária cor que pinta o roxo fruto;

Às aves variadas, que ali saltam,

Da verde noz tomando seu tributo.

Olha também Bornéu, onde não faltam

Lágrimas no licor coalhado e enxuto

Das árvores, que cânfora é chamado

Com que da Ilha o nome é celebrado.



133o Olhe as ilhas de Banda (1), que se enfeitam

De cores variadas e do rubro fruto;

Observe a variedade de aves que ali saltam,

Retirando da verde fruta o seu tributo.

Olhe também a ilha de Bornéu (2), onde não faltam

Sofrimentos no líquido coalhado e quase enxuto

Que é retirado das árvores. De Cânfora é chamado

Tornando o nome dessa ilha muito afamado.



1- Banda:arquipélago nas Molucas, famosa pela produção de noz-moscada.

2- Bornéu: ilha do arquipélago de Sunda, sendo a segunda maior ilha do Mundo, atrás apenas da Austrália. Famosa pela produção de Cânfora.



«Ali também Timor, que o lenho manda

Sândalo, salutífero e cheiroso;

Olha a Sunda, tão larga que üa banda

Esconde pera o Sul dificultoso;

A gente do Sertão, que as terras anda,

Um rio diz que tem miraculoso,

Que, por onde ele só, sem outro, vai,

Converte em pedra o pau que nele cai.



134o Ali também fica o Timor (1), que manda

A madeira do sândalo, salutar e cheiroso.

Olha Sunda (2), tão larga que uma das bandas

Esconde-se no sul dificultoso;

O povo selvagem que em suas terras anda,

Diz que existe um rio miraculoso

Que por onde corre, nenhum outro vai

E que transforma em pedra, a madeira que nele cai.



1- Timor: ilha do arquipélago de Sonda.

2- Sunda: parte oriental da ilha de Java. Atualmente se designa como Sonda a todo o arquipélago a que Java pertence.



«Vê naquela que o tempo tornou Ilha,

Que também flamas trémulas vapora,

A fonte que óleo mana, e a maravilha

Do cheiroso licor que o tronco chora,

- Cheiroso, mais que quanto estila a filha

De Ciniras na Arábia, onde ela mora;

E vê que, tendo quanto as outras têm,

Branda seda e fino ouro dá também.



135o Veja a terra, que o tempo transformou em ilha,

Nela, também, a trêmula chama evapora;

Observe a fonte que mina óleo e a maravilha

De líquido cheiroso que do tronco da árvore chora;

É mais perfumado que aquele que destila a filha

De Ciniras (1) na Arábia, onde mora;

E veja que ela possui tudo que as outras têm,

A suave seda e o refinado ouro também.



1- Ciniras: rei de Chipre que cometeu incesto com a sua filha de nome Mirra, a qual foi transformada na árvore que leva o seu nome. Dela se usa a resina para a fabricação de incensos, perfumes, ungüentos e etc. Mirra teria sido um dos presentes dados a Jesus Cristo bebê, por um dos três Reis Magos, como acreditam os cristãos. Aqui, Camões coloca o perfurme da árvore de que faz referencia como superior ao da Mirra.



«Olha, em Ceilão, que o monte se alevanta

Tanto que as nuvens passa ou a vista engana;

Os naturais o têm por cousa santa,

Pola pedra onde está a pegada humana.

Nas ilhas de Maldiva nace a pranta

No profundo das águas, soberana,

Cujo pomo contra o veneno urgente

É tido por antídoto excelente.



136o Note que no Ceilão o Monte tanto se levanta

Que ultrapassa as nuvens, ou é a vista que nos engana;

Os nativos o têm como se fosse uma Montanha Santa,

Pois nela, uma pedra foi marcada por pegada humana.

Nas ilhas de Maldiva (1) é que nasce a planta,

Nas profundezas de suas águas, soberana,

Cujo fruto, para os venenos de perigo iminente,

É tido como um antídoto excelente.



1- Maldivas: as ilhas Maldivas constituem um arquipélago situado a sudoeste do Ceilão (atual Sri Lanka), no Oceano Indico.



«Verás defronte estar do Roxo Estreito

Socotorá, co amaro aloé famosa;

Outras ilhas, no mar também sujeito

A vós, na costa de África arenosa,

Onde sai do cheiro mais perfeito

A massa, ao mundo oculta e preciosa.

De São Lourenço vê a Ilha afamada,

Que Madagáscar é dalguns chamada.



137o Ali tu verás, em frente ao Rubro Estreito (1),

A Socotorá (2), com a sua amarga aloé (3) famosa;

E muitas outras ilhas, naquele Mar que já está sujeito

Ao vosso domínio, na costa da África arenosa,

Donde se extrai a base do perfume mais perfeito,

Que ao resto do mundo é oculta e preciosa.

Veja a ilha de São Lourenço (4), tão afamada,

A qual, por alguns, de Madagáscar é chamada.





1- O Roxo Estreito: O Estreito de Babelmândeb, na entrada do Mar Vermelho.

2- Socotorá: ilha situada no Oceano Índico, em frente do Cabo de Guardafui.

3- Aloé: planta medicinal. A babosa.

4- Ilhas de São Lourenço ou ilha de Madagáscar, situadas junto à costa Oriental da África, da qual é separada pelo canal de Moçambique.



«Eis aqui as novas partes do Oriente

Que vós outros agora ao mundo dais,

Abrindo a porta ao vasto mar patente,

Que com tão forte peito navegais.

Mas é também razão que, no Ponente,

Dum Lusitano um feito inda vejais,

Que, de seu Rei mostrando-se agravado,

Caminho há-de fazer nunca cuidado.



138o Aqui estão as novas regiões do Oriente,

Que vós, agora, ao Mundo entregas,

Abrindo as portas do mar, furioso e potente,

Que com tanta coragem navegas.

Mas também é oportuno que no Ocidente,

As proezas de outro lusitano (1) tu vejas,

Pois sentido que é pelo seu Rei injustiçado,

Achará um novo caminho, nunca antes imaginado.



1- Referência a Fernão de Magalhães que descobriu a passagem entre o Atlântico e o Pacífico e realizou a primeira viagem de circunavegação a serviço do rei da Espanha.



«Vedes a grande terra que contina

Vai de Calisto ao seu contrário Pólo,

Que soberba a fará a luzente mina

Do metal que a cor tem do louro Apolo.

Castela, vossa amiga, será dina

De lançar-lhe o colar ao rudo colo.

Varias províncias tem de várias gentes,

Em ritos e costumes, diferentes.



139o Veja a grande extensão de terra contínua (1),

Que vai da Constelação de Calisto até ao oposto Pólo;

E que é majestosa com a reluzente mina

De ouro, que tem a cor do louro Apolo (2).

Castela (3), vossa amiga, será a conquistadora digna,

Que lhe colocará o forte laço em seu rude colo,

Dominando as várias províncias e variadas gentes,

Que em ritos e costumes são tão diferentes.



1- Referência às terras da América Latina.

2- Referência ao deus Apolo, deus do sol.

3 – Castela: aqui Camões cita o reino de Castela como se fosse a Espanha toda, a dominadora da América Latina, com excessão do Brasil, sob o jugo português.



«Mas cá onde mais se alarga, ali tereis

Parte também, co pau vermelho nota;

De Santa Cruz o nome lhe poreis;

Descobri-la-á a primeira vossa frota.

Ao longo desta costa, que tereis,

Irá buscando a parte mais remota

O Magalhães, no feito, com verdade,

Português, porém não na lealdade.



140o Todavia, onde mais se alarga a terra tereis

Grande parte, rica em pau vermelho (1) como se nota;

De “Santa Cruz”, a nova província chamareis,

A qual será descoberta pela vossa primeira frota,

Que ao longo dessa Costa, dos lusos Reis,

Irá procurando a sua parte mais remota:

O Estreito que Magalhães descobrirá na posteridade,

Mesmo sem ser um português com lealdade.



1- As árvores de Pau-Brasil. Aqui ocorre a única menção que Camões faz ao Brasil, na época, considerado uma conquista menor quando comparado com a exuberância da Índia, da China e doutras localidades do Oriente.



«Dês que passar a via mais que meia

Que ao Antártico Pólo vai da Linha,

Düa estatura quási giganteia

Homens verá, da terra ali vizinha;

E mais avante o Estreito que se arreia

Co nome dele agora, o qual caminha

Pera outro mar e terra que fica onde

Com suas frias asas o Austro a esconde.



141o Depois que ultrapassar mais que meia

Via, que do Pólo Antártico vai até a Linha (1),

Com uma bela estatura gigantesca (2),

Verás os homens que habitam a terra, dali vizinha.

E mais adiante está o Estreito que agora se nomeia

Com o nome de Magalhães, no qual se caminha

Para o outro mar e para a terra que se situa onde

As frias asas do vento Austro lhe esconde.



1- Referência a Linha do Equador.

2 – alusão aos chamados “Indios Gigantes da Pagônia”, tribo que passou para a lenda como “gigante”, mas que na verdade era constituída por pessoas cuja altura era maior que a da média.



«Até’aqui Portugueses concedido

Vos é saberdes os futuros feitos

Que, pelo mar que já deixais sabido,

Virão fazer barões de fortes peitos.

Agora, pois que tendes aprendido

Trabalhos que vos façam ser aceitos

As eternas esposas e fermosas,

Que coroas vos tecem gloriosas,



142o Até aqui, portugueses, lhes foi concedido,

Saberdes as futuras proezas e os grandes feitos,

Que pelos mares que vós já deixam conhecido,

Virão fazer os ilustres varões de fortes peitos.

E agora que as dificuldades já têm vencido

E se tornaram dignos de serem aceitos

Pelas eternas esposas ninfas formosas,

Que já tecem as suas coroas gloriosas,



«Podeis-vos embarcar, que tendes vento

E mar tranquilo, pera a pátria amada.»

Assi lhe disse; e logo movimento

Fazem da Ilha alegre e namorada.

Levam refresco e nobre mantimento;

Levam a companhia desejada

Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,

Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.



143o Podem embarcar, pois tendes vento

E mar tranqüilo; sigam para a pátria amada,

A deusa disse: e eles já fazem o movimento

De partida daquela ilha alegre e namorada.

Levam refrescos e nobres alimentos;

E levam também a companhia desejada

Das ninfas (2), que serão suas eternamente,

Por mais que o Sol ao mundo esquente (1).



1- Isto é: eternamente.

2- Ou seja, as glórias que as Ninfas simbolizavam.



Assi foram cortando o mar sereno,

Com vento sempre manso e nunca irado,

Até que houveram vista do terreno

Em que naceram, sempre desejado.

Entraram pela foz do Tejo ameno,

E à sua pátria e Rei temido e amado

O prémio e glória dão por que mandou,

E com títulos novos se ilustrou.



144o E assim foram singrando o mar sereno,

Com o vento sempre manso e nunca irado,

Até que certo dia avistaram o amado terreno

Em que nasceram, o torrão natal desejado.

Entraram pela foz do rio Tejo, sempre ameno,

E à sua pátria e ao seu rei, respeitado e amado,

Deram o prêmio e a glória para quem os comandou

E que com mais esses novos títulos se consagrou.



Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza

Düa austera, apagada e vil tristeza.



145o Mas... Não mais, Musa. A inspiração que tenho

Está confusa e a minha voz está enrouquecida,

E não por tanto cantar, mas por ver que venho

Cantando para uma gente surda e endurecida.

O estímulo com que se inflama o engenho

A pátria não me dá, pois está comprometida

Com o gosto da cobiça e na rudeza

De uma austera, apagada e vil tristeza.



E não sei por que influxo de Destino

Não tem um ledo orgulho e geral gosto,

Que os ânimos levanta de contino

A ter pera trabalhos ledo o rosto.

Por isso vós, ó Rei, que por divino

Conselho estais no régio sólio posto,

Olhai que sois (e vede as outras gentes)

Senhor só de vassalos excelentes.



146o E não sei por qual desígnio do Destino

Assim está; sem alegre orgulho e gosto,

Que levanta os ânimos de modo contínuo

Para se enfrentar a Vida com um feliz rosto.

Mas vejas, ó sublime Rei, que por Divino

Mandado está no Real Trono posto,

Que sois (compare com as outras gentes)

O soberano só de súditos excelentes.



Olhai que ledos vão, por várias vias,

Quais rompentes liões e bravos touros,

Dando os corpos a fomes e vigias,

A ferro, a fogo, a setas e pelouros,

A quentes regiões, a plagas frias,

A golpes de Idolátras e de Mouros,

A perigos incógnitos do mundo,

A naufrágios, a pexes, ao profundo.



147o Olhe que eles vão felizes, por várias vias,

Iguais a leões rompedores e aos bravos touros,

Cedendo o corpo às fomes, às exaustivas vigias,

Enfrentam o ferro, o fogo, as flechas e os pelouros (1),

Suportando as regiões quentes e as terras frias,

Expondo-se aos golpes dos pagãos e dos mouros,

Arriscando-se aos desconhecidos perigos do Mundo,

Aos naufrágios, aos peixes e ao Mar profundo.



1- Pelouros: bombas.



Por vos servir, a tudo aparelhados;

De vós tão longe, sempre obedientes;

A quaisquer vossos ásperos mandados,

Sem dar reposta, prontos e contentes.

Só com saber que são de vós olhados,

Demónios infernais, negros e ardentes,

Cometerão convosco, e não duvido

Que vencedor vos façam, não vencido.



148o Para vos servir, em tudo estão preparados;

E mesmo estando longe, são sempre obedientes

A quaisquer dos vossos duros comandos,

Sem retrucar, atendem prontos e muito contentes.

Apenas por saber que por vós são observados,

Aos demônios infernais, negros e ardentes,

Enfrentam com valentia e arte e não duvido

Que vos faça sempre vencedor e nunca vencido.



Favorecei-os logo, e alegrai-os

Com a presença e leda humanidade;

De rigorosas leis desalivai-os,

Que assi se abre o caminho à santidade.

Os mais exprimentados levantai-os,

Se, com a experiência, têm bondade

Pera vosso conselho, pois que sabem

O como, o quando, e onde as cousas cabem.



149o Favorecei-os logo Senhor e alegrai-os

Com a vossa presença e alegre humanidade;

Das leis rigorosas e muito severas aliviai-os,

Pois é assim o caminho para a Santidade.

Aos mais experientes buscai e levai-os,

Se com a experiência tiverem bondade,

Para o vosso Ministério, pois eles sabem

Onde todas as coisas e situações cabem.



Todos favorecei em seus ofícios,

Segundo têm das vidas o talento;

Tenham Religiosos exercícios

De rogarem, por vosso regimento,

Com jejuns, disciplina, pelos vícios

Comuns; toda ambição terão por vento,

Que o bom Religioso verdadeiro

Glória vã não pretende nem dinheiro.



150o Favorecei a todos em seus ofícios,

Pois cada um tem o seu talento;

Faça que os Padres (1) cumpram os exercícios

De rogarem pelo vosso bom regimento

Com jejuns e disciplinas, pois os vícios

São comuns; que sua ambição o vento

Leve para longe, pois o Padre, bom e verdadeiro,

Não procura a fútil glória e nem o dinheiro.



1- Camões chama os Padres católicos de “Religiosos”. Manteremos essa identificação porque à época não existiam outras Religiões permitidas.



Os Cavaleiros tende em muita estima,

Pois com seu sangue intrépido e fervente

Estendem não sòmente a Lei de cima,

Mas inda vosso Império preminente.

Pois aqueles que a tão remoto clima

Vos vão servir, com passo diligente,

Dous inimigos vencem: uns, os vivos,

E (o que é mais) os trabalhos excessivos.



151o Pelos cavaleiros tende muita estima,

Pois com sangue intrépido e fervente,

Eles estendem não apenas a Lei Divina,

Mas também ao vosso império proeminente.

Os que vão às terras distantes e adverso clima

Vão para te servir, com passo diligente,

A dois inimigos vencem: aos adversários vivos,

E (o que é mais) aos transtornos excessivos.



Fazei, Senhor, que nunca os admirados

Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,

Possam dizer que são pera mandados,

Mais que pera mandar, os Portugueses.

Tomai conselho só d’exprimentados

Que viram largos anos, largos meses,

Que, posto que em cientes muito cabe.

Mais em particular o experto sabe.



152o Faça Senhor, que não digam os admirados

Alemães, Franceses, Italianos e Ingleses,

Que os lusos nasceram para serem mandados,

Pois é uma insolente infâmia aos portugueses.

Aceite só os conselhos dos experimentados,

Que já viveram muitos anos e muitos meses,

Pois, se nos eruditos muito “Saber” cabe,

No particular, é o experiente que mais sabe.



De Formião, filósofo elegante,

Vereis como Anibal escarnecia,

Quando das artes bélicas, diante

Dele, com larga voz tratava e lia.

A disciplina militar prestante

Não se aprende, Senhor, na fantasia,

Sonhando, imaginando ou estudando,

Senão vendo, tratando e pelejando.



153o Veja Formião (1), o filósofo elegante,

E como o grande Aníbal (2) dele escarnecia,

Quando sobre as guerreiras artes, diante

Dele, com a voz alterada, falava e lia.

A disciplina militar estrita e prestante,

Não se aprende nos livros ou na fantasia,

Sonhando, imaginando ou estudando,

Exige que o discípulo a aprenda lutando.



1- Formião: filósofo grego que discorreu certo dia, de forma disparatada sobre a arte militar diante de Aníbal.

2- Anibal: General Cartaginês que enfrentou com sucesso a poderosa Roma,



Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,

De vós não conhecido nem sonhado?

Da boca dos pequenos sei, contudo,

Que o louvor sai às vezes acabado.

Tem me falta na vida honesto estudo,

Com longa experiência misturado,

Nem engenho, que aqui vereis presente,

Cousas que juntas se acham raramente.



154o Mas eu que falo humilde, baixo e quase mudo,

Por vós não sou conhecido ou sequer imaginado?

Da boca dos humildes, eu sei, contudo,

Que às vezes o louvor é mais elaborado.

Nem me falta, na vida, um sério estudo,

Com a minha longa experiência misturado,

Mais a criatividade, que aqui vereis presente;

Qualidades que juntas, encontram-se raramente.





Pera servir-vos, braço às armas feito,

Pera cantar-vos, mente às Musas dada;

Só me falece ser a vós aceito,

De quem virtude deve ser prezada.

Se me isto o Céu concede, e o vosso peito

Dina empresa tomar de ser cantada,

Como a pres[s]aga mente vaticina

Olhando a vossa inclinação divina,



155o Para os combates, meu braço está afeito;

Para louvar-te, a minha mente às Musas foi dada;

Apenas me falta ser por vós aceito,

Pois a sua nobreza deve ser prezada.

E se isto o céu me concede e o vosso peito

Praticar as proezas que mereçam ser exaltadas,

Como a profética mente vaticina

Olhando para a sua inclinação divina,





Ou fazendo que, mais que a de Medusa,

A vista vossa tema o monte Atlante,

Ou rompendo nos campos de Ampelusa

Os muros de Marrocos e Trudante,

A minha já estimada e leda Musa

Fico que em todo o mundo de vós cante,

De sorte que Alexandro em vós se veja,

Sem à dita de Aquiles ter enveja.



156o E o farei de tal modo, que mais que a da Medusa (1),

A sua figura cause temor no monte Atlante (2),

Ou rompendo pelos campos de Ampelusa (3)

Contra os muros de Marrocos (4) e Trudante (5).

Sobre vós, com a minha estimada e alegre Musa

Cantarei, para que todo Mundo de ti se encante.

E de tal maneira, que Alexandre (6) em vós se veja,

Pois a grandeza de Aquiles (7), em ti mais viceja.



1- Medusa: uma das três Górgonas. Era muito bela, mas ofendeu Minerva que transformou os seus cabelos em serpentes e deu ao seu olhar o poder de petrificar quem a fitasse.

2- Atlante: rei da Mauritânia, filho de Júpiter. Perseu, a quem ele recusou hospitalidade obrigou-o a olhar para a Medusa e assim o transformou numa montanha, situada no norte da África, e o condenou a sustentar o Céu com os ombros.

3- Ampelusa: o Cabo Espartel, a norte do Marrocos.

4- Marrocos: país da África do Norte, fronteiriço com a Península Ibérica.

5- Trudente: cidade situada em Marrocos.

6- Alexandre: Alexandre Magno, rei da Macedônia e conquistador da Pérsia

e da Índia.

7- Aquiles: herói grego, filho de Peleu e de Tétis.



Adaptação de "OS LUSÍADAS" ao Português Atual - Canto X - 1ª Parte

Notas à Edição


1. Correções ortográficas foram feitas apenas nas Estrofes Adaptadas por motivos óbvios. Essa adaptação não é uma tradução, até porque o idioma é único. Destarte, o leitor notará que as estrofes adaptadas não brilham pela perfeição da métrica ou do sistema rimático. Aliás, sobre as rimas vale uma observação: praticamente todas as estrofes adaptadas foram rimadas, porém algumas rimas atendem ao Português falado em Portugal onde algumas sílabas são abertas enquanto que no Brasil são fechadas; ou vice-versa. O autor conta com a indulgência dos leitores para esses fatos.

2. No texto original, provavelmente escrito em 1556 e publicado pela primeira vez em 1572 (pouco depois do descobrimento do Brasil), Camões emite conceitos e Juízos (ou Julgamentos) que eram apropriados à sua época, mas que atualmente são considerados ofensivos. Por fidelidade ao texto, o autor da Adaptação conta com a compreensão dos (as) leitores (as) por ter transposto alguns desses Conceitos, os quais não são, obviamente, endossados pelo mesmo.

3. Os deuses gregos são chamados pelos seus nomes em latim. Embora incorreto, o autor da adaptação optou por tal modo em vista de estarem mais popularizados dessa maneira.

4. Sugere-se que a Estrofe Adaptada seja lida em primeiro lugar, para que ao se ler a Estrofe Original toda a genialidade de Camões possa ser desfrutada integralmente, quer no tocante ao esquema rimático, quer no quesito da perfeição de sua métrica e a todos os outros elementos que o bardo expôs com maestria singular.

5. Por último, o autor dessa Adaptação coloca-se ao inteiro dispor para fazer eventuais e fundamentadas correções, acréscimos ou subtrações, pois o Monumento erguido por Camões merece cuidados que nunca serão excessivos.


Dedicado aos Poetas Portugueses

Inês Dupas e Giraldoff

Canto X

Mas já o claro amador da Larisseia

Adúltera inclinava os animais

Lá pera o grande lago que rodeia

Temistitão, nos fins Ocidentais;

O grande ardor do Sol Favónio enfreia

Co sopro que nos tanques naturais

Encrespa a água serena e despertava

Os lírios e jasmins, que a calma agrava,


1o Nisto, o conhecido amante (1) da Larisseia (2)

Adúltera já inclinava os fogosos animais

Que movem o carro do Sol para o Mar que rodeia

O Temistitão (3), nos fins das terras ocidentais.

O forte calor do Sol, o vento Favônio (4) freia

Com os seus sopros, que nos lagos naturais,

Encrespava a água serena e despertava

Os lírios e jasmins que a calmaria embalava.





1- Referência a Apolo, deus do Sol.

2- Larisseia: natural de Larissa, na Tessália. Aqui, Camões refere-se à ninfa Corônia, que traiu Apolo.

3- Temistitão: aportuguesamento do nome do México, no idioma asteca.

4- Favônio: o vento suave. O mesmo que Zéfiro.



Quando as fermosas Ninfas, cos amantes

Pela mão, já conformes e contentes,

Subiam pera os paços radiantes

E de metais ornados reluzentes,

Mandados da Rainha, que abundantes

Mesas d’altos manjares excelentes

Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza

Restaurem da cansada natureza.



2o Então, as ninfas formosas e os amantes

Muito apaixonados, satisfeitos e contentes,

Subiram para o palácio de cristais radiantes

Enfeitado de valorosos metais reluzentes,

Ali, a Rainha ordenara que abundantes

Mesas, com manjares finos e excelentes,

Fossem preparadas para que a fraqueza

Fosse restaurada, pois a gente estava cansada.



Ali, em cadeiras ricas, cristalinas,

Se assentam dous e dous, amante e dama;

Noutras, à cabeceira, d’ouro finas,

Está co a bela Deusa o claro Gama.

De iguarias suaves e divinas,

A quem não chega a Egípcia antiga fama ,

Se acumulam os pratos de fulvo ouro,

Trazidos lá do Atlântico tesouro.



3o Nessas mesas, em ricas cadeiras cristalinas,

Eles se assentam de dois em dois, o amante e a dama;

Na cabeceira, em cadeiras douradas e muito finas,

Sentam-se a bela deusa Téthis e o ilustre Gama.

Com iguarias suaves e divinas,

Superiores aos da antiga Egípcia (1), de tanta fama,

São servidos os pratos de alvo ouro,

Trazidos do Atlântico tesouro.



1- Referência à Cleópatra, cujas festas e celebrações eram tão suntuosas que se tornaram proverbiais.



Os vinhos odoríferos, que acima

Estão não só do Itálico Falerno

Mas da Ambrósia, que Jove tanto estima

Com todo o ajuntamento sempiterno,

Nos vasos, onde em vão trabalha a lima,

Crespas escumas erguem, que no interno

Coração movem súbita alegria,

Saltando co a mistura d’água fria.



4o Os vinhos perfumados estão acima

Não só dos italianos Falernos (1),

Como da Ambrósia (2), que Júpiter tanto estima,

Seguido pelo agrupamento dos deuses eternos.

Nos jarros, que nunca são desgastados pela lima,

Crespas espumas se erguem e nos fraternos

Corações causam uma súbita alegria,

Saltitando com a mistura da água fria.



1- Falernos: famoso vinho da Campânia, sempre exaltado pelos poetas latinos.

2- Ambrósia: manjar dos deuses no Olimpo, que dava ou conservava a imortalidade.



Mil práticas alegres se tocavam;

Risos doces, sutis e argutos ditos,

Que entre um e outro manjar se alevantavam,

Despertando os alegres apetitos;

Músicos instrumentos não faltavam

(Quais, no profundo Reino, os nus espritos

Fizeram descansar da eterna pena)

Cüa voz düa angélica Sirena.



5o Mil palavras alegres, entre si, trocavam,

Doces sorrisos, sutil e arguto palpite,

Que entre os manjares se levantava,

Inflamando ainda mais o apetite;

Instrumentos musicais não faltavam

(Iguais aos que no Reino de Dite (1)

Dão algum descanso para a eterna pena)

Com som tão angelical quanto o da Sirena (2).





1) Reino de Dite: O Inferno. O reino dos mortos. Ali, algumas músicas são tocadas, o que alivia o sofrimento eterno.

2) Sirenas: sereia. Ser mitológico, metade mulher e metade peixe, que atraia os navegantes com a voz melodiosa, fazendo-os naufragar.



Cantava a bela Ninfa, e cos acentos,

Que pelos altos paços vão soando,

Em consonância igual, os instumentos

Suaves vêm a um tempo conformando.

Um súbito silêncio enfreia os ventos

E faz ir docemente murmurando

As águas, e nas casas naturais

Adormecer os brutos animais.



6o A bela ninfa cantava com lindos acentos,

Que por todo o espaço vão ecoando,

Em delicada consonância com os instrumentos

Melodiosos, que lhe vão acompanhando.

Um súbito silêncio freia os ventos

E faz com que, docemente murmurando

As águas corram; e nas cavernas naturais,

Faz com que adormeçam os ferozes animais.



Com doce voz está subindo ao Céu

Altos varões que estão por vir ao mundo,

Cujas claras Ideias viu Proteu

Num globo vão, diáfano, rotundo,

Que Júpiter em dom lho concedeu

Em sonhos, e despois no Reino fundo,

Vaticinando, o disse, e na memória

Recolheu logo a Ninfa a clara história.



7o Com linda voz, a ninfa vai elevando ao Céu

Os ilustres heróis que ainda virão ao Mundo,

Conforme a clara profecia que Proteu

Viu em seu Globo de Cristal rotundo,

Que Júpiter, como um dom, lhe concedeu

Em sonhos e depois no Reino Profundo;

E ele, profetizando, relatou a futura história

Que a ninfa guardou na memória.



Matéria é de coturno, e não de soco,

A que a Ninfa aprendeu no imenso lago;

Qual Iopas não soube, ou Demodoco,

Entre os Feaces um, outro em Cartago.

Aqui, minha Calíope, te invoco

Neste trabalho extremo, por que em pago

Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,

O gosto de escrever, que vou perdendo.



8o Matéria de muita importância e não é pouco,

O que a Musa aprendeu no imenso e poético lago

Do qual Iopas (1) não soube e nem Demódoco (2);

Um entre os Feáceos (3) e o outro em Cartago (4).

Aqui, minha Calíope, eu de novo te invoco

Para ajudar-me e para que eu seja pago

Com o retorno da inspiração, como pretendo,

Pois sinto que o gosto de escrever, estou perdendo.



1- Iopas: o cantor que abrilhantou o banquete oferecido por Dido, para Enéas.

2- Demódoco: cantor que louvava as proezas do rei de Ítala, na presença de Ulisses.

3- Feáceos: povo da antiguidade, governado pelo rei Alcino e visitado por Ulisses quando voltava de Tróia para Ìtaca.

4- Cartago: cidade na África do Norte fundada por Dido e onde, segundo a lenda, nasceu Iopas.



Vão os anos decendo, e já do Estio

Há pouco que passar até o Outono;

A Fortuna me faz o engenho frio,

Do qual já não me jacto nem me abono;

Os desgostos me vão levando ao rio

Do negro esquecimento e eterno sono.

Mas tu me dá que cumpra, ó grão rainha

Das Musas, co que quero à nação minha!



9o Os anos vão passando e do Estio (1)

Falta pouco para que eu chegue ao Outono;

A má sorte tornou o meu talento frio,

E dele eu já não me orgulho e nem me abono;

Os desgostos estão me levando ao rio

Do negro esquecimento e eterno sono.

Mas fazes com que eu cumpra, ó Rainha

Das musas, o dever de louvar a Pátria minha.



1) Estio: o verão. Forma poética de Camões dizer que sua juventudade estava perto do fim e que logo entraria na maturidade, ou Outono.



Cantava a bela Deusa que viriam

Do Tejo, pelo mar que o Gama abrira,

Armadas que as ribeiras venceriam

Por onde o Oceano Índico suspira;

E que os Gentios Reis que não dariam

A cerviz sua ao jugo, o ferro e ira

Provariam do braço duro e forte,

Até render-se a ele ou logo à morte.



10o No seu canto, a bela ninfa profetizava que viriam,

Do rio Tejo, pelo caminho do Mar que Vasco abrira,

Fortes esquadras que as dificuldades venceriam

Por onde todo o Oceano Índico suspira (1);

E que aqueles reis pagãos que não dariam

Suas rendições e submissões, o ferro e ira

Sofreriam do braço valente e forte,

Até que encontrassem a morte.



1-alude Camões aos Paises e terras banhadas pelo Oceano ìndico, que em maioria era toda muculmana.



Cantava dum que tem nos Malabares

Do sumo sacerdócio a dignidade,

Que, só por não quebrar cos singulares

Barões os nós que dera d’amizade,

Sofrerá suas cidades e lugares,

Com ferro, incêndios, ira e crueldade,

Ver destruir do Samorim potente,

Que tais ódios terá co a nova gente.



11o Cantava sobre um, que entre os Malabares,

Exercia o Sumo Sacerdócio com muita dignidade,

E que apenas por não quebrar com os invulgares

Lusos os fraternos laços de amizade,

Sofrerá em suas cidades e em todos os lugares,

Com armas, incêndios, ira e crueldade.

Severa punição de outro Samorim potente,

Que odeia os lusos, a quem chama de nova gente.



E canta como lá se embarcaria

Em Belém o remédio deste dano,

Sem saber o que em si ao mar traria,

O grão Pacheco, Aquiles Lusitano.

O peso sentirão, quando entraria,

O curvo lenho e o férvido Oceano,

Quando mais n’água os troncos que gemerem

Contra sua natureza se meterem.



12o E cantando, relata como é que embarcaria

Lá em Belém, o vingador deste dano;

Sem saber o que o mar lhe traria,

Seguirá o Pacheco (1), o “Aquiles” lusitano.

Logo, com todo seu grande valor entraria,

Com a sua Armada, no tórrido Oceano,

E destruiria os barcos inimigos que aparecerem,

E contra a sua valente natureza se atreverem.



1-Pacheco: autor do “Situ Orbi”, guia de navegação do século XVI e sucessor dos Albuquerques na defesa de Cochim. Camões, aqui, o compara a Aquiles, herói grego.





Mas, já chegado aos fins Orientais

E deixado em ajuda do gentio Rei de

Cochim, com poucos naturais,

Nos braços do salgado e curvo rio

Desbaratará os Naires infernais

No passo Cambalão, tornando frio

D’espanto o ardor imenso do Oriente,

Que verá tanto obrar tão pouca gente.



13o Chegado aos fins dos territórios orientais,

Para socorrer ao rei de Cochim (1), nobre gentio,

Conta com o auxilio de alguns poucos naturais

E nos braços do salgado e curvo rio,

Derrotará os malvados Naires infernais

No território do Cambalão (2), tornando frio,

De tanto espanto, o imenso calor do Oriente,

Que verá tanta proeza feita, por tão pouca gente.



1- Cochim: cidade indiana, situada na costa do Malabar.

2- Cambalão: Estreito entre a ilha do mesmo nome e Cochim, na Índia.



Chamará o Samorim mais gente nova;

Virão Reis [de] Bipur e de Tanor,

Das serras de Narsinga, que alta prova

Estarão prometendo a seu senhor;

Fará que todo o Naire, enfim, se mova

Que entre Calecu jaz e Cananor,

D’ambas as Leis imigas pera a guerra:

Mouros por mar, Gentios pola terra.



14o Mas o Samorim chamará mais gente nova;

Virão reis de Bipur (1), de Tanor (2),

E das serras de Narsinga (3), dispostos à dura prova,

Conforme prometeram ao seu Senhor;

Também fará que todo Naire (4) enfim se mova,

Desde Calecu (5) até o território de Cananor (6),

E ambas as religiões inimigas se unirem para a guerra:

Os mouros pelo mar e os pagãos pela terra.



1- Bipur: reino na costa do Malabar.

2- Tanor: reino na costa do Malabar, na parte ocidental.

3- Narsinga: antigo reino do Decão, na Índia.

4- Naire: chefes militares da Índia.

5- Calecu: cidade na costa ocidental da Índia, a primeira em que Vasco da Gama aportou.

6- Cananor: cidade na Índia.



E todos outra vez desbaratando,

Por terra e mar, o grão Pacheco ousado,

A grande multidão que irá matando

A todo o Malabar terá admirado.

Cometerá outra vez, não dilatando,

O Gentio os combates, apressado,

Injuriando os seus, fazendo votos

Em vão aos Deuses vãos, surdos e imotos.



15o E a todos, canta a Ninfa, vai derrotando,

Por terra e no mar, o grande Pacheco ousado;

E a grande multidão que irá matando,

Deixará todo o Malabar (1) assombrado.

E atacará novamente, não poupando

O povo pagão dos combates; e o povo apressado,

Já criticando seus exércitos vai fazendo inúteis votos

Para os seus deuses surdos, falsos e remotos.

1- Malabar: região da costa ocidental da Índia que se estende de Canará ao Cabo Comorim.



Já não defenderá somente os passos,

Mas queimar-lhe-á lugares, templos, casas;

Aceso de ira, o Cão, não vendo lassos

Aqueles que as cidades fazem rasas,

Fará que os seus, de vida pouco escassos,

Cometam o Pacheco, que tem asas,

Por dous passos num tempo; mas voando

Dum noutro, tudo irá desbaratando.



16o Então, ele já não defenderá apenas os palácios,

Mas destruirá os campos, os templos e as casas;

Cheios de ódio, como demônios, e não vendo cansaços

Nos lusos que destroem e fazem as suas cidades rasas,

Os pagãos, já com os poderes escassos,

Novamente atacam Pacheco, mas ele parece ter asas,

Estando em dois lugares ao mesmo tempo; e voando,

A uns e aos outros irá derrotando.







Virá ali o Samorim, por que em pessoa

Veja a batalha e os seus esforce e anime;

Mas um tiro, que com zunido voa,

De sangue o tingirá no andor sublime.

Já não verá remédio ou manha boa

Nem força que o Pacheco muito estime;

Inventará traições e vãos venenos,

Mas sempre (o Céu querendo) fará menos.



17o Ali virá o próprio Samorim, para que em pessoa,

Assista a batalha e aos seus soldados incentive e anime;

Mas um tiro, que zunindo voa,

Com o seu sangue tingirá o seu andor sublime.

Então verão que não há solução ou artimanha boa,

Nem força bruta, que a Pacheco vença e subestime;

Ainda inventarão traições e inúteis venenos,

Mas (o céu querendo), tudo será de menos.



Que tornará a vez sétima (cantava)

Pelejar co invicto e forte Luso,

A quem nenhum trabalho pesa e agrava;

Mas, contudo, este só o fará confuso.

Trará pera a batalha, horrenda e brava,

Máquinas de madeiros fora de uso,

Pera lhe abalroar as caravelas,

Que até’li vão lhe fora cometê-las.



18o Porém, pela sétima vez retornará (a ninfa cantava)

Para guerrear contra o invencível e forte luso,

A quem nenhuma dificuldade atrapalha ou agrava;

Mas novamente será derrotado e muito confuso

Retira o que trouxe para a batalha horrível e brava:

Umas máquinas antigas e já fora de uso,

Com as quais pretendeu atacar as caravelas,

Sem, contudo, lograr êxito em acometê-las.



Pela água levará serras de fogo

Pera abrasar-lhe quanta armada tenha;

Mas a militar arte e engenho logo

Fará ser vã a braveza com que venha.

- «Nenhum claro barão no Márcio jogo,

Que nas asas da Fama se sustenha,

Chega a este, que a palma a todos toma.

E perdoe-me a ilustre Grécia ou Roma.



19o Pelo mar ele levará armas de fogo,

Para incendiar todas as naus que o luso tenha;

Mas o talento militar e a criatividade logo

Fará ser inócua a fúria com que o pagão venha.

Nenhum outro ilustre herói, no guerreiro jogo,

Cuja fama o seu renome mantenha,

Compara-se ao luso, que a palma da vitória toma

Dos antigos heróis das ilustres Grécia e Roma.



«Porque tantas batalhas, sustentadas

Com muito pouco mais de cem soldados,

Com tantas manhas e artes inventadas,

Tantos Cães não imbeles profligados,

Ou parecerão fábulas sonhadas,

Ou que os celestes Coros, invocados,

Decerão a ajudá-lo e lhe darão

Esforço, força, ardil e coração.



20o Pois só ele pôde nas batalhas enfrentadas,

Tendo um pouco mais que cem soldados,

Com geniais artimanhas e estratégias bem elaboradas,

A tantos cães mouros deixar inertes e derrotados;

Proezas que parecerão fábulas imaginadas,

Ou então, que Socorros Celestes foram invocados

E desceram para ajudá-lo; e sempre renovarão

A sua força, inteligência e o valente coração.



«Aquele que nos campos Maratónios

O grão poder de Dário estrui e rende,

Ou quem, com quatro mil Lacedemónios,

O passo de Termópilas defende,

Nem o mancebo Cocles dos Ausónios,

Que com todo o poder Tusco contende

Em defensa da ponte, ou Quinto Fábio,

Foi como este na guerra forte e sábio.»



21o Nem aquele que nos campos Maratônios (1),

Enfrentou o poder de Dário (2), a quem destrói e rende;

Ou, nem aquele que com quatro mil espartanos,

Lutou no desfiladeiro das Termópilas (3) e o defende,

Nem o jovem Cocles (4), dos romanos,

Que contra todo o exército etrusco contende

Para defender a ponte; e nem o Quinto Fabio (5)

Igualar-se-á a este luso na guerra, forte e sábio.





1) Maratônios: os campos de Maratona, na Atica, célebres pela batalha travada entre atenienses e persas em 490 AC.

2) Dário: rei da Pérsia, que foi vencido por Milcíades na batalha de Maratona.

3) Termópilas: desfiladeiro da Tessália, onde Leônidas com trezentos espartanos tentou deter o grande exército de Xerxes. Camões aumenta arbitrariamente o número para quatro mil.

4) Cocles: guerreiro romano que defendeu sozinho uma ponte no rio Tibre, atacada pelos etruscos.

5) Quinto Fabio: cônsul romano que, com hábeis manobras, conseguiu enfraquecer o exército de Aníbal.



Mas neste passo a Ninfa, o som canoro

Abaxando, fez ronco e entristecido,

Cantando em baxa voz, envolta em choro,

O grande esforço mal agardecido.

- «Ó Belisário (disse) que no coro

Das Musas serás sempre engrandecido,

Se em ti viste abatido o bravo Marte,

Aqui tens com quem podes consolar-te!



22o Mas nisto, a ninfa, o som canoro

Foi baixando, ficando rouco e entristecido,

E cantando com voz baixa, envolta em choro,

Lamentou que o esforço não fosse reconhecido.

Ó Belizário (1), disse, que no coro

Das musas será sempre engrandecido,

Se em ti fraquejou o bravo Marte,

A ingratidão com este luso, talvez possa consolar-te.





1- Belizário: general de Justiniano, no tempo do império bizantino. Segundo a tradição ficou cego no fim da vida e embora tenha prestado grandes serviços ao império, ficou reduzido à miséria. Camões retoma as criticas feita ao povo e aos governantes por não reconhecerem os heróis lusitanos.



«Aqui tens companheiro, assi nos feitos

Como no galardão injusto e duro;

Em ti e nele veremos altos peitos

A baxo estado vir, humilde e escuro.

Morrer nos hospitais, em pobres leitos,

Os que ao Rei e à Lei servem de muro!

Isto fazem os Reis cuja vontade

Manda mais que a justiça e que a verdade.



23o Aqui tens amigas sinceras, tanto nos altos feitos,

Quanto no cruel esquecimento, injusto e duro;

Em ti e nele sempre veremos nobres peitos,

Mesmo numa humilde condição e estado obscuro

Vindo morrer em tristes hospitais de pobres leitos;

Ingratidão com quem ao Rei e à Religião servem de muro!

Mas é o que fazem os Reis que acham que a sua vontade

Prepotente está acima da justiça e da verdade.



«Isto fazem os Reis quando embebidos

Nüa aparência branda que os contenta

Dão os prémios, de Aiace merecidos,

À língua vã de Ulisses, fraudulenta.

Mas vingo-me: que os bens mal repartidos

Por quem só doces sombras apresenta,

Se não os dão a sábios cavaleiros,

Dão-os logo a avarentos lisonjeiros.



24o E fazem isso quando estão iludidos

Por uma aparência falsa, mas que os contenta:

E dão os prêmios, que por Aiace (1) são merecidos,

Para a eloqüência de Ulisses, inútil e fraudulenta.

Mas eu lhes vingo: pois os louvores são indevidos

Quando vão para quem só uma simulação representa;

Eu os canto, se os Reis não glorificam os nobres cavaleiros,

E apenas o fazem para os reles lisonjeiros.



1- Aiace: ou Ájax, herói grego durante a guerra de Tróia. Embora fosse considerado mais valoroso que Ulisses, este obteve mais fama graças à sua eloqüência.



«Mas tu, de quem ficou tão mal pagado

Um tal vassalo, ó Rei, só nisto inico,

Se não és pera dar-lhe honroso estado,

É ele pera dar-te um Reino rico.

Enquanto for o mundo rodeado

Dos Apolíneos raios, eu te fico

Que ele seja entre a gente ilustre e claro,

E tu nisto culpado por avaro.



25o Mas tu, cujo vassalo ficou tão mal recompensado,

Ó rei, apenas neste assunto fostes iníquo;

Ele merecia ter sido elevado a um alto estado,

Pois foi ele quem te deu um reino rico.

Mas enquanto o Mundo for rodeado

Pelos raios de Apolo (1) eu o glorifico

No grupo de heróis, ilustre e preclaro,

E neste assunto, a ti, de mesquinho e avaro.



1- Apolo: o deus do sol.



«Mas eis outro (cantava) intitulado

Vem com nome real e traz consigo

O filho, que no mar será ilustrado,

Tanto como qualquer Romano antigo.

Ambos darão com braço forte, armado,

A Quíloa fértil, áspero castigo,

Fazendo nela Rei leal e humano,

Deitado fora o pérfido tirano.



26o Mas eis outro (1) (a musa voltava a cantar) intitulado

De Vice-Rei que chega e traz consigo

O seu nobre filho, que no mar será tão celebrado,

Quanto qualquer herói romano antigo.

Pai e filho darão, com braço forte e bem armado,

Na fértil Quíloa (2), um duro castigo,

Colocando nela, um rei leal e humano,

Após terem expulsado o cruel tirano.



1- Referência a Dom Francisco de Almeida, 1o Vice-Rei das Índias e a seu filho Dom Lourenço.

2- Quíloa: ilha da costa oriental da África.



«Também farão Mombaça, que se arreia

De casas sumptuosas e edifícios,

Co ferro e fogo seu queimada e feia,

Em pago dos passados malefícios.

Despois, na costa da Índia, andando cheia

De lenhos inimigos e artifícios

Contra os Lusos, com velas e com remos

O mancebo Lourenço fará extremos.



27o Em Mombaça (1) que se vangloria da poderosa

Fortaleza de suas instalações e de seus edifícios,

Com ferro e fogo farão uma destruição horrorosa,

Como castigo pelos passados malefícios.

Depois, na costa da Índia, que estará cheia

De barcos inimigos e de bélicos artifícios

Contra os lusos, com velas e com remos,

O valor do jovem Lourenço chegará aos extremos.



1) Mombaça: cidade na costa oriental da África.



«Das grandes naus do Samorim potente,

Que encherão todo o mar, co a férrea pela,

Que sai com trovão do cobre ardente,

Fará pedaços leme, masto, vela.

Despois, lançando arpéus ousadamente

Na capitaina imiga, dentro nela

Saltando o fará só com lança e espada

De quatrocentos Mouros despejada.



28o Dos grandes navios do Samorim potente,

Que encherão o Mar, armados com férrea péla (1),

Que explodem como trovão de cobre ardente,

O jovem luso fará sucata de mastros, leme e vela.

Depois, com ganchos de abordagem, corajosamente,

Na nau capitânia inimiga saltará, e dentro dela,

Usando apenas a sua lança e a sua espada

Expulsará quatrocentos mouros da nau desejada.



1- Péla: bolas: nesse contexto, bolas de ferro.



«Mas de Deus a escondida providência

(Que ela só sabe o bem de que se serve)

O porá onde esforço nem prudência

Poderá haver que a vida lhe reserve.

Em Chaúl, onde em sangue e resistência

O mar todo com fogo e ferro ferve,

Lhe farão que com vida se não saia

As armadas de Egipto e de Cambaia.





29o Mas os desígnios de Deus, a divina Providência,

(Que apenas Ela sabe os caminhos de que se serve),

O colocará onde nem a coragem ou a prudência,

Por maiores que sejam, a vida lhe preserve.

Em Chaul (1), onde em sangue e em resistência

Todo o mar, com o ferro e com o fogo ferve,

Os inimigos não deixarão que com vida ele saia,

Atingido pelas bombas do Egito e de Cambaia (2).



1) Chaul: cidade situada ao sul de Bombaim, na costa ocidental da Índia.

2) Cambaia: reino e cidade da Índia.



«Ali o poder de muitos inimigos

(Que o grande esforço só com força rende),

Os ventos que faltaram, e os perigos

Do mar, que sobejaram, tudo o ofende.

Aqui ressurjam todos os Antigos,

A ver o nobre ardor que aqui se aprende:

Outro Ceva verão, que, espedaçado,

Não sabe ser rendido nem domado.



30o Ali, o poder de inúmeros inimigos,

(Pois só com força o luso perde, mas não se rende),

A falta dos ventos favoráveis e os perigos

Do mar, conspirarão contra ele, e tudo lhe ofende.

Mas, que ali renasçam os heróis antigos,

Para verem o grande valor que ali se aprende:

Verão outro Ceva (1), que mesmo mutilado,

Não admite ser rendido ou dominado.



1- Ceva: centurião do exercito romano, celebre pelo heroísmo na batalha contra Pompeu.



«Com toda üa coxa fora, que em pedaços

Lhe leva um cego tiro que passara,

Se serve inda dos animosos braços

E do grão coração que lhe ficara.

Até que outro pelouro quebra os laços

Com que co alma o corpo se liara:

Ela, solta, voou da prisão fora

Onde súbito se acha vencedora.



31o Sem toda uma coxa, que em pedaços

Foi arrancada por um tiro que passara,

Ele, ainda, se serve dos poderosos braços

E do valente coração que lhe restara.

Até que outro tiro quebra os laços

Com que a sua alma, ao corpo se juntara.

A alma liberta voará para fora

Da prisão e verá que é a vencedora.



«Vai-te, alma, em paz, da guerra turbulenta,

Na qual tu mereceste paz serena!

Que o corpo, que em pedaços se apresenta,

Quem o gerou, vingança já lhe ordena:

Que eu ouço retumbar a grão tormenta,

Que vem já dar a dura e eterna pena,

De esperas, basiliscos e trabucos,

A Cambaicos cruéis e Mamelucos.



32o Vai-te alma em paz, da guerra turbulenta,

Na qual tu mereceste a paz serena;

Pois o teu corpo, que em pedaços se apresenta,

Será vingado por teu pai, que isso já ordena:

Já ouço retumbar a grande tormenta,

Que virá para dar a dura e eterna pena,

Com ciladas, basiliscos (1) e trabucos,

Aos cruéis Cambaios e aos Mamelucos (2).



1- Basiliscos: antigos canhões de bronze, que atiravam pesadas bolas de ferro.

2- Mamelucos: nesta estrófe, o mesmo que egípcios. Originalmente eram soldados de uma milícia turco-egipicia. Inicialmente formada por escravos chegou a dominar o Egito.



«Eis vem o pai, com ânimo estupendo,

Trazendo fúria e mágoa por antolhos,

Com que o paterno amor lhe está movendo

Fogo no coração, água nos olhos.

A nobre ira lhe vinha prometendo

Que o sangue fará dar pelos giolhos

Nas inimigas naus; senti-lo-á o Nilo,

Podê-lo-á o Indo ver e o Gange ouvi-lo.



33o Eis que logo vem o pai, com vigor estupendo,

Trazendo fúria e mágoa nos antolhos (1),

Pois é o amor paterno que lhe está movendo;

Assim, com fogo no coração e lágrimas nos olhos.

Com nobre e justa ira vinha prometendo

Banhar de sangue, até a altura dos joelhos,

As naus inimigas; senti-lo-á o rio Nilo,

O rio Indo poderá vê-lo e o rio Ganges poderá ouvi-lo.



1- Antolhos: protetor para os olhos.



«Qual o touro cioso, que se ensaia

Pera a crua peleja, os cornos tenta

No tronco dum carvalho ou alta faia

E, o ar ferindo, as forças experimenta:

Tal, antes que no seio de Cambaia

Entre Francisco irado, na opulenta

Cidade de Dabul a espada afia,

Abaxando-lhe a túmida ousadia.



34o Igual ao touro furioso, que ensaia

Para a dura luta, e os chifres experimenta

No tronco dum carvalho ou numa alta faia (1),

E ferindo o ar, a grande força ostenta:

Assim, antes que no território de Cambaia

Adentre o furioso Francisco (2), na opulenta

Cidade de Dabul (3) a espada ele afia,

Abaixando-lhe a insolente ousadia.



1- Faia: árvore européia, alta e ramosa.

2- Francisco: Francisco de Almeida, Vice-Rei da Índia.

3- Dabul: povoação ao sul de Chaul, na Cambaia.



«E logo, entrando fero na enseada

De Dio, ilustre em cercos e batalhas,

Fará espalhar a fraca e grande armada

De Calecu, que remos tem por malhas.

A de Melique Iaz, acautelada,

Cos pelouros que tu, Vulcano, espalhas,

Fará ir ver o frio e fundo assento,

Secreto leito do húmido elemento.



35o Logo depois, entrando feroz na enseada

De Dio (1), famosa pelos cercos e batalhas,

Fará com que se espalhe a grande Armada

De Calecu, de tantos remos como se fossem malhas.

A do Melique Iaz (2), bombardeada,

Com os artefatos que tu, Vulcano, espalhas,

Ele mandará para o frio e fundo assento,

O secreto leito no liquido Elemento (3).



1- Dio: cidade na Índia, situada no golfo de Omã, na península de Guzarate.

Era uma fortaleza portuguesa e sofreu dois cercos em 1.538 e em 1.547.

2- Melique Iaz: governador ou príncipe Iaz. Melique é titulo nobiliárquico na

Índia.

3-Liquido Elemento: a água, o fundo do Mar.



«Mas a de Mir Hocém, que, abalroando,

A fúria esperará dos vingadores,

Verá braços e pernas ir nadando

Sem corpos, pelo mar, de seus senhores.

Raios de fogo irão representando,

No cego ardor, os bravos domadores.

Quanto ali sentirão olhos e ouvidos

É fumo, ferro, flamas e alaridos.



36o À esquadra de Mir Hócem (1) irá abalroando,

Despejando-lhe a fúria dos lusitanos vingadores;

Ver-se-á braços e pernas irem boiando

No mar, sem os corpos dos seus senhores.

Raios de fogo irão representando,

No cego ardor, os bravos conquistadores.

E tudo que ali sentirão os olhos e os ouvidos

Serão a fumaça, as chamas e os alaridos.



1- Mir Hócem: o Emir, ou o nobre Hócem, comandante da frota do Sultão do Egito.



«Mas ah, que desta próspera vitória,

Com que despois virá ao pátrio Tejo,

Quási lhe roubará a famosa glória

Um sucesso, que triste e negro vejo!

O Cabo Tormentório, que a memória

Cos ossos guardará, não terá pejo

De tirar deste mundo aquele esprito,

Que não tiraram toda a Índia e Egipto.



37o Mas ah! Após esta grande vitória,

Decide vir ao pátrio rio Tejo,

Mas quase lhe roubará a fama e a glória

Um acontecimento triste e obscuro, como eu prevejo.

O Cabo Tormentório (1), que guardará a memória

Do grande herói, junto com seus ossos, não terá pejo (2)

De tirar deste mundo aquele grande espírito,

Que não foi derrotado pela Índia e nem pelo Egito.



1- Cabo Tormentório, depois rebatizado de Cabo da Boa Esperança, onde Dom Francisco, 1o Vice-Rei da Índia morreu em luta contra os cafres, quando voltava para Portugal.

2- Pejo: pudor.



«Ali, Cafres selvagens poderão

O que destros imigos não puderam;

E rudos paus tostados sós farão

O que arcos e pelouros não fizeram.

Ocultos os juízos de Deus são;

As gentes vãs, que não nos entenderam,

Chamam-lhe fado mau, fortuna escura,

Sendo só providência de Deus pura.



38o Ali, os selvagens cafres conseguirão,

O que os poderosos inimigos não puderam;

E apenas toscos paus queimados farão

O que os arcos, as flechas e as bombas não fizeram.

Os desígnios de Deus, ocultos são;

As pessoas tolas, que não os entenderam,

Chamam-lhes de mau destino, sorte escura,

Mas, na verdade, é apenas a Providência Pura.



«Mas oh, que luz tamanha que abrir sinto

(Dizia a Ninfa, e a voz alevantava)

Lá no mar de Melinde, em sangue tinto

Das cidades de Lamo, de Oja e Brava,

Pelo Cunha também, que nunca extinto

Será seu nome em todo o mar que lava

As ilhas do Austro, e praias que se chamam

De São Lourenço, e em todo o Sul se afamam!



39o Mas oh! Que luz tamanha se abrindo eu sinto,

(A ninfa ao dizer isso, a voz levantava),

Lá no mar de Melinde (1), glorificado com o sangue tinto,

Das cidades de Lamo (2), de Oja (3) e de Brava (4),

É o ilustre Cunha (5), de quem nunca será extinto

O renome, em todo o mar que a Asia lava.

E nas ilhas do sul e nas praias que se chamam

São Lourenço (6) e que, em todo mar, se afamam.



1) Melinde: cidade e reino na costa oriental da África.

2) Lamo: cidade na costa oriental da África, ao norte de Melinde.

3) Oja: localidade na costa oriental da África.

4) Brava: cidade africana ao norte de Melinde.

5) Cunha: Tristão da Cunha, navegador português, descobridor das Ilhas que tem o seu nome. Foi na sua armada que Afonso de Albuquerque seguiu para a Índia. A ilhas com o seu nome ficam ao sul, próxima da latitude 40, quase paralela com a África do Sul.

6) Ilhas de São Lourenço: atualmente chamada de ilha de Madagascar, junto da costa oriental da África, da qual é separada pelo canal de Moçambique.



«Esta luz é do fogo e das luzentes

Armas com que Albuquerque irá amansando

De Ormuz os Párseos, por seu mal valentes,

Que refusam o jugo honroso e brando.

Ali verão as setas estridentes

Reciprocar-se, a ponta no ar virando

Contra quem as tirou; que Deus peleja

Por quem estende a fé da Madre Igreja.



40o Esta é a luz do fogo e das reluzentes

Armas com que Albuquerque (1) irá amansando

Os persas de Ormuz (2), religiosos e valentes,

Que recusam o domínio luso, honroso e brando.

Ali verão as suas flechas estridentes

Voltar-lhes, com as pontas no ar revirando

Contra eles que as atiraram; pois Deus peleja,

Ao lado daquele que dilata a fé na Santa Igreja.



1- Albuquerque: Afonso de Albuquerque, Vice-Rei na Índia, entre 1.453 e 1.515.

2- Ormuz: ilha e cidade situada na entrada do golfo pérsico. Segundo a lenda, as flexas disparadas pelos persas, magicamente voltavam contra os próprios atiradores.



«Ali do sal os montes não defendem

De corrupção os corpos no combate,

Que mortos pela praia e mar se estendem

De Gerum, de Mazcate e Calaiate;

Até que à força só de braço aprendem

A abaxar a cerviz, onde se lhe ate

Obrigação de dar o reino inico

Das perlas de Barém tributo rico.



41o Ali, os montes de sal não defendem

Contra a putrefação, os corpos que no combate

Caíram e que pela praia e pelo mar se estendem

Desde Gerum (1), de Mazcate (2) até Calaiate (3);

Mas enfim, com a força do braço luso aprendem

Abaixar o pescoço, onde se lhe amarre e ate

A obrigação daquele sórdido reino iníquo,

Pagar com pérolas de Barém, um tributo rico.



1) Gerum: a ilha onde fica situada Ormuz.

2) Mazcate: cidade na costa da Arábia, atacada por Afonso de Albuquerque em 1.507.

3) Calaiate: cidade na costa sudoeste da Arábia.

4) Barém: arquipélago do golfo pérsico famoso pela produção de pérolas e aljôfar.



«Que gloriosas palmas tecer vejo

Com que Vitória a fronte lhe coroa,

Quando, sem sombra vã de medo ou pejo,

Toma a ilha ilustríssima de Goa!

Despois, obedecendo ao duro ensejo,

A deixa, e ocasião espera boa

Com que a torne a tomar, que esforço e arte

Vencerão a Fortuna e o próprio Marte.



42o Que gloriosas palmas eu o vejo

Tecer pelas vitórias; e a testa lhe coroa,

Quando sem sombra de medo ou de pejo,

Ele conquista a famosa ilha de Goa (1)!

Depois, em função de um duro ensejo,

Abandona-a e espera uma ocasião boa

Para retomá-la, pois o ânimo e a guerreira arte,

Vencerão a má sorte e o próprio deus Marte.



1- Goa: cidade da Índia, tomada pela primeira vez por Afonso de Albuquerque em 1.510 e depois de várias vicissitudes, tornou-se a sede da ocupação portuguesa.



«Eis já sobr’ela torna e vai rompendo

Por muros, fogo, lanças e pelouros,

Abrindo com a espada o espesso e horrendo

Esquadrão de Gentios e de Mouros.

Irão soldados ínclitos fazendo

Mais que liões famélicos e touros,

Na luz que sempre celebrada e dina

Será da Egípcia Santa Caterina.





43o Eis que logo retorna os muros vai rompendo,

Com bombas, fogo, lanças e pelouros (1);

Com a espada abre o espesso e horrendo

Esquadrão de pagãos e de mouros.

Os ilustres soldados irão fazendo

Mais que leões famintos ou ferozes touros,

Com a proteção da sempre celebrada e digna

Padroeira de Goa, a egipcia Santa Catarina (2).



1- Pelouros: bombas.

2-Santa Catarina: padroeira de Goa, na Índia. Esta cidade foi retomada por D.Afonso em 25 de novembro de 1.510, dia da padroeira.



«Nem tu menos fugir poderás deste,

Posto que rica e posto que assentada

Lá no grémio da Aurora, onde naceste,

Opulenta Malaca nomeada.

As setas venenosas que fizeste,

Os crises com que já te vejo armada,

Malaios namorados, Jaus valentes,

Todos farás ao Luso obedientes.»



44o E nem tu poderás fugir deste,

Ainda que sejas rica, poderosa e situada

Lá longe, perto da Aurora, onde nasceste,

E que de opulenta Malaca (1) é chamada.

As flechas envenenadas que fizeste,

As tensões com que já te vejo armada,

Serão inúteis, Malaios (2) e Javaneses (3) valentes,

Pois todos, aos lusos, serão obedientes.



1) Malaca: península na Índia e importante entreposto comercial no tempo da expedição de Vasco da Gama.

2) Malaios: naturais de Malaca. Camões deixa nas entrelinhas que seriam covardes.

3) Javaneses ou Jaús: naturais de Java, no arquipélago de Sonda. Para Camões, valentes guerreiros, mas isso não será o suficiente para impedir o domínio luso em toda a área.



Mais estanças cantara esta Sirena

Em louvor do ilustríssimo Albuquerque,

Mas alembrou-lhe üa ira que o condena,

Posto que a fama sua o mundo cerque.

O grande Capitão, que o fado ordena

Que com trabalhos glória eterna merque,

Mais há-de ser um brando companheiro

Pera os seus, que juiz cruel e inteiro.



45o Mais versos cantaria esta Sirena (1)

Em louvor do ilustre Albuquerque,

Quando se lembrou da fúria injusta (2) que o condena,

Ainda que a sua fama, ao Mundo todo cerque.

O grande comandante a quem o Destino ordena,

Que com grandes proezas, a glória eterna marque,

Deveria ter sido mais brando com um companheiro

E não um juiz tão severo e inteiro.



1- Sirena: sereia. Neste contexto, a ninfa cantora.

2- Albuquerque, num acesso de fúria mandou enforcar um fidalgo que mantinha relações com uma jovem refém muçulmana, que era destinada aos serviços da rainha de Portugal.



Mas em tempo que fomes e asperezas,

Doenças, frechas e trovões ardentes,

A sazão e o lugar, fazem cruezas

Nos soldados a tudo obedientes,

Parece de selváticas brutezas,

De peitos inumanos e insolentes,

Dar extremo suplício pela culpa

Que a fraca humanidade e Amor desculpa.



46o Contudo, em tempos de fome e doutras rudezas,

De doenças, flechas e bombardeios ardentes,

A ocasião e o lugar farão surgir essas malvadezas

Nos soldados, que de resto, em tudo são excelentes;

Parece que as selvagens e brutas vilezas,

Típicas de corações desumanos e prepotentes,

Afloram e acham justo o extremo suplicio por uma culpa

Que a piedade humana, em nome do amor, desculpa.



Não será a culpa abominoso incesto

Nem violento estupro em virgem pura,

Nem menos adultério desonesto,

Mas cüa escrava vil, lasciva e escura.

Se o peito, ou de cioso, ou de modesto,

Ou de usado a crueza fera e dura,

Cos seus üa ira insana não refreia,

Põe na fama alva noda negra e feia.



47o Não será a culpa abominável de um incesto,

Nem a de um violento estupro de uma virgem pura,

Nem a de um adultério desonesto;

Mas a culpa de vil sensualidade escura;

Se o coração, por ser cuidadoso ou por ser modesto,

Ou por ser habituado à crueldade feroz e dura,

Maltrata os subordinados e a fúria insana não refreia,

Colocará na límpida fama, uma mancha escura e feia.



Viu Alexandre Apeles namorado

Da sua Campaspe, e deu-lha alegremente,

Não sendo seu soldado exprimentado,

Nem vendo-se num cerco duro e urgente.

Sentiu Ciro que andava já abrasado

Araspas, de Panteia, em fogo ardente,

Que ele tomara em guarda, e prometia

Que nenhum mau desejo o venceria;



48o Alexandre (1) quando viu que Apeles (2) estava apaixonado

Por Campaspe (3), que era sua amante, cedeu-a alegremente,

Mesmo não sendo Apeles um soldado experimentado,

E sem que fosse pressionado por uma situação grave e urgente.

Também fez Ciro (4), quando viu que Araspas (5) estava abrasado

Por Pantéia (6) num imenso fogo ardente;

Pantéia, a quem jurou guardar e a quem prometia

Que nenhuma má intenção o venceria.



1- Alexandre Magno.

2- Apeles: pintor grego.

3- Campaspe: cortesã grega, amante de Alexandre Magno. O pintor Apeles se apaixonou por ela e Alexandre não se opôs a este amor.

4- Ciro: fundador do império persa, no século IV aC.

5- Araspas: soldado persa que se apaixonou por Pantéia, esposa do rei da Susiana, aprisionada pelo exercito de Ciro. O rei primeiramente o castigou, mas depois lhe deu o perdão.

6- Pantéia: mulher do rei Abradates, confiada por Ciro a Araspas.



Mas, vendo o ilustre Persa que vencido

Fora de Amor, que, enfim, não tem defensa,

Levemente o perdoa, e foi servido

Dele num caso grande, em recompensa.

Per força, de Judita foi marido

O férreo Balduíno; mas dispensa

Carlos, pai dela, posto em causas grandes,

Que viva e povoador seja de Frandes.



49o Mas, o ilustre persa vendo que Araspas fora vencido

Pelo amor, contra o qual não existe defesa,

Suavemente o perdoa e por ele foi servido

Numa grande dificuldade, com muita nobreza.

Tomada pela força, Judita (1) teve como marido

O feroz Balduíno, que apesar da vileza,

Do rei Carlos (3), seu sogro, atento em grandes coisas,

Recebeu o domínio e o governo da região de Frandes.



1) Judita: ou Judite, filha do rei da França, Carlos o Calvo, que foi raptada por Balduíno, com quem se casou.

2) Balduíno: chamado de “Braço de Ferro”, um dos nove condes de Flandres.



Mas, prosseguindo a Ninfa o longo canto,

De Soares cantava, que as bandeiras

Faria tremular e pôr espanto

Pelas roxas Arábicas ribeiras:

- «Medina abominábil teme tanto,

Quanto Meca e Gidá, co as derradeiras

Praias de Abássia; Barborá se teme

Do mal de que o empório Zeila geme.



50o A ninfa vai prosseguindo com o longo canto,

E agora sobre Soares (1), que as bandeiras

Faria tremular e causaria espanto

Nas rubras Arábicas (2) ribeiras.

A abominável Medina (3) treme tanto

Quanto Meca (4) e Gidá (5), e as derradeiras

Praias da Abássia (6); Barborá (7); também teme

Aquele terror, de cujo efeito Zilá (8) ainda geme.





1- Soares: Lopo de Soares Albergaria, terceiro governador da Índia.

2-Arábicas: as praias (ou ribeiras) do Mar Vermelho, pertencente aosárabes.

3-Medina: cidade sagrada dos árabes, onde fica o túmulo de Maomé.

4- Meca: cidade natal de Maomé.

5- Gidá: outro nome da cidade de Judá; cidade e porto no Mar Vermelho.

6- Abássia: a Abissínia, país africano.

7- Barborá: cidade na África oriental, na atual Somália.

8- Zilá ou Zeila: cidade africana situada no golfo de Aden. Na época era um famoso centro comercial, donde o “empório” citado por Camões.



«A nobre ilha também de Taprobana,

Já pelo nome antigo tão famosa

Quanto agora soberba e soberana

Pela cortiça cálida, cheirosa,

Dela dará tributo à Lusitana

Bandeira, quando, excelsa e gloriosa,

Vencendo se erguerá na torre erguida,

Em Columbo, dos próprios tão temida.



51o Também a nobre ilha da Taprobana (1),

Que pelo antigo nome já é tão famosa,

E mais agora, soberba e soberana

Pela produção da cortiça leve e cheirosa,

Da qual pagará tributo à lusitana

Bandeira, quando, excelsa e gloriosa,

Após a vitória, for hasteada na torre erguida

Em Columbo (2), tornando-a muito temida.



1- Taprobana: ilha do Ceilão. Atual Sri Lanka, ao sul da Índia.

2- Columbo: cidade e porto no Ceilão. Atual Colombo.



«Também Sequeira, as ondas Eritreias

Dividindo, abrirá novo caminho

Pera ti, grande Império, que te arreias

De seres de Candace e Sabá ninho.

Maçuá, com cisternas de água cheias

Verá, e o porto Arquico, ali vizinho;

E fará descobir remotas Ilhas,

Que dão ao mundo novas maravilhas.



52o O notável Sequeira (1), a água Eritréia (2)

Irá dividindo e abrirá um novo caminho

Para um grande império, que a nada receia,

Pois é de Candance (3) e de Sabá (4), o ninho.

Verá Maçuá (5), com a sua cisterna cheia,

E o porto Arquico (6), que dali é vizinho;

E descobrirá longínquas ilhas,

Que dão ao mundo novas maravilhas.



1- Sequeira: Diogo Lopes de Sequeira, Vice-Rei da Índia , sucessor de Lopo Soares de Albergaria.

2- Eritréia: o Mar Vermelho.

3- Candance: Rainha da Etiópia. Para alguns, um nome próprio, para outros o título do cargo.

4- Sabá: referência a rainha de Sabá, chamada Belkiss. Segundo a tradição, Belkiss teria visitado o rei Salomão em Jerusalém e dele teve um filho, o qual seria o ascendente dos reis etíopes.

5- Maçuá: cidade no litoral do Mar Vermelho, na África Oriental.

6- Arquico: porto da África Ocidental.



«Virá despois Meneses, cujo ferro

Mais na Africa, que cá, terá provado;

Castigará de Ormuz soberba o erro,

Com lhe fazer tributo dar dobrado.

Também tu, Gama, em pago do desterro

Em que estás e serás inda tornado,

Cos títulos de Conde e d’honras nobres

Virás mandar a terra que descobres.



53o Depois virá Meneses (1), cujo ferro

Será mais usado na África do que neste lado;

Ele castigará a arrogância de Ormuz, que pelo seu erro,

Será obrigada a pagar um tributo dobrado.

Também tu, nobre Gama, como recompensa pelo desterro

Em que está, para cá, novamente será enviado,

Com o titulo de Conde e com outras honras nobres,

Para governar esta terra, que agora descobres.



1- Meneses: Dom Duarte de Meneses, quinto governador da Índia. Suas bélicas ações concentraram-se mais na África que na Índia, onde desfrutou de um vice-reinado tranqüilo.



«Mas aquela fatal necessidade

De quem ninguém se exime dos humanos,

Ilustrado co a Régia dignidade,

Te tirará do mundo e seus enganos.

Outro Meneses logo, cuja idade

É maior na prudência que nos anos,

Governará; e fará o ditoso Henrique

Que perpétua memória dele fique.



54o Mas a morte, aquela fatal necessidade,

Da qual ninguém escapa entre os humanos,

Celebrado com real dignidade,

Levar-te-á deste Mundo cheio de enganos.

Logo, outro Meneses (1), de pouca idade,

Governará com prudência, apesar dos poucos anos;

E tanto fará o generoso Henrique

Que a sua memória para sempre fique.



1- Meneses: Dom Henrique de Meneses, sétimo governador da Índia.



«Não vencerá somente os Malabares,

Destruindo Panane com Coulete,

Cometendo as bombardas, que, nos ares,

Se vingam só do peito que as comete;

Mas com virtudes, certo, singulares,

Vence os imigos d’alma todos sete;

De cobiça triunfa e incontinência,

Que em tal idade é suma de excelência.



55o Ele não vencerá apenas aos Malabares,

Destruindo Panane (1) e Coulete (2),

E enfrentando as bombas, que, nos ares,

Voltam e destroem àquele que as remete (3);

Mas com virtudes corretas e singulares,

Ele vence os Pecados Capitais, que são sete;

Triunfa sobre a cobiça e sobre a incontinência,

O que, nesta idade, é de suprema excelência.



1- Panane: cidade do reino de Calecu, na costa do Malabar.

2- Coulete: idem.

3- Note-se que Camões relata novamente o episódio onde os artifícios lançados contra os lusos, milagrosamente voltam para atingir quem os lançou. Antes foram as flexas, agora as bombas.



«Mas, despois que as Estrelas o chamarem,

Sucederás, ó forte Mascarenhas;

E, se injustos o mando te tomarem,

Prometo-te que fama eterna tenhas.

Pera teus inimigos confessarem

Teu valor alto, o fado quer que venhas

A mandar, mais de palmas coroado,

Que de fortuna justa acompanhado.



56o Depois que as estrelas o chamarem,

Suceder-lhe-a o forte Mascarenhas (1);

E se alguns injustos, o poder lhe tomarem,

Prometo-te que fama eterna tu tenhas

Para os inimigos reconhecerem

O teu alto valor; o Destino quer que venhas,

Com as palmas das vitórias mais coroado,

Do que pela boa sorte sendo acompanhado.



1- Mascarenhas: Pedro Mascarenhas assumiu o Governo aos 62 anos e não teve forças para consertar os desmandos existentes que iam das péssimas condições das Fortalezas e outras edificações, à ganância ostensiva de todos que tinham alguma influência. Ademais, sofreu com as intrigas de religiosos e com o não atendimento aos seus pedidos a Portugal por mais reforços militares. O rei luso, Dom João V, era fanático religioso e priorizava a “salvação espiritual” em detrimento das realizações materiais. Em sua gestão, perderam-se várias regiões e até uma Armada, tomada pelo pirata chamado Angriá. Esse conjunto levou-o a deixar o cargo ao seu sucessor, com quem manteve acirrada disputa pelo poder, até que o perdeu definitivamente.



«No reino de Bintão, que tantos danos

Terá a Malaca muito tempo feitos,

Num só dia as injúrias de mil anos

Vingarás, co valor de ilustres peitos.

Trabalhos e perigos inumanos,

Abrolhos férreos mil, passos estreitos,

Tranqueiras, baluartes, lanças, setas:

Tudo fico que rompas e sometas.



57o No reino de Bintão (1), que tantos danos

Tem causado a Malaca (2), com vários malfeitos,

Num só dia, as injúrias de mil anos

Serão vingadas, com o valor de ilustres peitos.

Dificuldades e perigos sobre-humanos,

Mil espinhos férreos, caminhos estreitos,

Trincheiras, fortificações, lanças e setas:

Este luso vence todas as ações abjetas.



1- Bintão: ilha no Estreito de Singapura, ao sul de Malaca.

2- Malaca; península da Índia e importante entreposto comercial na época da expedição de Vasco da Gama.



«Mas na Índia, cobiça e ambição,

Que claramente põem aberto o rosto

Contra Deus e Justiça, te farão

Vitupério nenhum, mas só desgosto.

Quem faz injúria vil e sem razão,

Com forças e poder em que está posto,

Não vence; que a vitória verdadeira

É saber ter justiça nua e inteira.



58o Mas, na Índia, a cobiça e a ambição,

Claramente mostrarão o desnudado rosto

Contra Deus e contra a justiça; e se não trarão

Nenhuma derrota, causar-te-ão muito desgosto.

Pois quem faz a vil injúria, sem nenhuma razão,

Com as forças e o poder inerentes ao seu posto,

É apenas um falso vencedor; pois a vitória verdadeira

É saber praticar a justiça pura e inteira.



«Mas, contudo, não nego que Sampaio

Será, no esforço, ilustre e assinalado,

Mostrando-se no mar um fero raio,

Que de inimigos mil verá coalhado.

Em Bacanor fará cruel ensaio

No Malabar, pera que, amedrontado,

Despois a ser vencido dele venha

Cutiale, com quanta armada tenha.



59o Contudo, não nego que Sampaio (1)

Será determinado, ilustre e esforçado,

Mostrando-se no mar como um feroz raio,

O qual, de mil inimigos estará lotado.

Em Bacanor (2) fará um cruel ensaio

Nos Malabares, para que, amedrontado

E depois derrotado, em tal condição venha,

O cruel Cutiale (3), com as Armadas que tenha.



1) Sampaio: Lopo Vaz de Sampaio, governador da Índia após ter usurpado o cargo de Pêro de Mascarenhas.

2) Bacanor: cidade na costa ocidental da Índia entre Batecalá e Mangalor, no reino de Narsinga.

3) Cutiale: Comandante da Armada muçulmana que foi derrotada por Sampaio.



«E não menos de Dio a fera frota,

Que Chaúl temerá, de grande e ousada,

Fará, co a vista só, perdida e rota,

Por Heitor da Silveira e destroçada;

Por Heitor Português, de quem se nota

Que na costa Cambaica, sempre armada,

Será aos Guzarates tanto dano,

Quanto já foi aos Gregos o Troiano.



60o E não fará menos em Dio (1) e com a sua a feroz frota,

Também será muito temido em Chaul (2), já apavorada

Apenas por prever que estará perdida e rota;

E por Heitor da Silveira, de fato, será destroçada.

Pelo “Heitor Português” (3) de quem se nota

Que na costa Cambaica (4) sempre armada,

Trará aos Guzarates (5) tanto dano

Quanto os gregos fizeram ao ilustre troiano (6).



1- Dio: cidade da Índia, no golfo de Omã, península de Guzarate. Era uma das fortalezas portuguesas e sofreu dois cercos em 1538 e em 1547.

2- Chaul: cidade situada ao sul de Bombaim, na costa ocidental da Índia.

3- Heitor da Silveira: capitão português que derrotou a frota de Dio, aprisionando grande número de barcos.

4- Cambaica: o litoral de Cambaia.

5- Guzarates: naturais de Guzarate, nas costa de Cambaia.

6- Referência a Heitor, ilustre príncipe de Tróia. Camões compara o luso Heitor a ele.



«A Sampaio feroz sucederá

Cunha, que longo tempo tem o leme:

De Chale as torres altas erguerá,

Enquanto Dio ilustre dele treme;

O forte Baçaim se lhe dará,

Não sem sangue, porém, que nele geme

Melique, porque à força só de espada

A tranqueira soberba vê tomada.



61o Cunha (1), ao bravo Sampaio sucederá

E por longo tempo ficará no cargo e no leme;

Em Chalé (2), altas torres ele erguerá,

Enquanto a ilustre Dio (3), de medo treme;

Ao forte Baçaim (4) ele tomará,

Com muito sangue, porque nele geme

O Melique (5); mas só com a força da espada,

Ele fará com que a arrogante seja conquistada.



1- Cunha: Nuno da Cunha, filho de Tristão da Cunha. Governou a Índia entre 1529 a 1538. 2- Chalé: povoação a trinta quilômetros de Calecu, onde os portugueses construíram uma fortaleza.

3- Dio: cidade da Índia, no golfo de Omã, península de Guzarate. Era uma das fortalezas portuguesas.

4- Baçaim: praça forte indiana, entre Chaul e Dio, ao norte de Cambaia. Nela ficava o Melique da região, o que a tornava mais bem defendida.

5- Melique: Príncipe ou governador. Título nobiliárquico na Índia.



«Trás este vem Noronha, cujo auspício

De Dio os Rumes feros afugenta;

Dio, que o peito e bélico exercício

De António da Silveira bem sustenta.

Fará em Noronha a morte o usado ofício,

Quando um teu ramo, ó Gama, se exprimenta

No governo do Império, cujo zelo

Com medo o Roxo Mar fará amarelo.



62o Depois dele virá Noronha (1), cujo talento,

Os ferozes Rumes (2), de Dio afugenta;

Dio voltará a atacar, mas o mal intento,

Antonio da Silveira (3) suporta e agüenta.

Depois que Noronha, na morte, fizer seu passamento,

Um descendente teu, ó Gama, é que experimenta

O governo desse Império e o fará com tanto zelo

Que de tanto medo, o Mar Vermelho ficará Amarelo.



1- Noronha: Garcia de Noronha, décimo governador da Índia e terceiro Vice-Rei.

2- Rumes: maometanos da Grécia e da Turquia.

3- Antonio da Silveira: comandante português que resistiu ao cerco em Dio.



«Das mãos do teu Estêvão vem tomar

As rédeas um, que já será ilustrado

No Brasil, com vencer e castigar

O pirata Francês, ao mar usado.

Despois, Capitão-mor do Índico mar,

O muro de Damão, soberbo e armado,

Escala e primeiro entra a porta aberta,

Que fogo e frechas mil terão coberta.



63o Sucedendo ao teu Estevão (1) vem tomar

As rédeas do governo, outro (2) já afamado

No Brasil, por vencer e duramente castigar

O pirata francês, que ao mar é acostumado.

Depois, como Capitão-Mor no Índico Mar,

As muralhas de Damão (3), arrogante e bem armado,

Servem-lhe de escada para ele deixar a porta aberta,

A qual, por mil flechas e por pesado fogo era coberta.



1- Estevão: Estevão da Gama, segundo filho de Vasco e governador da Índia entre 1540 e 1542.

2-Referência a Martim Afonso de Souza, fundador de São Vicente, no Brasil.

3- Damão: cidade na costa ocidental da Índia, ocupada em 1534.



«A este o Rei Cambaico soberbíssimo

Fortaleza dará na rica Dio,

Por que contra o Mogor poderosíssimo

Lhe ajude a defender o senhorio.

Despois irá com peito esforçadíssimo

A tolher que não passe o Rei gentio

De Calecu, que assi com quantos veio

O fará retirar, de sangue cheio.



64o A Martim Afonso, o rei cambaico, soberbíssimo,

Pedirá ajuda para defender a rica cidade de Dio

Contra o Mogor (1), império poderosíssimo.

Ele o ajuda a defender o senhorio

E depois irá com o coração determinadíssimo,

Impedir que ultrapassasse Calecu, o rei gentio;

O qual, com a corte e as tropas com que veio,

Retira-se amargando o insucesso feio.



1- Mogor: o império do Grão Mongol, fundado por um descendente de Tamerlão.



«Destruirá a cidade Repelim,

Pondo o seu Rei, com muitos, em fugida;

E despois, junto ao Cabo Comorim,

üa façanha faz esclarecida:

A frota principal do Samorim,

Que destruir o mundo não duvida,

Vencerá co furor do ferro e fogo;

Em si verá Beadala o Márcio jogo.



65o Também destruirá a cidade de Repelim (1),

Pondo o Rei, e muitos outros, em disparada corrida;

E depois, junto ao Cabo Comorim (2),

Realizará outra proeza, que será muito conhecida:

À frota principal do Samorim,

De cujo imenso poder não se duvida,

Ele vencerá, com a fúria do ferro e do fogo;

E Beadala (3) também sofrerá com o bélico jogo.



1) Repelim: cidade indiana, na costa da província de Malabar.

2) Comorim: Cabo ao sul da Índia.

3) Beadala: cidade indiana, a nordeste de Tuticorim.



«Tendo assi limpa a Índia dos imigos,

Virá despois com ceptro a governá-Ia

Sem que ache resistência nem perigos,

Que todos tremem dele e nenhum fala.

Só quis provar os ásperos castigos

Baticalá, que vira já Beadala.

De sangue e corpos mortos ficou cheia

E de fogo e trovões desfeita e feia.



66o Assim, limpado a Índia de todos os inimigos,

Voltará, depois, para governá-la,

Sem encontrar resistência ou outros perigos,

Pois todos o temerão e de guerras nem se fala.

Exceto Batecalá (1) que recebeu duros castigos,

Iguais aos que já tinha experimentado Beadala,

Que de sangue e de cadáveres ficou cheia,

E por bombas e fogo viu-se destruída e feia.



1- Batecalá: cidade indiana, na costa do Malabar, destruída e saqueadapor Martim Afonso de Souza.



«Este será Martinho, que de Marte

O nome tem co as obras derivado;

Tanto em armas ilustre em toda parte,

Quanto, em conselho, sábio e bem cuidado.

Suceder-lhe-á ali Castro, que o estandarte

Português terá sempre levantado,

Conforme sucessor ao sucedido,

Que um ergue Dio, outro o defende erguido.



67o Este será Martinho (1), que do deus Marte,

Pelas suas proezas, tem o nome derivado;

Tanto por ser ilustre na guerra, em toda parte,

Como por ser sábio e equilibrado.

Castro (2) lhe sucederá e o estandarte

Português manterá sempre levantado,

Honrando o sucessor ao sucedido:

Um conquista Dio, o outro o tem bem defendido.



1- Martinho: abreviatura de Martim Afonso de Souza, que governou a Índia entre 1542 a 1545.

2- Castro: Dom João de Castro, Vice-Rei da Índia e uma das figuras mais importantes nas lutas dos portugueses na Índia.



«Persas feroces, Abassis e Rumes,

Que trazido de Roma o nome têm,

Vários de gestos, vários de costumes

(Que mil nações ao cerco feras vêm),

Farão dos Céus ao mundo vãos queixumes

Porque uns poucos a terra lhe detêm.

Em sangue Português, juram, descridos,

De banhar os bigodes retorcidos.



68o Ferozes persas, abassis (1) e rumes (2),

Cujo nome deriva de Roma, em grande número vem;

São vários os tipos e variados os costumes

(Pois várias nações o feroz cerco mantém),

E todas farão ao céu inúteis queixumes,

Pois só uns poucos lusos a terra lhes detém.

E juram que em sangue português, confiantes,

Banharão os seus bigodes arrogantes.



1- Abassis: abexins, abissínios. Naturais da Abássia.

2- Rumes: maometanos da Grécia e da Turquia. Atualmente alguns ciganos da Europa do Leste são chamados de Rumes, mas não se tem certeza de serem descendentes daqueles primeiros.



«Basiliscos medonhos e liões,

Trabucos feros, minas encobertas,

Sustenta Mascarenhas cos barões

Que tão ledos as mortes têm por certas;

Até que, nas maiores opressões,

Castro libertador, fazendo ofertas

Das vidas de seus filhos, quer que fiquem

Com fama eterna e a Deus se sacrifiquem.



69o Com basiliscos (1) medonhos como leões,

Trabucos ferozes e bombas encobertas,

Luta Mascarenhas (2) junto de seus varões,

Que resignados, encaram suas mortes como certas;

Mas eis que, quando eram maiores as pressões,

Surge Castro (3) como libertador, fazendo ofertas

Das vidas dos próprios filhos, para que fiquem

Com a fama eterna e por Deus se sacrifiquem.



1) Basiliscos: antigos canhões de bronze.

2) Mascarenhas: Capitão-Mor de Dio, no segundo cerco da cidade.

3) Castro: Dom João de Castro, Vice-Rei na Índia entre 1500 e 1548 e uma das principais figuras dos portugueses nas lutas da Índia.



«Fernando, um deles, ramo da alta pranta,

Onde o violento fogo, com ruido,

Em pedaços os muros no ar levanta,

Será ali arrebatado e ao Céu subido.

Álvaro, quando o Inverno o mundo espanta

E tem o caminho húmido impedido,

Abrindo-o, vence as ondas e os perigos,

Os ventos e despois os inimigos.



70o Fernando (1), ramo daquela nobre planta,

Onde o fogo violento, de horrível ruído,

A muralha despedaçada no ar levanta,

Sucumbirá e ao céu será erguido.

Álvaro (2), contra o Inverno que a todos espanta,

E com o caminho do mar semi-impedido,

Conseguirá vencer as ondas, os perigos,

Os ventos e depois, os inimigos.



1- Fernando: Fernando de Castro, filho de Dom João de Castro.

2- Álvaro: Álvaro de Castro, filho de Dom João de Castro, conseguiu socorrer Dio apesar da adversidade do clima, em pleno e rigoroso inverno.



«Eis vem despois o pai, que as ondas corta

Co restante da gente Lusitana,

E com força e saber, que mais importa,

Batalha dá felice e soberana.

Uns, paredes subindo, escusam porta;

Outros a abrem na fera esquadra insana.

Feitos farão tão dinos de memória

Que não caibam em verso ou larga história.



71o Logo depois vem o pai, que as ondas corta

Com o restante da leal tropa lusitana;

E com força e saber, o que mais importa,

Lança-se na dura batalha dacroniana.

Alguns sobem pelas paredes e dispensam a porta;

Outros abrem brechas na feroz esquadra profana.

Ali os lusos farão proezas tão dignas de memória,

Que não caberão em versos nem numa vasta história.



«Este, despois, em campo se apresenta,

Vencedor forte e intrépido, ao possante

Rei de Cambaia e a vista lhe amedrenta

Da fera multidão quadrupedante.

Não menos suas terras mal sustenta

O Hidalcão, do braço triunfante

Que castigando vai Dabul na costa;

Nem lhe escapou Pondá, no sertão posta.



72o A seguir, Dom João de Castro se apresenta,

Como vencedor forte e intrépido, ao possante

Rei de Cambaia e lhe amedronta

Com a sua feroz tropa galopante.

Também a sua terra mal sustenta

O Hidalcão (1), contra o luso triunfante,

Que segue castigando Dabul (2), na Costa,

E até Pondá (3), que no sertão está exposta.



1) Hidalcão: Hidal-Cão, chefe indiano que combateu os portugueses e foi vencido por Dom João.

2) Dabul: povoado ao sul de Chaul, na Cambaia.

3) Pondá: cidade e fortaleza indiana a nordeste de Goa.



«Estes e outros Barões, por várias partes,

Dinos todos de fama e maravilha,

Fazendo-se na terra bravos Martes,

Virão lograr os gostos desta Ilha,

Varrendo triunfantes estandartes

Pelas ondas que corta a aguda quilha;

E acharão estas Ninfas e estas mesas,

Que glórias e honras são de árduas empresas.»



73o Estes e tantos outros lusos, em toda parte,

São dignos de fama por terem feito essa maravilha,

Fazendo-se na Terra bravos guerreiros, como Marte,

E também virão gozar os prazeres desta nossa ilha;

Chegarão ostentando os triunfantes estandartes

Pelas ondas do mar, cortado pela aguda quilha (1);

E como vós, encontrarão as ninfas e estas mesas,

Recompensa, glórias e honras por suas árduas empresas.



1- Quilha: peça de madeira resistente, que se estende da proa à popa do navio, na parte inferior.



Assi cantava a Ninfa; e as outras todas,

Com sonoroso aplauso, vozes davam,

Com que festejam as alegres vodas

Que com tanto prazer se celebravam.

- «Por mais que da Fortuna andem as rodas

(Nüa cônsona voz todas soavam),

Não vos hão-de faltar, gente famosa,

Honra, valor e fama gloriosa.»



74o Assim cantava a ninfa; e as outras todas,

Com aplausos, as vozes também elevavam:

Festejavam aquelas alegres bodas

Que com tanto prazer celebravam.

Por mais que girem as Rodas

(Em uníssona voz cantavam),

Da Sorte, não lhes faltarão, ó gente famosa,

Muita honra, muito valor e fama gloriosa.



Despois que a corporal necessidade

Se satisfez do mantimento nobre,

E na harmonia e doce suavidade

Viram os altos feitos que descobre,

Tétis, de graça ornada e gravidade,

Pera que com mais alta glória dobre

As festas deste alegre e claro dia,

Pera o felice Gama assi dizia:



75o E depois que a corporal necessidade

Saciou-se do alimento nobre;

E depois que previram com suavidade,

As grandes proezas que lhes releva e descobre

Téthis, relatadas com graça e seriedade,

Buscam novos motivos para que a glória dobre,

E continuam as festas nesse claro e alegre dia;

E para o feliz Gama, a deusa, assim dizia:



- «Faz-te mercê, barão, a Sapiência

Suprema de, cos olhos corporais,

Veres o que não pode a vã ciência

Dos errados e míseros mortais.

Sigue-me firme e forte, com prudência,

Por este monte espesso, tu cos mais.»

Assi lhe diz e o guia por um mato

Árduo, difícil, duro a humano trato.



76o Concedeu-lhe uma graça, ó Gama, a Sapiência (1)

Suprema ao permitir que com os teus olhos corporais,

Tu vejas aquilo que não pode ser visto pela inútil ciência

Dos tolos Homens, frágeis mortais.

Siga-me, firme e forte, mas com prudência,

Por esse monte espesso, junto com os demais.

Assim lhe diz e o conduz por um mato

Cerrado, áspero e difícil ao humano contacto.



1-Suprema Sapiência: Deus.



Não andam muito que no erguido cume

Se acharam, onde um campo se esmaltava

De esmeraldas, rubis, tais que presume

A vista que divino chão pisava.

Aqui um globo vêm no ar, que o lume

Claríssimo por ele penetrava,

De modo que o seu centro está evidente,

Como a sua superfícia, claramente.



77o Não andam muito e logo no alto cume

Chegaram, onde um campo se enfeitava

Com esmeraldas e rubis, como presume

A vista, de quem o divino chão pisava.

Ali, avistam um globo no ar, no qual, o lume

Claríssimo no seu interior penetrava

De tal modo, que o seu centro era tão evidente,

Quanto à superfície e a ambos se via claramente.



Qual a matéria seja não se enxerga,

Mas enxerga-se bem que está composto

De vários orbes, que a Divina verga

Compôs, e um centro a todos só tem posto.

Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,

Nunca s’ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto

Por toda a parte tem; e em toda a parte

Começa e acaba, enfim, por divina arte,



78o De qual matéria o globo é feito não se enxerga,

Mas se vê muito bem que é composto

Pelos vários Mundos criados pela Divina Verga

E que há um centro para todos, como Deus deixou posto.

Revirando-o, ou quer se abaixe ou quer se erga,

O globo nunca se mexe e um mesmo rosto

Por todos os ângulos apresenta; e em toda parte,

Começa e acaba, pois é fabulosa a Divina Arte.



Uniforme, perfeito, em si sustido,

Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.

Vendo o Gama este globo, comovido

De espanto e de desejo ali ficou.

Diz-lhe a Deusa: - «O transunto, reduzido

Em pequeno volume, aqui te dou

Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas

Por onde vás e irás e o que desejas.



79o Uniforme, perfeito e auto-sustentado,

Igual ao arquétipo (1) que o modelou.

O Gama, vendo este globo, deslumbrado

De espanto e desejando melhor conhecer, ali ficou.

A deusa lhe diz: - é o retrato fiel e reduzido,

Que em pequeno volume aqui eu te dou,

É o universo, para que tu vejas,

Ande vais e por onde irás, e o que mais desejas.



1- Arquétipo: modelo, exemplo. No contexto, o Pensamento de Deus.



«Vês aqui a grande máquina do Mundo,

Etérea e elemental, que fabricada

Assi foi do Saber, alto e profundo,

Que é sem princípio e meta limitada.

Quem cerca em derredor este rotundo

Globo e sua superfícia tão limada,

É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,

Que a tanto o engenho humano não se estende.


Obs: as estrofes que tratam desse tema tornaram-se célebres pela sua perfeição e alguns eruditos as citam como as melhores de todos os tempos. O erudito Antonio José Saraiva diz textualmente: é um dos sucessos de Camões. “As esferas são transparentes, luminosas, veem-se todas ao mesmo tempo com igual nitidez; movem-se e o movimento...” conseguir traduzir isto por meio da “pintura que fala” é atingir um dos cumes da literatura universal.