terça-feira, 31 de março de 2015

Antigas Traições


Malha a bigorna o coxo Hefesto
enquanto remói o ciúme e o resto.

Maldito Ares (!), vocifera.
Maldita besta-fera que trouxe o gozo para Afrodite, 
amante insaciada,
qual fêmea alucinada.

Deuses! É hora da justa vingança
(nela repousa a última esperança).
Expulsemos a febre malsã, de todo amanhã.

Que se exponha à censura, a vergonha do adúlteros.
Que lhes cessem toda mesura, 
pois eis que traíram
o sonho, 
que ao ferreiro permitiram.

Que gemam cativos na rede dos mortos-vivos.
Que peçam clemência pelo estupro da inocência.
E que implorem por um gesto de nobreza,
pela impudíca paixão acesa.

Que nada mais se lhes conceda,
pois macularam o Olimpo.
Que morram como os mortais,
e que Hesíodo, para sempre,
oculte os imorais.



Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, outono de 2015

sexta-feira, 27 de março de 2015

Óperas, guia para iniciantes - AS ALEGRES COMADRES DE WINDSOR - Ensaio completo.



AutoriaNicolai (Carl Otto Ehrenfried – 1810-1849 – Alemanha)
Libreto – Hermann Mosenthal.

Personagens:

Sir John Falstaff*Desajeitado conquistador – interpretado por um Baixo.
Senhor Ford – interpretado por um Barítono.
Senhor Page – idem.
Fenton – interpretado por um Tenor.
Slender– idem.
Doutor Caius – interpretado por um Tenor.
Senhora Ford – interpretada por uma Soprano.
Senhora Page – interpretada por uma Mezzo Soprano.
Anne Page – filha do casal Page. Interpretada por uma Soprano.
Nota do Autor* – a personagem John Falstaff* voltou a aparecer na Ópera epônima, que Verdi compôs ao encerrar a sua carreira.
Época e local

Windsor, Grã Bretanha, durante o reinado de Henrique IV(1553-1610).

Prefácio

A peça teatral de Willian Shakespeare (William, 1564-1616 – Reino Unido) que embasou essa Ópera continua sendo atualíssima; pois, apesar da intriga, da maledicência, da ostentação, da lubricidade e da ganância terem sofrido alterações em seu formato graças aos recursos tecnológicos disponíveis, a alma humana ainda abriga esses indesejáveis comportamentos e, assim, expô-los, para tentar diminuir os seus efeitos, será sempre um esforço bem vindo em todas as ocasiões.
Mas, apenas por si, a crítica aos costumes, mesmo que atualizadíssima como se disse, garantiria a enorme popularidade que a comédia continua a ter em nossos dias, se nela não estivesse toda a magia e encanto que a pena do bardo britânico produziu.
E o trabalho de Nicolai não destoa dessa excelência. Composta dentro de um padrão leve, elegante e delicioso, a sua Ópera reconta a hilária história das duas senhoras que se divertem a custa das vidas de outrem e, principalmente, à custa do obeso e desajeitado galanteador de paróquia, Sir Falstaff.
Porém, como no original sheaksperiano, a obra de Otto não se resume a ser apenas cômica, exercendo simultaneamente uma crítica social, vez que expõe uma série de comportamentos que não primam pela ética.
Em termos melódicos, merece atenção especial a “Abertura”, por ser uma peça musical sobejamente conhecida e admirada; assim como outros trechos executados no terceiro e no último ato.
E além das melodias, a obra tem a seu favor o conjunto de bons argumentos literários, uma primorosa mis em scéne e o brilho que as grandes vozes sempre lhe emprestam, haja vista que é uma das preferidas pelos grandes artistas do gênero.
Por isso, permanece como uma das mais executadas em todo o mundo e sempre colhendo o carinho e o aplauso das mais variadas plateias.
Enredo
A primeira cena é ambientada em um típico pátio das cidades inglesas da época. À esquerda, vê-se a residência da família Ford e à direita a casa da família Page.
Em certo dia as senhoras Page e Ford recebem cartas individuais, assinada pelo obeso e atrapalhado Sir Falstaff, com declarações de amor do mesmo.
Embora use o honorável título de “Sir”, John Falstaff é um pobre diabo que vive cortejando e sendo rejeitado pelas mulheres do lugar, horrorizadas com sua aparência desagradabilíssima e com sua estupidez proverbial.
E com ambas não é diferente, pois a primeira mostra de sua estultice pode ser vista no fato de ele não ser capaz de escrever duas missivas diferentes, limitando-se a enviar cópias de uma mesma carta, para as duas.
Entoando um dueto cômico, as senhoras comentam as propostas do “conquistador barato” e não lhe poupam dos piores adjetivos e de satíricas gargalhadas. Porém, essas censuras não lhes satisfazem o desejo de se vingarem da petulância do infeliz e, por isso, tramam um plano para castigá-lo severamente. Uma lição de que ele não se esquecerá, dizem, antecipando o gosto da desforra.
Pouco depois entram em cena os respectivos maridos e o jovem milionário chamado Slender; o médico francês Dr. Caius e o jovem proletário de nome Fenton.
Os três são pretendentes à mão de Anne Page e assediam ao seu pai, o Senhor Page, em busca de consentimento para um futuro namoro e casamento.
Mas, como se poderia esperar, a preferência do velho recai sobre o milionário Slender, já que ele poderia melhorar a condição financeira e social de toda a família. Em consequência, ele rejeita os assédios do médico francês e, principalmente, o de Fenton através da conhecida melodia que termina com a expressão “Não e não! Três vezes não!” que acabou se tornando um dito popular.
Aliás, essa ária, é quase que uma síntese do clima burlesco que impera em toda a Ópera.
A segunda cena é ambientada no interior da casa da família Ford.
A senhora, destinatária de uma das cartas do canastrão Falstaff, cogita convidá-lo para que possa divertir-se com a sua estupidez; e para alcançar seu intento chega a ensaiar com uma cadeira de balanço um imaginário diálogo e romance com o mesmo.
Decidida, envia-lhe o convite e o boquirroto não demora em atendê-lo. Cheio de plumas e pose, ele logo aparece, sentindo-se um verdadeiro “Dom Juan”. Assim que se acomoda, entra a vizinha senhora Page e a dona da casa finge estar terrivelmente assustada dizendo ser o seu marido quem chegava e que, por isso, precisava escondê-lo no cesto de roupas de sujas.
O tolo, igualmente assustado, não se faz de rogado e entra rapidamente no recipiente, apesar do mau cheiro e da imundice que ali se deposita. Então, a senhora Ford e a senhora Page, lacram o cesto e mandam os empregados jogá-lo num rio de águas geladas.
Neste instante adentra o senhor Ford, que por ter sido alertado da presença do conquistador em sua vivenda, não disfarça a sua desconfiança e demonstra toda a sua ira. Transtornado pelo ciúme, nem percebe que aquele que procura está sendo levado no cesto de roupas sujas. Possesso, ele prossegue em sua busca irracional por toda a residência, enquanto a sua mulher finge-se de vitima inocente, angariando, assim, a simpatia dos demais, que condenam a brutalidade do esposo.
Porém, a favor do senhor Ford existe a carta enviada por Falstaff e com essa prova ele reverte as criticas e continua a sua procura. Sem ter como contra-argumentar a senhora Ford simula desmaiar e com essa farsa o ato se encerra.
§§§
O cenário do segundo ato acontece em uma taberna, no dia seguinte.
Rodeado por um Coro, Falstaff entoa uma canção com a qual brinda à vida e às aventuras amorosas. Logo depois, chega à mesa um homem estranho que se apresenta como Her Bach*. Em verdade, trata-se do senhor Ford, que se utiliza desse disfarce para saber o quê, realmente, aconteceu em sua casa no dia anterior.
E o estulto Falstaff, acreditando que foi, de fato, escondido devido à chegada do marido, não perde a oportunidade para se jactar de seus dotes de conquistador. Aliás, ele iria se vangloriar de toda forma, já que faz parte de seu caráter defeituoso recorrer sem pudores à mentira para tentar elevar-se junto aos outros. E ele relata o acontecido, exagerando de tal forma nas tintas, que o senhor Ford sente como se um punhal estivesse sendo cravado em seu peito a cada palavra que ouve.
Tomado pelo ódio, ele murmura entre dentes que a sua vingança será terrível. Que o crápula nem imagina o risco que está correndo.
Na sequência tem início a segunda cena, ambientada no jardim do casal Page.
Num canto do terreno, o milionário Slender entoa uma romântica ária, com a qual implora pela presença da amada Anne Page. No canto oposto, o também pretendente, doutor Caius, suspira pela mesma. Ambos externam seu amor pela mesma mulher, ignorando-se mutuamente. Logo depois, surge Fenton que canta um apaixonado “Romance” em louvor à musa dos três.
Anne, ao ouvir Fenton corre ao seu encontro e ambos trocam caricias e ternas palavras, enquanto zombam dos outros dois pretendentes.
Com esse clima, a segunda cena se encerra.
A terceira cena volta a ser encenada no interior da casa da família Ford, onde o senhor e a senhora discutem por conta da próxima visita que Falstaff planeja fazer. Em seguida entram em cena Slender, doutor Caius e o senhor Page. Por último, e para aumentar o clima confuso e burlesco, chega o falastrão Falstaff, disfarçado de mulher. O dono da casa não o reconhece na fantasia, mas já irritado pelo caos em sua residência, expulsa com rispidez a “velha mulher”, sem nem lhe perguntar o que desejava.
E nesse clima de completa anarquia, o segundo ato é encerrado.
§§§
O terceiro ato é iniciado com Anne Page entoando uma grande ária, onde ela expressa o seu amor por Fenton.
A segunda cena, ricamente colorida, é encenada em um belo parque, no qual está acontecendo a tradicional “Masquérade*” da cidade, na qual, quase todos os habitantes do lugar participam do folguedo, fantasiados de animais ou de Seres mitológicos.
No fundo da cena, à esquerda, avista-se um pavilhão de caça, onde um coral oculto canta, em louvor à Lua, a mesma música que já fora executada na “Abertura”.
À distância escuta-se o repicar de um sino anunciando a meia-noite. Nesse momento, Falstaff, convidado para a festa pelas senhoras Ford e Page, faz-se notar desfilando fantasiado de caçador. As mulheres não deixam de notar o ridículo de sua figura e não lhe poupam as zombarias. E para completar a pilhéria “juram-lhe” amor eterno.
O clima festivo a todos contagia e a tudo harmoniza e pacifica.
Um grande coral, vestido como “Elfos”, entoa uma suave canção e nesse momento, Anne Page, deslumbrante, adentra a cena a bordo de uma carruagem luxuosamente decorada com flores magníficas. Vestida como “Titania*”, ela recebe com um carinho o também galante Fenton, fantasiado de “Oberon*” e, em seguida, entoa a célebre ária em que suplica a proteção da verdadeira Titânia para o amor de ambos.
Pouco além, porém, o clima harmônico será interrompido, pois o senhor Page, também fantasiado como caçador, acompanhado por um grupo de iguais, avista o boquirroto Falstaff e todos lhe aplicam uma grande surra. E como se não bastasse a primeira punição, outro grupo numeroso, fantasiado de “moscas” e de “vespas”, ataca-o sem piedade. Alquebram o fracassado conquistador barato.
E a violência só arrefece quando um dos maridos percebe que o pobre diabo, em sua estupidez, foi mais uma vitima de suas mulheres, que um aproveitador de fato. Um bobalhão que se tornou o joguete de um jogo cruel das Comadres de Windsor. Com isso decidem perdoá-lo.
E este perdão acentua a felicidade que se desenrola na cena. E tão amistoso se torna o clima que até o amor de Anne pelo despojado Fenton é aceito pelos pais da moça, que lhes dão a benção para se casarem.
É o final feliz que se pode esperar de uma Ópera feita com o objetivo de passar uma mensagem otimista e positiva. Uma obra “Buffa” em seu melhor estilo de censura social e de comicidade.
 Histórico
Otto Ehrenfried Nicolai na cidade de Konisberg, Prússia, que também é famosa por ter sido o berço do grande filósofo Immanuel Kant.
Nicolai passou grande parte de sua curta vida na Itália e ali compôs quatro óperas no idioma local, o quê, certamente, contribuiu para a popularização de seu trabalho, vez que para lá se dirigiam as atenções do mundo, quando o assunto era a “Grande Arte”.
Contudo, ter feito as suas músicas no idioma nativo não diminui, em absoluto, o seu mérito. O sucesso que Nicolai obteve então se deveu exclusivamente ao seu enorme talento e à sua rara sensibilidade, como bem comprova a aceitação universal que a sua música continua a ter, nesses tempos em que a importância do idioma tornou-se relativa.
Após o sucesso na “Bota”, Nicolai regressou a Alemanha em 1842, já como um compositor consagrado. Em Berlim fundou a Sociedade Filarmônica, que foi o embrião da atual Orquestra Filarmônica de Berlim, famosa em todo o mundo.
Através da “Sociedade Filarmônica” ele deu nova vida ao cenário local da música erudita graças às várias atitudes que tomou, sendo a mais famosa delas, o célebre “Concerto Anual”, cuja renda era destinada aos próprios integrantes da Companhia. Esse Concerto ainda acontece anualmente, sob o nome que recebeu em homenagem ao seu criador: “Concertos de Nicolai”.
A Ópera que vimos aqui é a sua obra mais importante. Foi levada aos palcos berlinenses em 1849 e já na estreia obteve um estrondoso sucesso junto à crítica especializada e ao público em geral, que se extasiou com o divertissement de bailados e coros.
A sua profusa e alegre encenação da famosa comédia de Willian Shakespeare arejou o gênero, que, em regra, apresenta-se solene, pesado, melancólico.
Lamenta-se, todavia, que o compositor pouco tenha desfrutado desse êxito retumbante, já que veio a falecer apenas dois dias após a estreia. A ele, portanto, deve-se registrar o mais profundo respeito e a mais sincera admiração.
São Paulo, 24 de março de 2015.
Nota do Autor*Bach é um nome alemão que significa “regato, ribeirão”, tal como Ford, em inglês. O uso de similares teve objetivos óbvios.
Nota do Autor* - Masquérade é o nome dado a um tipo de folguedo italiano que se constitui de cenas com personagens fantasiados ou “mascarados” de figuras mitológicas ou satíricas. Os bailados são acompanhados por alegre e contagiante música polifônica.
Nota do Autor* – Titania e Oberon – a rainha e o rei das fadas e dos Elfos. Shakespeare já os citara em sua peça “Sonhos de uma noite de verão”, onde são as personagens principais.
Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, outono de 2015.

quarta-feira, 25 de março de 2015

A Biblioteca



O grafite na parede ainda tenta afirmar
a rebeldia que deveria existir.
Mas está gasto, passou o seu tempo de viver.

Olhos leem fórmulas intricadas e tratados burocráticos.
Mentes, que se querem brilhantes, julgam-nos certos.
Estarão?

Um jovem de longas barbas e curtas ideias
repete o surrado discurso ancião e ninguém o escuta.
Nem só o grafite morreu.

Amanhã colarão grau, farão Mestrado e farão Doutorado.
Também farão filhos, dividas, casas, muros e poucas pontes.
Farão tudo que tantos já fizeram.

E a roda dos iguais
continuará em sua eterna ciranda,
pois assim falou Zaratustra.


Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, outono de 2015.

sábado, 21 de março de 2015

Óperas, guia para iniciantes - TOSCA - Resenha completa.

Tosca

Para Mariela Mei, cuja jovem e lúcida coragem ainda me faz acreditar.

AutoriaPuccini (Giacomo – 1858-1924 – Itália)
Libreto – a Luiggi Illiaca e Giuseppe Giacosa

Personagens:

Floria ToscaCantora famosa – protagonista – interpretada por uma Soprano.
Mario Cavaradossi – Pintor – protagonista – interpretado por um Tenor.
Barão Scarpia – Chefe de Polícia – interpretado por um Barítono.
Cesare Angelotti – Revolucionário – interpretado por um Baixo.
Sacristão – interpretado por um Barítono.
Spoletta – Policial auxiliar do Barão Scarpia - interpretado por um Tenor.
Sciarrone – Carcereiro – interpretado por um Baixo.
Pastor – interpretado por uma voz infantil.

Época e local

Roma, Itália, 1800 DEC.

Prefácio

Classificada por muitos eruditos e por legiões de admiradores leigos como a melhor Ópera de todos os tempos, Tosca é, com efeito, um drama belo e comovente que explora com maestria toda a gama de sentimentos humanos, criando uma atmosfera que envolve o público de tal modo que não são raras as manifestações de dor, de alegria e de comoção que surgem da plateia, quebrando em várias ocasiões o aspecto solene e formal de que o espetáculo se reveste.
Nela, não há concessões nem subterfúgios. Os sentimentos, e os atos que desencadeiam, são expostos com uma crueza que choca e fascina, enquanto a estupenda trilha melódica reforça a cada momento a dramaticidade do mesmo.
Por tudo isso vale a pena conhecê-la e, se possível, assisti-la. É uma experiência marcante.

Enredo

O cenário do primeiro ato reproduz o interior da igreja de Santa Andrea Della Valle, em Roma. À direita, vê-se o simulacro de um portão de ferro que dá acesso a capela Attavanti. À esquerda, avista-se um cavalete com uma tela encoberta e alguns apetrechos de pintura.
De início a cena permanece despovoada e a orquestra toca alguns acordes vigorosos que antecipam a dramaticidade da história que, ali, irá se desenvolver.
Assim preparada, a plateia assiste a entrada em cena de um homem visivelmente maltratado, que se esgueira cautelosamente entre os desvãos numa clara indicação de que teme a alguém ou a algo.
O fugitivo é Cesare Angelotti (cônsul da “República Revolucionária Romana”, movimento que busca libertar a região de monarcas tiranos), que há pouco escapou da prisão do castelo de Santo Ângelo, onde estava preso e sofrendo torturas a mando do barão de Scarpia, esbirro da monarquia e chefe de Polícia,
Logo após a sua chegada, Cesare ouve passos e segue ligeiro para se esconder na capela epônima de sua irmã, a Marquesa de Attavanti, que lhe dera as chaves da mesma, julgando que ali ele estaria seguro até que se conseguisse removê-lo da região.
Porém, os passos que ouviu não eram de policiais em seu encalço, mas, sim, os do sacristão que trazia alguns pincéis e tintas para uso do pintor que trabalhava no local.
Contratado para pintar uma “Madonna”, Mario Cavaradossi já tinha a obra bem adiantada, servindo-se de uma bela dama loura, frequentadora da igreja, como modelo de rosto. Uma mulher que lhe causa admiração pela graça, pela elegância e pela própria beleza; mas que, ainda assim, julgava inferior aos encantos de sua amada, a célebre cantora Floria Tosca, de lindos olhos castanhos e sedosos cabelos negros. O casal de artistas vive um amor sincero e apaixonado e ele revive os doces momentos que passam juntos, entoando a romântica ária “Recondita Armonia”, como se a mesma fosse uma celebração de sua felicidade.
Entrementes o sacristão limpa os pinceis e faz suas orações, saindo logo após ter terminado as duas tarefas. E a sua partida permite que o procurado Angelotti saia de seu esconderijo na capela e dirija-se cautelosamente até Mario para lhe implorar alguma ajuda.
O primeiro contato visual entre os dois é permeado de estranheza e de desconfiança, mas após alguns momentos, Cavaradossi reconhece, sob as marcas de maus tratos, o cônsul romano e o encontro ganha ares amistosos.
O estado deplorável do amigo indica ao pintor o quão grave é a situação e o quanto é necessária a sua ajuda. De pronto ele oferece ao outro o seu almoço e enquanto aguarda que ele termine a refeição, ouve chamarem-no insistentemente à porta.
Cuidadosamente, dirige-se à mesma e pelo ferrolho vê que é a sua noiva, Tosca, quem o chama. Mas, como sabe que ela, fervorosa católica, seria incapaz de ocultar qualquer fato durante a “confissão religiosa”, demora-se para atendê-la dando tempo para que o fugitivo retorne ao seu esconderijo. Com isso, evita que uma indiscrição de Floria revele o esconderijo de Angelotti e ele seja descoberto e recapturado ou, pior, assassinado.
Assim que entra na igreja, a famosa diva da música, conhecida por seu ciúme quase doentio, inicia a sua diatribe acusando Mario de ter demorado em lhe abrir a porta por estar com outra mulher... Afinal, a Madonna que ele está pintando é loura... etc. E da simples desconfiança passa “à certeza” de que ele a está traindo. Seus ciúmes e sua ira atingem, então, o auge.
Cavaradossi ressente-se de sua desconfiança, mas nada diz sobre Angelotti, por temer que a imprudência e a raiva de Tosca comprometam a segurança do mesmo. Contudo, passada a tempestade inicial, Floria se acalma e ambos se reconciliam entoando um nostálgico dueto. Por fim, marcam um novo encontro para mais tarde, na casa de ambos nos subúrbios da cidade, e a diva se despede pedindo ao amado que pinte a Madonna com “olhos negros como os seus”.
Novamente Angelotti volta ao átrio e ao ver a pintura de Cavaradossi reconhece ser a sua irmã a dama que o pintor usa como modelo. Mario confirma a identidade da Marquesa de Attavanti e Cesare conta-lhe o quanto ela o ajudou para escapar da prisão, cedendo-lhe a capela e mais algumas roupas femininas, ocultas sob o altar, para que ele se disfarce quando ocorrer sua fuga definitiva.
Nesse momento escutam um tiro disparado por um dos canhões da prisão do castelo de Santo Ângelo. É o conhecido sinal de que a fuga de Angelotti foi descoberta e de que a caçada humana teve início.
É um instante de enorme tensão e ambos trocam um rápido e assombrado olhar e iniciam os preparativos para fugirem. Porém, antes de se separarem, Mario entrega a Angelotti as chaves de sua residência suburbana, para ele se esconda naquela vivenda até que possa partir em definitivo. Com a alma tumultuada, nem se lembrou do encontro marcado com Tosca para aquele mesmo local.
Em seguida deixam a cena, que fica vazia por alguns instantes. Na sequência, escuta-se uma grande algazarra em comemoração a uma vitória sobre as forças napoleônicas que teria ocorrido há pouco.
Os sacerdotes e os meninos do Coral da igreja também celebram, mas logo os ruídos alegres são substituídos pelo som das pesadas botas do Barão Scarpia e de seus auxiliares que adentram o Templo em busca do fugitivo. A sinistra figura de Spoletta logo se destaca pela rispidez com que interpela o assustado sacristão e pelos modos bruscos com que procura indícios da presença do condenado.
Passados poucos minutos, encontra um leque com as iniciais dos Attavanti e o Barão Scarpia nota a cesta de refeições vazia, o que sugere que Angelotti ali esteve realmente e que recebeu a ajuda de Cavaradossi, que está, inexplicavelmente, ausente. O conjunto dessas evidências é o bastante para que já não tenha dúvidas da parceria entre ambos.
Nesse momento Tosca retorna à igreja – talvez para flagrar o noivo com alguma mulher – e se assusta com a presença da polícia no local. Scarpia, conhecendo o seu proverbial ciúme, decide manipulá-la para obter as informações que deseja e logo lhe mostra o lenço feminino que Spoletta encontrou, sugerindo maquiavelicamente tratar-se da indumentária de uma eventual amante do pintor. Provavelmente a mesma que ele está retratando.
Roída pelo ciúme, ela se deixa enganar facilmente e o Barão aprofunda a sua torpe intriga, pois, além de prender o pintor e o fugitivo, também pretende ficar com Tosca para si. Contudo, é a hora em que se inicia o Oficio Religioso e a igreja se enche de fiéis. Pouco depois surge um Cardeal à frente de numerosa procissão e o desenrolar da cerimônia impede que o plano do Barão se estenda ainda mais.
Cerimônia, aliás, que ele pouco percebe, já que sua mente divaga sobre seus planos, gozando antecipadamente das delicias que haverá de conquistar. Por fim, para salvar as aparências, ajoelha-se e finge rezar devotamente.
Enquanto isso tem início uma vibrante trilha melódica que anuncia o final do primeiro ato.
§§§
O segundo ato tem como cenário o luxuoso apartamento em que vive o Barão Scarpia, nos andares superiores do Palácio Farnese (ou Palácio Farnésio, de propriedade da importante família homônima, em Roma).
Sozinho, o comandante da polícia está ceando enquanto se ouve as comemorações pela vitória sobre os franceses. Em meio a balburdia é possível distinguir alguns cantos e louvores que exaltam o triunfo da corrupta monarquia local.
Nos salões da Rainha de Nápoles a festa está sendo abrilhantada por Floria Tosca que faz mais uma de suas estupendas audições.
Ao findar a última melodia, apesar dos aplausos e dos convites para que permaneça para o banquete, ela deixa o castelo rapidamente para atender ao chamamento que antes lhe fizera o Barão.
À mesa, Scarpia não dá mostras de bom apetite e até se revela apreensivo, inseguro de que seus planos obtenham êxito. Enquanto conjectura sobre os detalhes dos mesmos, a visita inesperada de Spoletta é anunciada e o esbirro lhe dá a má noticia de que Angelotti conseguira escapar do cerco montado na casa de Cavaradossi; onde o supuseram escondido, após Floria ter citado anteriormente o encontro que teria com Mario naquele local.
A informação é o suficiente para que Scarpia externe com grosseria toda a sua frustração e o seu rancor. Spoletta, para acalmar o seu chefe, diz, então, que trouxe aprisionado o pintor, pois a desafiadora atitude do mesmo lhe deu a convicção de que ele sabe do paradeiro do fugitivo e que a revelará mediante “alguma pressão”. Em seguida traz o prisioneiro à presença do Comandante e, novamente, Mario se mostra desafiador ao repetir que desconhece o destino do amigo revolucionário.
Nesse momento Tosca chega ao apartamento e ao ver Mario, abraça-o ternamente. Nada lhe parece estranho ou perigoso, já que ela ignora a ameaça que pesa contra Cavaradossi e contra si mesma. Dessa sorte ela se mantém tranquila quando Scarpia manda que Cavaradossi seja levado para outra sala para “prestar depoimento”. E, ainda calma, responde as indagações do Barão sobre Angelotti, reafirmando desconhecer o seu destino.
A sua negativa desperta a irritação do policial que começa a lhe ofender grosseiramente. Ela, então, toma consciência do que está acontecendo e passa a temer por si e por seu amado. E do temor passa rapidamente ao desespero quando Scarpia a ameaça dizendo que será melhor que ela fale claramente, pois Mario já começou a ser torturado na sala ao lado.
Nesse ponto da apresentação sente-se o crescimento exponencial da tensão e da dramaticidade, que mais aumentam quando o Barão ordena que os maus tratos sejam intensificados e que a porta seja aberta para Tosca ver Mario, já horrivelmente machucado, sendo torturado com um círculo metálico ao redor da cabeça que é apertado continuamente, provocando-lhe dores lancinantes.
Uma cena dantesca que ela não suporta e que a faz implorar ao homem amado que revele o que os algozes desejam saber. Ela implora que ele seja desleal e que traia o amigo e a Causa em que acredita. Mas é em vão, pois o bravo Mario resiste e ainda lhe ordena que faça o mesmo.
Em resposta, Scarpia ordena qua a tortura seja aumentada até que um deles ceda; e essa rendição não demora acontecer, pois um grito e o desmaio de Mario fazem Floria capitular.
Trêmula, ela conta ao Barão que Angelotti está escondido no jardim da casa suburbana de seu noivo e ele, com um sorriso malvado e irônico, manda que Mario seja colocado em um divã e que seja reanimado.
Desperto, Mario escuta indignado, Scarpia ordenando que Spoletta vá prender Angelotti em seu jardim e não poupa Floria de sua ira, chamando-a de covarde, traidora etc. Todavia a sua diatribe é interrompida com a chegada da informação de que era falsa a noticia da vitória sobre as tropas napoleônicas; tendo, na verdade, acontecido o inverso (a célebre “Batalha de Marengo”, em 14.06.1800, na segunda campanha de Napoleão, que expulsou os austríacos do norte de Itália).
O desânimo e a tristeza que essa informação causou no Barão são visíveis, tanto quanto a alegria que se apoderou de Mario que, apesar de seu estado lastimável, não se contém e entusiasmado entoa a celebre ária “L’Alba Vindice Appar (surge a Aurora vingadora)” numa clara provocação a Scarpia que, em resposta, condena-o mentalmente a ser executado nas primeiras horas (na quarta hora) do dia seguinte.
O motivo para Scarpia não ter verbalizado essa decisão não se ligava a qualquer réstia de humanidade; mas, ao contrário, era parte de mais um de seus sórdidos planos. A sua perversidade não se limitava a ordenar a execução.
E prosseguindo em seu cruel intento, ele diz a Tosca que poderá poupar a vida de seu amado, desde que ela satisfaça a sua paixão viciosa.
É uma proposta indecorosa por si só, mas ele a torna ainda mais asquerosa, ao manter, disfarçadamente, a ordem de execução, mentido à jovem ao dizer que a cancelaria.
Ela, ante o horror da situação, entoa a famosa ária “Vissi D´arte, Vissi D´amor”, com a qual lamenta sua triste sina e seu cruel destino, enquanto se resigna em satisfazer os desejos do Barão para salvar seu querido Mario.
Sem opção, diz-lhe, enfim, que aceita o trato e ele chama Spoletta e ordena que ele proceda com o pintor da “mesma maneira” que fez com o prisioneiro anterior. O agente auxiliar compreende sua má intenção e sai para ultimar os preparativos.
Para Floria ele prossegue mentindo ao lhe dizer que terá que fazer, ao menos, uma simulação do fuzilamento para não perder a autoridade perante os demais.
Ingenuamente ela acredita e só lhe pede salvos- condutos para que ela e Mario possam deixar o país assim que o ato estiver terminado. Scarpia concorda despreocupadamente por saber da inutilidade daquele documento.
Feitos, então, esses últimos acertos é chegada a hora em que ela deverá entregar-se a ele, aumentando em cada segundo a repulsa, o ódio e o desprezo que ela sente. E é com esse estado de ânimo, que ela nota, de relance, uma brilhante adaga sobre a mesa e sorrateiramente a guarda consigo.
Então, quando ele se aproxima para beijá-la ela não hesita em aplicar-lhe um golpe fatal. O crápula estaca e cai, sem forças sequer para gritar por socorro.
Morto, tem nas mãos crispadas o ansiado salvo-conduto que ela tanto almeja e, por isso, ela vence o asco que sente pelo cadáver e retira o documento cuidadosamente, proferindo a sentença que se tornou célebre: “E diante dele, toda Roma tremia”.
Todavia, um súbito sentimento religioso a assalta e faz com que coloque um crucifixo sobre o peito do defunto e velas ao redor do corpo que acabou de matar. Só após cumprir esse ritual, imposto por sua consciência religiosa, é que ela foge.
É o fim do segundo ato. Sons lúgubres, tétricos, mórbidos, acentuam o caráter trágico dos fatos ocorridos.
§§§
O ato terceiro tem como cenário o castelo e prisão de Santo Ângelo. A baixa iluminação da cena indica que é noite. Ao fundo, vê-se a representação de um céu recortado pelas silhuetas de famosos monumentos e de edifícios da Cidade Eterna, como, por exemplo, a cúpula da basílica de São Pedro. De longe chega a melodia nostálgica que algum pastor de ovelhas entoa. À esquerda do cenário, avista-se uma pequena sala mobiliada com uma cadeira, um banco e uma mesa, sobre a qual repousa o grande livro de registros, as tintas e as penas. É um gabinete pobre, despojado e precariamente iluminado por uma lâmpada pequena. À direita, vê-se uma longa esquerda que liga aquele piso ao terraço da construção.
Após alguns momentos, a iluminação da cena vai aumentando progressivamente e se escuta as igrejas tocarem “As Matinas”, indicando a chegada do novo dia.
Nesse instante Cavaradossi é trazido pelo carcereiro Sciarrone para que sejam tomadas as últimas medidas burocráticas relativas ao processo de execução. O agente preenche os formulários e Mario lhe pede a realização de um último desejo, ao que o carcereiro responde com certo desdém: “desde que seja possível”.
Ciente da tácita cobrança de suborno, Mario oferece-lhe um rico anel, que é o último objeto de valor de que dispõe. A prenda enche os olhos de Sciarrone e melhora a sua boa vontade, permitindo que o pintor escreva uma mensagem para sua amada Tosca, na qual ele relembra os momentos felizes que ambos passaram e conta da angústia que sente por ver que tudo está prestes a terminar.
Por fim, desesperado, encerra a missiva e entoa a famosa ária “E lucevan le stelle (E brilhava as estrelas...)”, que para muitos é o ápice melódico de toda a obra.
Ao findar o canto, ele deixa que as emoções aflorem e esconde o rosto entre as mãos, como se assim estivesse protegido da dura realidade que o espera. Nesse instante sente que lhe tocam o ombro e ao se virar tem a agradabilíssima surpresa de se deparar com Floria que veio visitar-lhe, trazida por Spoletta e seus ajudantes.
Por breves momentos os guardas se retiram e o casal desfruta de certa privacidade. Ela conta-lhe, então, do sucedido com Scarpia e ele não esconde o orgulho e a gratidão que sente por ela. Sua admiração por sua fidelidade e por sua coragem. Ela também lhe conta sobre o plano de se fazer um fuzilamento falso e dos salvos-condutos que lhes permitirão deixar o lugar e serem felizes noutro canto.
Vivem, então, um momento de extremas felicidade e esperança; e quando os policiais retornam e interrompem a sua intimidade, cantam um belo dueto que fala de sua felicidade futura.
E com esse clima benfazejo a cena é encerrada, esvaziando o cenário por alguns minutos.
A cena seguinte já se passa no sitio das execuções. Crentes no estratagema, Cavaradossi e Floria Tosca esforçam-se para disfarçar a tranquilidade que sentem e fingem tristeza e desespero para que os carrascos de nada desconfiem. Depois, Mario finge-se resoluto e heroico e Floria simula estar tomada pelo máximo desespero ante a iminência de perder o seu grande amor.
Então, a salva de tiros é disparada e o pintor tomba imediatamente causando uma grata e disfarçada surpresa em Tosca por sua “magnífica representação”. A soldadesca se afasta e ela se lança ao amado pedindo-lhe que permaneça imóvel por mais algum tempo para que não exista qualquer risco de serem desmascarados.
Após esse tempo, ela diz a Mario que ele já pode se levantar, mas percebe horrorizada que ele não se move. Aturdida, ainda demora alguns segundo para perceber que a execução foi verdadeira e que o seu querido Cavaradossi está morto realmente. Desconsolada, percebe a traição e a extensão da maldade de Scarpia e tanto o maldiz, quanto a si própria por ter se deixado iludir daquela maneira.
É uma cena marcante, de forte conteúdo emocional, que geralmente arranca lágrimas dos espectadores.
Enquanto isso, Spoletta e seus ajudantes tomam conhecimento da morte de seu comandante e não tardam em associar o seu assassinato com Tosca. Ligeiros, retornam ao local do fuzilamento e ao avistarem-na dão-lhe voz de prisão, a qual, Spoletta acrescenta que ela pagará muito caro por seu ato.
- Sim! Pagarei com a vida, responde Floria.
E tão logo diz, sai em desabalada carreira e aos gritos de “Scarpia, avanti a Dio (Scarpia, frente a Deus nos encontraremos)” salta do altíssimo parapeito do castelo, esperançosa de encontrar na morte a paz e o amor que não pôde ter em vida.
Histórico
A peça teatral que embasou essa Ópera foi encenada pela primeira vez em Paris, no ano de 1887, sob a direção e produção de Victorien Sardou, tendo a grande Sarah Bernardt no papel de Floria Tosca.
Segundo vários críticos, a trama foi baseada em uma história real que teria acontecido em Roma, na época da guerra entre as forças de Napoleão Bonaparte e as monarquias da região.
Encantado com a história e sabendo do enorme sucesso que a representação vinha obtendo, Puccini – já famoso por obras como “Manon Lescaut”, “La Boheme” etc. – solicitou a Sardou a devida licença para transpô-la para o universo operístico.
Claro que Victorien não se fez de rogado e além de lhe conceder a devida licença, colocou-se à disposição do compositor para auxiliar no que fosse preciso. Afinal, ter sido escolhido por um gênio como o maestro era uma glória imensa e, também, uma garantia de retorno material, através de novos contratos, negócios etc.
O editor de Milão, Ricordi, encarregou os libretistas, Illiaca e Giacosa, da adaptação e Puccini mergulhou na criação da extraordinária linha melódica da obra; que, para muitos, é o vetor que garantiu a enorme popularidade de que a peça gozou desde a sua estreia até os dias de hoje.
Assim, três anos após debutar no teatro, eis a historia de Tosca acontecendo no mundo da Ópera, diretamente do “Teatro Constanzi”, em Roma (a cidade escolhida para a estreia por ser o local onde aconteceram os fatos originais), no ano de 1900.
Mais de um século de pleno êxito, já dura a sua existência. Tempo em que foi encenada inúmeras vezes pelas cantoras e cantores mais famosos e competentes do gênero; e sempre com os mais nobres e espetaculares figurinos, cenários e efeitos especiais.
Sua firme argumentação em favor de valores que são caros ao homem, como a luta contra as tiranias políticas; a lealdade aos amores, aos amigos e as causas; a busca pela felicidade etc. calou fundo nas plateias de todas as épocas e ainda contribui para manter a atualidade de sua proposta.
Outro aspecto que contribui para essa atualidade é a própria negatividade de algumas personagens, como Scarpia, Spoletta e Sciarrone, cujas infâmias, lubricidades, prepotências, mesquinharias e venalidades, também podem ser facilmente encontradas na maioria dos políticos, governantes e membros da elite de nossos dias.
São valores e degenerações que ultrapassam os modismos passageiros e que, justamente por isso, poder ser classificados como inerentes a alguns Seres humanos.
Resta-nos, contudo, a esperança de que sempre surjam novos artistas como Giacomo Puccini para denunciá-los, tornando as suas ações deletérias mais difíceis de serem cometidas.

São Paulo, 18 de março de 2015.

Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, outono de 2015.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Tempos


Talvez seja tempo de seguir as utopias
e deixar-se ficar no Passado,
qual extinta estrela de brilho tênue,
que apenas raras lentes enxergam.
Talvez seja o tempo
de deixar o trem do Presente,
pois o desejo único de agora
pelo granito da matéria de falso brilho
já não condiz com quem viveu
a época de pensar e de sentir.
Talvez, seja o tempo de só olhar.
De recolher papéis, penas e tintas
e guardar as poesias derradeiras.
Já não cabem no mundo.



Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, verão de 2015.


segunda-feira, 16 de março de 2015

Óperas, guia para iniciantes A FLAUTA MÁGICA Enredo e Histórico, final.


Enredo
O primeiro ato tem como cenário as montanhas próximas de um Templo à deusa Isis. Ali, Tamino está sendo perseguido por uma serpente até que, esgotado, perde os sentidos e cai.
Surgem, então, três jovens Aias da temível “Rainha da Noite” e, pouco depois, um jovem vestido apenas com plumas e flores, a quem se chama de Papageno e de quem se sabe que é um caçador de pássaros.
Mais alguns momentos passam e o príncipe Tamino recobra-se do desmaio e Papageno tenta fazê-lo acreditar que foi ele quem eliminou a serpente e o salvou, esperando, claro, receber alguma gratificação.
Porém, diante daquela mentira as Aias se enfurecem e saem do esconderijo para onde haviam corrido e prendem a boca do falastrão com um cadeado para impedir que ele continue com sua indevida jactância. Em seguida, mostram a Tamino o retrato de Pamina, a formosa filha da “Rainha da Noite”, e contam-lhe que a mesma está correndo um grande perigo por ter sido sequestrada por um “espírito do mal”.
A beleza da jovem e o ímpeto natural de seu nobre caráter fazem com que Tamino logo se predisponha a ir salvá-la e as Aias lhe dão uma “Flauta Mágica” para servir de guia e de proteção. E também ordenam que Papageno o acompanhe como escudeiro e que o auxilie na dura empreitada, dando-lhe um “Sino Mágico” para ser usado como arma.
Enquanto isso, na segunda cena desse primeiro ato, a bela Pamina é mostrada em seu cativeiro, no castelo pertencente ao Grão Sacerdote Sarastro, vigiada pelo anão mouro de nome Monostatos e por três escravos.
Entrementes a dupla de heróis chega ao castelo e se divide para procurar a princesa. Papageno consegue adentrar ao recinto e toma um grande susto ao avistar Monostatos, o qual, também se assusta e foge em desabalada carreira, acompanhado pelos escravos.
Após se refazer do impacto, o jovem escudeiro conta a Pamina que um nobre príncipe está vindo em seu socorro e que logo a libertará. Felizes, ambos cantam, então, o alegre dueto que encerra a cena.
A terceira cena desse primeiro ato é representada num cenário que reproduz os frondosos “Bosques Sagrados” que circundam o castelo e que escondem os templos da Razão, da Natureza e o da Sabedoria.
Ignorando que o seu escudeiro já havia encontrado a princesa, Tamino continua a procurá-la. Aproximando-se do Templo da Sabedoria é interpelado por um velho sacerdote que logo se põe a falar sobre as grandes virtudes de Sarastro.
Porém, Tamino já havia sido advertido pela “Rainha da Noite”, através das Aias, de que isso aconteceria e que eram afirmativas falsas, não dá atenção ao que o religioso fala e o abandona com desdém.
Prosseguindo em sua procura, num certo ponto ele avista Papageno e Pamina e célere dirige-se ao encontro dos mesmos. Após saber como ambos conseguiram escapar do cativeiro, dão vazão a alegria pelo reencontro, mas a comemoração logo é interrompida em razão da rápida aproximação de Monostatos e seus capangas que veem furiosos em seus encalços.
O trio foge com a maior rapidez possível, mas isso ainda não é suficiente e logo os perseguidores os alcançam e, então, Papageno vibra o seu “Sino Mágico” e os captores são obrigados a dançar contínua e freneticamente.
Essa é uma cena que costuma arrancar alguns sorrisos da plateia, característica de toda Ópera Buffa, mas em pouco tempo aquele castigo hilário é interrompido, pois eis que chega o próprio Sarastro.
O Grão Sacerdote utiliza todo o seu poder de convencimento para assegurar que o sequestro de Pamina não é uma maldade; mas, a única maneira de libertá-la das influências negativas da “Rainha da Noite”, a verdadeira malvada.
Na sequência, ordena que o anão Monostatos reconduza a princesa ao local onde ela estava e que a trate da melhor maneira possível. Volta-se, em seguida, para Tamino e Papageno, que a essa altura já sucumbiram aos seus encantos e estão completamente cativados por sua figura, e os convida a serem membros do culto a deusa Isis e ao deus Osíris. Ambos aceitam com entusiasmo, apesar de saberem que deverão ser submetidos a duras provas, a testes rigorosos e a cerimônias fatigantes.
E com essa rendição, termina o primeiro ato.

§§§
O segundo e último ato da Ópera é dividido em nove cenas, sendo que a primeira delas tem como cenário uma cerimônia religiosa onde os sacerdotes questionam Sarastro a respeito das qualidades de Tamino. O Grão Sacerdote assegura-lhes que são as melhores.
No início da segunda cena as provas e os testes são iniciados. Os religiosos perguntam à dupla sobre os seus sonhos, ideais e aspirações e de Tamino obtém a resposta de que o seu maior desejo é conquistar o amor de Pamina; enquanto que o de Papageno resume-se em beber, comer e dormir. É outro momento hilário da peça, que quebra a tensão da plateia.
Em seguida é ordenado a ambos observar o mais rigoroso silêncio, abstendo-se de emitir qualquer ruído, não importando o que acontecer, principalmente em função dos atos praticados pelas feiticeiras e das provocações que forem feitas por emissárias da “Rainha da Noite”. Tamino é bem sucedido nessa primeira prova, mas Papageno não consegue manter-se quieto, como se verá adiante.
Na terceira cena, vê-se Pamina sendo assediada pelo repulsivo Monostatos, que impertinentemente declara-lhe a sua paixão. Horrorizada ela tenta se defender, mas apenas com a chegada mágica de sua mãe, a “Rainha da Noite” que entoa a célebre “Ária da Vingança”, é que o anão recua.
Da genitora, Pamina recebe o punhal que deverá usar para matar Sarastro, mas sequer tem tempo de escondê-lo, pois o libidinoso Monostatos volta a assediá-la. A resistência da jovem o exaspera e ele descobre o punhal e com ele se põe a ameaçar-lhe, só não concluindo seu terrível intento graças a súbita chegada de Sarastro que, então, o pune rigorosamente.
A quarta cena retorna aos testes e mostra que após muita insistência uma mulher idosa consegue fazer Papageno falar. Como castigo, ele recebe a pena de ter que se unir a ela. Enquanto isso, Tamino resiste bravamente e nem mesmo a Pamina diz uma palavra. Ela, ignorando a prova a que ele está submetido, chora entristecida pelo silêncio dele, julgando que o mesmo é a indicação de seu desamor por ela.
A quinta cena traz o anuncio da prova final, na qual Papageno tem uma surpresa, pois ao se conformar em receber a mulher idosa como companheira, a mesma é transformada em uma linda e jovem donzela, a quem é dado o nome de Papagena. Contudo, o castigo ainda é mantido já que um sacerdote impede qualquer aproximação entre ambos.
Na sexta cena Pamina contínua a sofrer o suposto desamor de Tamino e cogita em cometer o suicídio, mas é salva por três gênios, que lhe contam da prova a que ele está sendo submetido.
Recorte
Observe o leitor que novamente os compositores fazem menção a uma trinca de elementos. Antes, as três Aias, depois os três escravos e, agora, esses três gênios. Essa repetição do número “três” foi, certamente, mais um reforço na opinião daqueles que vem na Ópera uma série de elementos rituais, esotéricos.

A sétima cena, já com o coração pacificado, Pamina se dispõe a acompanhar o amado Tamino nas provas do fogo e da água e graças aos poderes da “Flauta Mágica” ambos são bem sucedidos.
A oitava cena volta a focalizar Papageno que está triste com a solidão a que foi condenado. E sua melancolia cresce ao ponto de ele decidir-se pelo suicídio, mas, novamente (veja recorte acima) três gênios surgem e o aconselham a utilizar o “Sino Mágico” que ao ser vibrado faz aparecer uma alcachofra gigante da qual emerge a ansiada Papagena, livre de qualquer impedimento.
Na nona e última cena a “Rainha da Noite” surge inconformada com o rumo que os acontecimentos tomaram e pronta para dar combate definitivo ao Grão Sacerdote Sarastro. Junto dela, além de outras forças do mal, aparece o anão Monostatos que se aliou com a promessa de se casar com Pamina. Contudo, uma violenta tempestade chega de súbito e dispersa as suas hordas e quando o Sol ressurge, avista-se a comemoração de Sarastro e dos sacerdotes pela vitória.
Em destaque, Tamino e Pamina; e Papageno e Papagena celebram a vitória do amor.

Histórico.
Como se sabe, o talento de Mozart foi precoce, sendo que desde a primeira infância ele já produzia as suas obras-primas.
Alguns, mais místicos, acreditam que essa precocidade já seria um sinal da brevidade de sua existência; que, com efeito, foi curtíssima, haja vista que seu passamento aconteceu quando ele tinha apenas trinta e cinco anos de idade.
Porém, enquanto o mundo teve o privilégio de sua presença, ele compôs mais de seiscentas obras, das quais, a maioria é classificada como verdadeiras “joias raras” de valor inestimável.
Mais especificamente sobre a “Flauta Mágica”, sabe-se que ele gastou apenas seis meses (de março a setembro) do ano de 1791 para realizá-la, baseando-se exclusivamente no Libreto de Emmanuel Schikanedder, cuja erudição, talento e sensibilidade eram objetos da melhor consideração em sua época.
Por último, esclarecemos que neste nosso trabalho, além da presente, focalizaremos as “Bodas de Fígaro” e o “Rapto do Serralho” por acreditarmos que são as que mais se adéquam ao espírito da obra, sem, claro, que tal escolha implique em juízo de valor negativo sobre a genialidade das demais.



Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, verão de 2015.