quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Leve-me

Leve-me consigo
em busca da paz
que persigo.

Ensina-me tua
serenidade.
Teu alheamento*,
como disse Drumonnd.
Que meu pensamento
seja limpo, seja bom;
e que minha certeza
sobreviva a toda
correnteza.

Que eu, como tu,
mantenha ex amores
no peito;
e que de algum jeito
lhes conviva,
junto com amor
que passa no
momento.
E que tal se faça,
sem a maldade
das tolas afirmações.

Que eu, como tu,
acredite na vida
e na luta sem trincheira,
pois se o Mundo
é só barreira
que se leve a paz
a toda fronteira.

Que se tenha
a quase ingênua
bravata de todo
Sancho Pança,
ao se ater
a um só fio de
Esperança.

Que eu me liberte,
assim como tu,
de todo ciúme
e de todo queixume,
por saber que é na
resignação
que a vida se resume.

Que eu, assim como tu,
erga-me presto
das desilusões,
pois se todas passaram
e outras passarão,
só me resta
viver
até outra vida
acontecer.

* Da poética de Carlos Drumonnde de Andrade.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Belos Dias

Ficaram belos
os dias,
porque tu os habita.

Belos como o
amor que grita,
na paixão que
os corpos agita.

Belos dias
nos eternos festins
que a vida se tornou,
logo após a porta
em
que tu entrou.

Belos dias
pelo intransitivo
conjugar,
de Cristina
verbo amar.

                  

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Também "éramos seis*"

Talvez se fosse hoje, alguém pudesse diagnosticar seu mal e nomeá-lo de “compulsão por Odisseu e por casamentos fracassados e pelas mulheres traídas”. Ou, abreviadamente, COMT.

É difícil dizer se a reboque dessa identificação viria algum remédio, ou alguma terapia experimental ou não, que lhe curasse. Mas é certo dizer que haveria algum tratamento que alargariam sua satisfação por ter mais “uma doença” dentre todas as outras que efetivamente tinha e que a tornavam mártir e heroína às vistas de todos que tiveram a sorte de não lhe conviver.

Mártir e heroína, duas facetas que lhe proporcionavam o que sempre quis: a fama, a atenção, o centro da ribalta. Casada com Odisseu e traída por Odisseu, era a estrela que brilhava entre seus incontáveis irmãos, irmãs, sobrinhas (os), cunhados (as), vizinhos e conhecidos (as).

E, como já se disse, seus males físicos eram reais e graves, mas não eram tão grandes quanto a sua inteligência e o seu gosto de usá-los para manipular todos ao seu redor. Maldosa inteligência. Maquiavélica, no mau sentido, inteligência que sempre usou para conseguir seu único objetivo de vida e para conseguir o acesso a ele: ser o centro de um Mundo provinciano, preconceituoso, mesquinho e degenerado como a própria.

Inteligência a serviço dos homicídios que praticou. Homicídios, diga-se, indiretos e não físicos, contra todos que tiveram a infelicidade de nascer e/ou viver sob sua influência. A primeira cria herdou a obsessão por comida, tanto a de mesa quanto a de cama. Nascido nos pós guerra era o cowboy que o “Irmão do Norte” impôs como modelo de macho. Dela, aliás, herdou além dos apetites, o fato de ser traído pela sua “esposinha querida” que no fim da vida, trocou-o por todos que conseguiu. Morreu antes de sua Criadora. Alcoólatra e abandonado por todos. Tanto que seu caixão teve que contar com a ajuda de homens do velório vizinho para ser colocado no Rabecão. As lágrimas que Mártir lhe dispensou, logo foram trocadas, na viagem de volta, pelas gargalhadas que deu acerca de uma observação de um dos netos sobre a falta de dentes de um frentista de um Posto de Gasolina.

A segunda cria que gerou foi a “Princesinha da Cidade”, a qual, também no Pós-Guerra foi a “Sala de Visitas do País” graças ao seu Cassino, sua beleza natural e sua vocação Cosmopolita. Época de Ouro, de quem pretendia imitar o Rio de Janeiro das décadas de 1940 e 1950. E por ser a “Princesinha, acostumou-se na fantasia” e gerou quatro filhos que foram criados por Odisseu e pela Mártir Dolorosa (que mais dolorosa ficou, por ter que criar os quatros netos, oh coitada, pobre mulher!...). Sobre a “Princesa” pode-se dizer que primeiro foi sustentada pelo pai e depois pelos filhos, tão logo ele puderam trabalhar. Pouca coisa, mas ao seu favor diga-se que foi mais pranteada pelos rebentos que o irmão mais velho.

A terceira cria, foi de longe a preferida da Mártir; e segundo a Princesinha não era filho de Odisseu, mas de um amante ao qual ela não resistira por ser ao clone de seu pai: um macho italiano. Tudo muito mesquinho. Tudo muito sórdido. E o Temporão cresceu no espaço que os sobrinhos lhe tomavam, na miséria que as amantes de Odisseu ocasionavam ao combalido orçamento e, claro, entre os males infindáveis da Mártir. Revoltado, na primeira juventude, tentou ser drogado, mas não conseguiu e acabou seguindo os passos do Cowboy até que se tornou empregado em empresas químicas, casou-se e gerou dois filhos. Ver-lhe tentando mostrar-se feliz é tão triste...

A quarta cria já nasceu sob ódio explicito de Odisseu; e como o Temporão, na qualidade de Rapa do Tacho, teve que disputar espaço, comida e atenção com os sobrinhos. Metido à besta, sempre tentou ser superior aos demais e mesmo tendo se afundado em empreguinhos em Supermercados gostava de se fingir “Alto Executivo” importante. A cerca de uns treze anos o negócio que tentou tocar faliu fragorosamente. Simultaneamente foi acometido por uma recidiva de um Câncer que já o molestara na primeira infância. Dessa equação, miséria e doença, o resultado não poderia ser outro e numa certa segunda-feira, as 18h15, foi solenemente convidado a se retirar de um casamento que era fingido há cerca de vinte e poucos anos. Perambulou por pensões até que conseguiu uma Kit-Net onde adora pousar como escritor. Ali passa seus dias escrevendo poesias, alguns dicionários e algumas crônicas onde rememora o que foi a vida e sua família.

Odisseu, a mártir dolorosa e quatro crias. Também eram seis. Personagens miúdos de um drama pequeno.


* Da obra de Maria José Duprat.
 
Personagens e ações ficcionais. Qualquer semelhança com a Realidade terá sido mera coincidência.

domingo, 28 de agosto de 2011

Letras

Letras que se
agitam sob modernos
holofotes
(ou sob os vestutos
archotes),
contam ao Mundo
que vivo
uma fase dourada.

Livre, quero-me Sujeito
desse amor
do momento Perfeito.

Nao há, ora direis*,
motivo para não se
cantar,
a Sereia deste
meu outro mar.

Sereia, Sereia,
do livre verso,
quase lúdico regresso,
eis-te Absoluta.
Doce esposa
que a maledicência
nem ousa
atingir,
pois te sabe
rima e razão
do meu existir.

Letras que
descrevem
o carinho,
o cuidado;
a angústia
da solidão,
da saudade
e da falta
da cara-metade.

Letras que desenham
Cristina aquarela.
A vida é ela.

                    
"Ora direis" da poética de Olavo Bilac.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Mares

Caminho das ondas
mostre-me a casa
da Sereia do Mar.
Deixe-me ouvir
seu canto,
quedar-me em
seu feitiço,
esquecer-me
do Santo Ofício
e viver essa
paixão pagã,
como se não
houvesse amanhã.

Mostre-me Delfim
dos Sete-Mares
todos os lugares
que me abriguem
dos males e azares;
e que me protejam
dos horrores
que os Homens
ensejam.

Permita-me
Poseidon Possante,
seguir mais adiante
em busca da
Ninfa do Mar,
no pleno exercício
de se dar.

Deixe-me ir,
Rainha das Águas,
pois eis que
da Gávea já vejo
o suntuoso cortejo
de Lua prateada
em Noite estrelada
que segue Cristina,
a minha doce amada.

Permitam-me,
Seres do Mar,
a delícia de aqui ficar;
agora já sei o quão pouco
custa ser Rei:
Só esse Sol,
só essa Lua;
e a amada
vestida nua.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Ancoradouro

Desconhecido ancoradouro
abriga-me em teu regaço,
pois fujo da maldade
do Mundo.

Outros portos
já tentei,
noutras praias
já parei,
mas em cada qual
só encontrei,
a alcatéia
que me devora
pelo adiantado
da hora.

Já peguei em arma
e nunca atirei;
quis ser rico,
mas sempre falhei;
quis ser culto
e de nada sei.
Agora, noves-fora,
carrego o que fiquei.

Vou levando a vida
em busca
da porta de saída.
Quem sabe noutro
Espaço,
a história se inverta
e eu consiga fazer
o que aqui, só pude dizer.

Ancoradouro desconhecido,
abrigue-me em teu cais.
Quem sabe noutro Tempo,
a vida seja mais.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Butterfly

Voa a borboleta
há pouco liberta
do casulo que a guardava,
do casulo
que lhe sufocava.

Voa outros jardins
experimentando
afagos dourados
e os novos caminhos
encontrados.

Voa borboleta renovada
nas incertas estradas
das certezas abaladas.

Voa na imensidão
dos Céus abertos
e dos sonhos despertos.

Voa imersa,
voa dispersa.
É a vida
que lhe regressa.

               

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Bolero

Caminho de
silêncio,
o rio leva
no lombo,
uma carga
de quietude
que só periga
com o som
d'algum queixume,
d'alguma prece
em murmúrio
pelas Graças
em perjúrio
do explícito augúrio.

Outro romeiro
navegará rio acima
em busca do milagre
que não veio.
Rio perene
da esperança
que não finda.
Acreditará,
ainda...

Ouve-se o *Bolero,
síntese de Sísifo
que se repete.
Do Homem
que se repete...

* Da obra de Ravel

domingo, 21 de agosto de 2011

Há de Vir

Busco no Passado
um acerto, talvez;
um acerto, em meio
a tantos erros
nos tantos cerros
em que vaguei.

No espelho
já não vejo
o que fui.
Tampouco escuto o
que se disse
na esperança de um
Futuro
menos duro.

No espelho
encaro o Presente.
E a vida me mostra
o dente.
Mas o temor já me é
proibido.
Ganhei a inconsequência
de ser destemido.
E é disso que tenho
vivido.

Dádiva pequena,
mas da qual não deixo,
pois ainda conservo
a Esperança
de sentir esse há-de-vir
quando vejo
Cristina sorrir.

Um telefonema
reafirma
que não deliro.
Cristina há,
como farol
que ilumina esses dias.
Essas camas vazias
e os desejos que
nem se sabia.

Cristina, do amor
que não se sacia.

                  

sábado, 20 de agosto de 2011

Callas Maria

Eis que Callas
encerra o silêncio.
E sustenta em
pleno voo
a Ária que nos
redime.

Morto está
o Tirano impassível;
e já nada nos oprime
nesse cortejo sublime.

Canta Callas
a antiga
dor de amor.
Ou as teias d'alguma
mortalha,
ou certo heroísmo
n'alguma batalha.

Canta Callas
esse passar
da hora,
eterno Devir
de sangue e glória
chamado História.

Vida e Ópera
sob falsos Sóis.
Holofotes e cenários
abrigando os sofrimentos,
de iguais momentos.

Que se cante Callas
em sua glória.
Que não se lhe cale,
voz e memória.

Para Maria Helena, que me fez homem. E que hoje faria 64 anos de vida.

Maria Callas (1923/1977 EUA, descendente de gregos), uma das maiores cantoras liricas que o Mundo da Ópera conheceu.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Inconfessos

Sonhos inconfessos
libertam
desejos insaciados.
Alguma renda
branca
e esses olhos
de pura paixão
acendem
a bruta vontade
de te fazer
meta e destino
de todos os delírios
nos doces martírios.

Talvez, um jardim
de Lírios
suceda
o fogo que se viu.
Mas que sempre
reste
um desejo
quase agreste;
certos apetites
e alguma sede
do que se faz
entre quatro paredes.

                           

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A Volta da Censura - Artigo de Thyago Villela e Clarissa Meneses - Jornal "Voz Operária" - Rio de Janeiro - Agosto 2011

Clique sobre o Jornal para aumentar o tamanho e facilitar a leitura.

Espera

Há um verso
à espera
do amor a cantar.

Brancas flores
ordinárias
debruçam-se sobre
o muro;
e o cheiro da noite
escancara
a solidão do verso
que espera,

mas é inútil a espera
do ávido verso.
O amor não veio
e o perfume
da noite
abandona a poesia
que não se fez.

Talvez um dia,
talvez...

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Astérion Minotauro

Labirinto que me sinto
abrigo Astérion no peito,
à espera de
um virgem amor
que sacie minha fome
e cesse minha busca
pelo brilho que me ofusca.

Sou verso não escrito
em louvor
ao amor proscrito.
Trágico e maldito
erro solitário
em castigo diário.

Já aprendi que
o Tempo se marca
pela figura
que tenho
no rosto,
amarrado de
desgosto.

Mas agora, eu me vou.
Acho, Borges,
que alguém me chama.
Talvez ele termine
meu drama.
Talvez meu peito
encontre um jeito
de sair do outro Labirinto
que já pressinto.

          Sincera homenagem ao Mestre argentino Cesar Luis Borges.

Ausente

Nada sobra
em tua
ausência.
Caminho sozinho
em nuas calçadas.
N'alguma mesa
farei um rascunho
do poeta que me
pensei;
mas nada mais
direi,
pois o vento
levaria
qualquer fantasia
e a branca Lua
de outro dia.

              

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Rendilhado

Como revide
da vida,
eis que brota
imberbe
esse maduro amor.

Eis que nesses
dias
novas alegorias
traçam arabescos
e rendilhados
nos lençóis
do amor conjugado.

Eis que nesses dias
todos os acordes
cantam o Futuro,
pois se sabe
do jardim
além do muro.

Sabe-se que o
Presente
apaga o
Passado
e que está
em Cristina
esse viver renovado.
Esse tempo dourado.

                       

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Lituânia

Também eu,
poeta distante,
sinto remorso
pelos horrores
do Mundo.
Pelo Mal
tão fecundo.

Que versos
eu deveria
ter escrito,
para amenizar
as dores
que avisto
no Tempo
que assisto.

Quem me calou
ante o terror
que nos assola,
a cada
rito de degola?

De onde eu trouxe
essa covardia
de nada dizer,
quando o grito
é tudo
que se pode fazer?

Dedicado ao Poeta Lituano C.Milocz, prêmio Nobel de Literatura em 1980.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Varsóvia

Tão intenso
quanto um amor
dançado em tango
na Varsóvia
de outro tempo.

Nostalgia de
cristais e lustres
que se lamentam
nas notas
de um Bandonion
esquecido na noite.

Trágica beleza
de uma vida
que se apaga,
antes que a noite
nos cubra
de escuridão.

Tão intensa
tua partida;
e tanta dor
pressentida
no intenso amor
na escura noite
da Varsória
de antes.

E assim foi...

domingo, 7 de agosto de 2011

Cinzas

Há tanto cinza
na realidade
que se desenha
em preto e branco.
Angústia de
Guernica
que se
multiplica.

Fala-me Sofia
de sua vida
tosca e triste
e eu te pergunto,
Poeta,
como medir tua
melancolia
se não for por
teu olhar poesia?

Como saber
do Sentimento
que nos traz o vento?
Como mostrar
o quê nao se sabe
guardar?

Há tanto cinza,
tanta meia-cor
nesse fim de Sol
do amor que agoniza.
Tanta cinza...
Tanto cinza...

                   Dedicado à Poetisa Sofia Rodrigues.

Caminhos

Caminhemos
além da moldura
do quadro
que se forma,
da vida
que se transforma
e do verde desejo
que da taça entorna.

Caminhemos maduros
o Amor que nos é dado.
Benção inesperada,
d'alguma noite
descuidada.

Caminhemos juntos
a renovada espera
por outro Primavera.
Sejamos donos do
Destino
e do pudor de um
sentir menino.

Façamos o amor
como quem replanta
a última flor.
Cuidado de artífice,
ao tocar tua meiguice
e a poesia
que já se disse.

Caminhemos a nova Planície...

                             

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Dias

Houve bem mais
que sessenta dias.
Bem mais que uma
marca no calendário.

Houve o encontro
de nossas almas.
O encontro de
nossos corpos.
Reta singular,
entre tantos
traços tortos.

Houve a certeza
de nossos
caminhos.
O conforto
de nossos ninhos.

Houve Cristina.
Houve a amada,
a doce namorada.

                         

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Gregas Tragédias - 15 - IFIGÊNIA em ÁULIS

Eurípides

Cenário – acampamento militar dos gregos em Aulis, porto de onde partiria a frota para a guerra em Tróia.

Época da ação – nos dias que antecediam a guerra troiana.

A 1ª apresentação em – 405 aC. em “Dionísias Urbanas”, em Atenas

Personagens:

Agamêmnon

Clitemnestra

Ifigênia

Menelau

Mensageiro

Odisseu

Orestes

Servo



Aulis foi uma cidade da Beócia que se tornaria célebre por ter sido o ponto de partida das tropas gregas rumo à guerra de Tróia. Também, por ter sido o local do sacrifício de Ifigênia (filha de Agamêmnon e Clitemnestra) executada ritualisticamente a mando do próprio pai. O primeiro motivo desse sacrifício seria uma vingança da deusa Artemis, ofendida com a afirmação de Agamêmnon que se disse tão bom caçador quanto ela. Para puni-lo, a deusa enviou tal calmaria ao porto que impediu as naus gregas de zarparem rumo à guerra, sendo que a condição para extingui-la era o sacrifício da jovem inocente, em expiação pela insolência do pai. Há meses acampados, entediados e prestes a ficarem sem provisões, os chefes gregos pressionaram o Atrida que sucumbiu aos apelos e às pressões e consentiu o tenebroso assassinato.

Aqui, Eurípedes usou uma variante dessa história, segundo a qual no último momento, Artemis condoeu-se da menina e a substituiu por uma corça. Para muitos estudiosos, essa versão é a matriz do mito bíblico de Abrão e Isaac, ou uma variante do fato que deu origem às duas lendas.

Essa “Tragédia” de Eurípedes é uma das mais apreciadas em todos os tempos, sendo representada em teatros comuns e em Óperas de enorme sucesso.

Nas encenações teatrais, a peça tem inicio com Agamêmnon à porta do alojamento de seus servos. Iluminado ao Sol nascente, o busto do rei resplandece no semi escuro da tenda dos escravos. Em voz baixa, Agamêmnon chama um deles. Um velho servo, alquebrado pela idade, pergunta-lhe: o que tu queres, grande rei? Em seguida, esfregando os olhos ainda sonolentos, sai da tenda, mas não consegue identificar o quê há de diferente no rei e naquela manhã, pois ambos lhe parecem iguais como em todas as outras que ali aconteceram. Por instantes julgou que o chamado real se devia à chegada do vento, mas logo percebeu que o motivo seria outro. O ar estava tão parado, quanto estivera nos últimos três meses, revelando-se frustrante a pergunta diária que todos se faziam: será hoje que partiremos em busca da vingança? Contudo, por força do hábito e para ter um assunto inicial, o velho arriscou: o vento chegou majestade?

Agamêmnon sacudiu os ombros e a cabeça tristemente, indicando que além da negativa esperada, outro fantasma confrangia-lhe o coração. Não, diz o rei. Os deuses não se comovem com nossas preces e sacrifícios. E o que venho te dizer não parte do “Rei dos Reis”, mas sim de um mero homem, de um pobre pai aterrado com o erro que cometeu. Ouve-me com atenção, servo fiel. Só a ti posso confiar essa tarefa, pois tu acompanhas Clitemnestra desde a sua casa paterna e nos longos anos em que está na minha casa sempre se mostrou o mais leal de todos. És-nos fiel e só tu poderás fazer o que eu ordenarei.

- Sim, meu rei. Eu fui o primeiro a ensinar os primeiros passos aos teus filhos, os quais eu diria que também são meus se não me visse nessa triste condição de escravo. Mas diga, ó rei, o que te causa tanto sofrimento? Enquanto velava teu sono, na noite passada, vi em seu semblante muita dor e as graves preocupações que torturam teu espírito.

- Vês esta carta? Fui eu quem a escrevi, talhando na madeira de pinho e selando-a com meu lacre pessoal.

Leve-a à Argos em segredo e só a entregue a rainha, minha esposa Clitemnestra. Ela, certamente, estranhará o conteúdo, pois é um apelo para que não cumpra o que lhe pedi ontem. Ficará, talvez, confusa com essa contra-ordem, mas é imperioso que tu, bom velho, a convença a não vir para o acampamento sob nenhuma hipótese e que não deixe que Ifigênia o faça. Insistas que é essa última carta a que tem valor, que ela desconsidere a anterior. Que ela obedeça à mensagem que tu agora porta. Nela, eu digo que o casamento de nossa filha Ifigênia e Aquiles foi adiado e que ela chame a Princesa de volta, caso a viagem já tenha sido iniciada.

- Mas, ó Rei dos Reis, o glorioso Aquiles não ficará irritado ao saber que o casamento com tua filha foi adiado?

- Não meu bom servo. Aquiles, filho da deusa Tétis, nem desconfia dessa maquinação sobre o casamento. Era um ardil que foi pensado por Menelau, meu irmão, para que a mãe Clitemnestra não impedisse a vinda da filha. Vejo-te assombrado, bom homem, mas escuta antes os fatos e só nos julgue depois. O adivinho chamado de CALCAS, ao nosso pedido, consultou o Oráculo e a deusa Artemis respondeu a mim, ao meu irmão e a Odisseu com as seguintes palavras: “para que novos ventos soprem sobre a Áulida (ou Áulis) e enfunem as velas dos vossos navios até Tróia, é necessário que o sangue de Ifigênia, filha de Agamêmnon, corra sobre o meu altar. Senão, jamais podereis ir vingar a ofensa sofrida por um de vós”. Sim, foi assim mesmo que falou; e eu te digo homem, não sei o que me levou a prometer a Menelau que eu consentiria com essa monstruosidade. Eu não sei explicar o motivo, mas eu sei que lhe prometi dar a vida de minha amada filha para que ele possa executar sua vingança. Oh deuses! O que foi que eu fiz! Oh, o arrependimento dilacera meu coração. Menelau, para obrigar-me mais ainda, invocou o antigo juramento que nós todos, reis gregos, fizemos e que nos obriga a socorrer com os meios necessários àquele que tiver sofrido alguma ofensa. Ademais, juramos auxiliar o marido escolhido por Helena. E como tal escolha premiou ao meu irmão, a ele eu me vi obrigado quando Páris a raptou, fazendo com toda a Grécia se sentisse ultrajada e se levantasse em favor do marido ofendido. Por tudo isso, bom servo, tu sabes que eu não tive usura para oferecer-lhe tudo que estava ao meu alcance em termos de recursos, sendo o primeiro a gritar em sua defesa, mas agora, sinto que me pedem o que não lhes posso dar. Como um pai poderia consentir o assassinato da própria filha? Como eu poderia entregar-lhes a minha jóia mais preciosa? Oh, velho servo, eu fugirei ao juramento, ainda que sofra as mais severas punições. Ainda que perca toda minha credibilidade e honra. Vês, homem, a extensão de meus tormentos. Mas, apressemo-nos. Vá! Procure Clitemnestra e relate tudo que de mim escutou. Conte-lhe todo o drama e a convença a ficar com Ifigênia na segurança de nossa Argos amada. Convença-a não vir cair nessa armadilha traiçoeira.

O idoso servo não consegue disfarçar o violento tremor que lhe sacode o corpo todo. O peso do segredo que guarda esmaga-lhe.

Enquanto isso, o acampamento já fervilhava com os guerreiros se exercitando e com a chegada das mulheres e donzelas que vinham admirar os guerreiros mais famosos. Admiravam, sobretudo, a Aquiles, os irmãos Ajax, o enorme Diomedes, o próprio Menelau (talvez por sarcasmo, nesse caso), dentre outros. Sem acesso aos combatentes, algumas dessas mulheres tentam falar com o servo pedindo que ele interviesse e lhes conseguisse um encontro, mas o idoso homem apressa-se ao máximo que sua idade permite e de todas se desvencilha; porém, o mesmo não consegue quando um punho poderoso lhe segura pela túnica. É Menelau quem intercepta sua missão.

Nota-se aqui, novamente, o outro aspecto que envolve o sacrifício humano. Ao contrário do que se costuma ler e saber, a morte de alguém que foi vitima de rituais não se esgota no rito em si. Como em quase todas as outras, há uma tragédia humana que os compêndios de História não relatam. A dor e o desespero do condenado, o sofrimento de quem o ama etc. Talvez seja nesse ponto que o gênero das “Tragédias” atinja seu ápice ao mostrar a História sob o ponto de vista do indivíduo e de seu sentimento. O mesmo Homem que ergue a História tem em si toda uma gama de emoções que se perde na multidão de fatos, mas que, nem por isso, deixa de existir. Nesse trecho, Agamêmnon deixa de ser o Rei belicoso, sanguinário, prepotente e se transforma em um frágil, patético pai que se viu vitima das tramas do Destino e de sua própria ganância. Em um mero mortal que tenta desesperadamente salvar seu bem mais precioso: a filha amada. Já não lhe importam as censuras e as conseqüências que sofrerá; tampouco a perda da credibilidade e da honra (sic) de guerreiro. Embaixo de sua armadura, pulsa um coração igual ao de todos os mortais.

A voz rude de Menelau indaga-lhe: aonde vais, ó velho?

Sem que desconfiassem, ele espionara a tenda de seu irmão durante a noite e não foi difícil perceber o que esse tramou. Viu-o entregar a carta ao servo e adivinhando seu conteúdo, fez questão de tomá-la. E antes que o servo se recuperasse do susto, já a tinha lido, não obstante as vãs tentativas que o velho escravo tentava para impedir sua leitura. Vãs, também são suas súplicas para que lhe devolva a missiva e lhe deixe impedir a desgraça que se aproxima.

Menelau verbaliza sua fúria e aos gritos vitupera o irmão Agamêmnon, acusando-o de pusilânime, traidor, fraco e ímpio por não respeitar a Lei Divina dos Juramentos. Entre dentes rumina seu ódio e diz: oh, que feliz idéia eu tive ao desconfiar de tua sórdida traição e interromper sua suja artimanha. Em passos largos dirige-se à tenda do irmão, seguido de perto pelo servo que tenta subtrair-lhe a carta. Agamêmnon, em sua tenda, ouve o barulho e cinicamente indaga ao irmão: - o quê te aconteceu, irmão?

E seu discurso pára nesse ponto ao ver, pálido de temor, a sua carta nas mãos de Menelau. Sabia que havia sido descoberto e sem alternativa tentou defender-se atacando:

- onde, Menelau, tu encontrou essa carta? Como ousaste violar o meu lacre real?

- Não, diga mais nada Agamêmnon. Ousei, sim, violar o teu selo, pois pressenti a armadilha que tu me armavas. Fazê-lo permitiu-me ver a fraqueza de teu caráter. Ver a tua infidelidade. Tua ganância. Tua sórdida e hipócrita ganância. Quando tu te puseste à frente de todos os gregos afirmando persuasivamente que teu único interesse era o de defender minha honra ultrajada, acreditei ingenuamente, mas agora vejo que teu interesse era outro. Que almejavas apenas o Poder sobre os demais reis. Querias ser o “Rei dos Reis”. Ser o comandante de todos os chefes gregos. Satisfazer tua abjeta vaidade. Quando chegamos aqui, em Áulis, tu se mostravas o mais impaciente pela luta e atendeste de bom grado aos primeiros sacrifícios que te foram pedidos, pois esses não representavam sacrifício nenhum para ti. Porém, agora que te é pedido uma renúncia verdadeira, eis que recuas covardemente. E eu te pergunto: - é com essa tibieza que queres comandar todos os gregos? Achas mesmo que és capaz de tal empreitada? Oh, pobre Grécia, como os bárbaros* rirão de ti.

* Bárbaros – nome comum e pejorativo dado pelos gregos a todos os outros povos.

Profundamente ferido em sua alma Agamêmnon ouve calado o arrazoado do irmão, mas a imagem da filha querida faz com que contra-argumente: - não menospreze Menelau, as imposições do coração. Lembre-se que tu, também, já foste visto várias vezes chorando sem pudor por saudade de sua esposa infiel. Estou pronto, irmão querido, a ajudar-lhe no que for necessário, mas eu não destruirei meu lar. Eu não deixarei que matem minha filha. Não a matarei para que tu te vingues de uma mulher inescrupulosa.

Nesse trecho, novamente, vê-se a face humana por trás da rude vestimenta do guerreiro. O pranto de Menelau por saudade da mulher amada revela o Homem que existe debaixo da fantasia de soldado. Idem com Agamêmnon, que entre sacrificar sua filha ou honrar a sua palavra, não titubeia em optar pela desonra que salvará sua cria. Valores humanos, demasiadamente humanos, diria Nietzsche. E inelutáveis.

- Mas então, Agamêmnon, é toda essa a amizade que tens por mim?

- Oh, querido irmão Menelau, eu quero ajudar-te, sim, e provar o quanto te amo, mas esse preço eu não consigo pagar. Não posso derramar o sangue de uma mulher inocente, pelo sangue de uma mulher culpada.

A réplica que Menelau esboça é interrompida pela chegada de um mensageiro ofegante.

- Oh ilustre Agamêmnon, venho ligeiro comunicar-lhe que estão prestes a chegar a rainha Clitemnestra e teus filhos, Ifigênia e o pequeno Orestes. Saímos todos de Micenas tão logo tua carta foi entregue à rainha e agora eles descansam junto à fonte fronteiriça ao acampamento dos gregos. O exército todo já sabe da chegada de tua ilustre família; e muito já se comenta sobre o casamento de tua filha e sobre quem será o eleito para tal honra? Todos se alegram pelo futuro himeneu...

A fala do mensageiro é interrompida por Menelau, enquanto Agamêmnon se afunda em imensa tristeza. Menelau, vendo-o tão abatido sente que a sua fúria foi substituída pela pena que sente do irmão. Toma-lhe as mãos carinhosamente e escuta suas patéticas lamúrias:

- Oh deuses, o que foi que eu fiz? Maldita ambição que me prende em sua tétrica armadilha. Sei que um rei não deve chorar, mas eu não consigo conter a mágoa e o remorso que me soterram. Filha, minha amada filha, como é que eu pude lançar-te no soturno Hades? E por quê? Para ter mais Poder? Maiores fortunas? Mas de quê, essas e aquele me valerão se minha alma está escura como o breu da noite? Para que eu quero mais ouro se o que eu mais quero não está à venda? Como eu pude deuses, substituir tua meiguice, teu carinho, por um monte de metal e títulos inúteis? O que responderei quando tu me perguntar: “por que papai fez isso comigo?”. Oh, que cruel destino! E como eu poderei encarar o meu pequeno Orestes, quando ele juntar-se às tuas súplicas? Oh, filha amada. Oh, deuses!

Nesse ponto, as lágrimas rolam iguais dos olhos dos dois irmãos.

A grandeza da escrita de Eurípedes, expressa nesse trecho, justifica a fama que o Poeta obteve. Em poucas linhas ele conseguiu retratar com maestria impar o sofrimento de dois homens, que, apanhados pelo império das circunstâncias, veem-se prestes a cometer um ato cuja barbaridade não é vista nem entre outros animais. Fiel ao seu estilo, Eurípedes relata o sofrimento de mortais subjugados por Leis e Costumes que não podem alterar. Homens arcados sob o peso das ingerências do Destino e da vontade divina. Esmagados pela força opressora de seus vícios, de suas fraquezas, de suas humanidades. Aqui não há o relato de deuses e suas proezas. Só o de Homens e suas mazelas.

Condoído, entre lágrimas, Menelau toma a palavra e diz: Oh, meu sofrido irmão, juro por Atreu*, nosso antepassado, que nada receies de mim. Não, eu não te cobrarei o juramento que fizestes. Tu está isento dessa responsabilidade. Não sacrifique tua filha. Não serei o carrasco de meu irmão e de minha sobrinha; falei há pouco com insensatez, mas sossega, pois nada mais te pedirei.

*Atreu – tristemente célebre por ter assassinado os sobrinhos, filhos de Tiestes, e os servidos como prato principal em um banquete oferecido ao pai das crianças. Cometeu tal barbaridade para se vingar do irmão que havia se tornado amante de sua esposa Aeropa.

- Menelau querido. Meu amado irmão, que os deuses retribuam tua generosidade, mas o Destino não poderá ser alterado. Minha filha não será poupada. Nessa hora, o adivinho CALCAS já deve ter contado aos chefes dos exércitos gregos o Oráculo que recebeu, o qual exige o sacrifício de minha Ifigênia. Não demorará a que esses chefes venham aqui para exigir o sacrifício, pois dele depende a boa vontade da deusa Ártemis que, só assim, liberará os ventos que nos levarão à Tróia. Não os subestimemos, pois mais que vingar tua honra ultrajada, o que eles querem são os ricos despojos que julgam amealhar. E nós sabemos que nada vence a ganância dos homens embrutecidos. Nada os fará desistir disso. Essa corja de adivinhos é odiosa e convincente e ademais o ardiloso Odisseu estava presente quanto o Oráculo foi revelado e sabe que o sacrifício é inexorável; até porque, cegado pela cobiça, eu próprio o aceitei. Com sua habilidade na retórica, logo convencerá até aos mais dignos. Todos os gregos se levantarão contra nós e quem pode resistir quando a Grécia inteira se levanta unida? Em pouco tempo, irmão, nossas Cidades seriam devastadas e mais destruição, sofrimentos e mortes viriam somar-se ao meu sofrimento de agora. A desgraça me acua e nada posso fazer irmão. Peço-te apenas que impeças Clitemnestra de saber a sentença da deusa antes da hora. Que sua dor não seja antecipada.

Menelau abraça o irmão e sai da tenda. O povo de Aulis e os soldados ali acampados aglomeram-se no acampamento com ruidosa satisfação. Nisso, chega o carro com Clitemnestra, Ifigênia e Orestes. Na mãe, vê-se o contentamento e a vaidade por casar sua filha com Aquiles, o filho de uma deusa e o mais célebre guerreiro grego. No rosto da filha, vê-se leve rubor e o quanto compartilha do contentamento da mãe.

Clitemnestra, após saudar a multidão que acorreu ao local, ordena que os servos descarreguem os presentes e os valores que trouxe como dote da noiva. Em quase êxtase, ordena também que a ama desperte o pequeno Orestes, adormecido pelo balanço do carro, e diz a Ifigênia que vá cumprimentar o pai Agamêmnon e agradecer-lhe por consentir com esse faustoso casamento. A moça atende-lhe de pronto e corre saudosa para abraçar o pai querido. Agamêmnon faz o mesmo movimento, em sentido contrário e com pressa igual, e a estreita em seus braços, enquanto sente a angústia invadindo-lhe o peito. Com muito custo consegue abafar os soluços enquanto recebe o amoroso beijo da filha amada. Embora fingisse alegria, sua tristeza é tão ostensiva que ela não pode deixar de perguntar-lhe:

- Que passa meu querido pai? Por que essa tristeza?

- Filha, é que nossa separação será muito longa.

Ifigênia não compreende o sentido da resposta e jocosa e enrubescida, responde brejeira:

- Não compreendo tua tristeza, paizinho querido. Só por que vou me casar tu te mostras tão abatido? Ou tu irás fazer uma viagem muito longa após as núpcias?

- Tu és quem fará essa longa viagem, filha. Muito longa viagem te aguarda.

- Como? Também viajarei? Irei só?

- Sim, filha. Só. Inteiramente só.

Frase macabra que vence a muralha que tentava conter o choro, que agora corre solto. Ifigênia, sem entender a dimensão da tragédia que lhe aguarda, beija o pai por repetidas vezes, julgando que os soluços dele deviam-se à viagem que ele faria, ou então, à viagem de núpcias que ela faria.

Após longos momentos, Agamêmnon recupera um pouco do autocontrole e pede à filha que vá descansar para recuperar-se da viagem recém finda. Diz-lhe que antes das tropas partirem rumo a Tróia, eles precisarão oferecer um sacrifício para a deusa Artemis, sobre o qual falarão mais tarde.

Após Ifigênia ter-se recolhido em sua tenda, Agamêmnon fala com a surpresa e aturdida Clitemnestra:

- Não fiques, ó filha de Leda e de Zeus, surpreendida com a minha emoção. Vou separar-me de minha filha amada e apesar das honras que a ela serão tributadas por conta de tal aliança, sofro por perdê-la. E mais nada consegue dizer, pois a voz trava-lhe na garganta.

- Certamente, amado esposo, que também sofro pela partida da nossa filha; mas se ela for feliz, o quê mais eu posso desejar? Conhecemos a gênese divina e os atributos do grande Aquiles e isso me conforta o coração, pois estará casada com o melhor dos gregos. Aliás, quando será o casamento? E o sacrifício à Artemis, já fizestes?

- Não, ainda não sacrificamos.

- E o festim do casamento?

Agamêmnon olha sua esposa com severidade e lhe diz rudemente que não se preocupe, pois ele cuidará de tudo. Que ela volte imediatamente para Argos.

Embora fosse acostumada a obedecer, Clitemnestra, reage com firmeza: - como? Abandonaremos o rito antigo que diz ser responsabilidade da mãe cuidar das núpcias da filha? Não serei eu quem erguerá o archote do himeneu acima de nossa filha? Não? Por quê? Não poderei assistir ao casamento de minha própria filha? Que dizes, marido?

- Parta, agora! Retruca Agamêmnon, em tom imperativo de quem não admite réplica ou contestação. Vá! Cuide de tuas outras filhas que ficaram em Argos. Aqui, eu já tomei as providências para que o casamento aconteça sem demora e com todo luxo e beleza que tu gostarias de fazer.

Contrariada, Clitemnestra obedece ao olhar severo e às palavras inelutáveis do marido, mas sua raiva contra a tirania do esposo seria menor se ela visse o sofrimento que a exemplo de um câncer corrói o coração do homem. Se pudesse, ela veria as pressões que o esmagam; e que lhes exigem a filha para o cutelo do carrasco. Veria que o preço que paga por sua ambição estraçalha-lhe a alma e que se lhe fosse possível, não hesitaria um segundo em renunciar ao comando das tropas e aos ricos despojos de guerra para preservar seu bem mais precioso: a filha amada. Para ele, a mais ilustre das gregas.

Mas como tais visões não lhe são permitidas, Clitemnestra vira-se para adentrar a tenda e preparar a viagem de retorno, quando escuta alguns passos vindos em sua direção. Eram os passos de Aquiles e os de sua escolta pessoal, os soldados “Mirmidões”, que iam à tenda de Agamêmnon reclamar da demora em partir e da tibieza e irracionalidade de algumas ordens dadas pelos irmãos Atridas. Porém, antes de Agamêmnon, Aquiles avista Clitemnestra e surpreso com a presença daquela dama no acampamento, dirige-se ao seu encontro, pois as suas ricas vestes e altiva beleza indicam que não se trata de uma escrava, ou de uma mulher do povo que diariamente vinham oferecer-se aos soldados.

- Quem és tu, indaga? Eu sou Clitemnestra, filha de Leda e de Zeus e esposa de Agamêmnon.

Aquiles a saúda respeitosamente, mas antes que pudesse se afastar é interpelado pela dama: - espere. Estou muito feliz por te conhecer, meu nobre genro. É uma honra saber que minha Ifigênia o terá como esposo.

- Como? Eu, seu genro? Aquiles, aturdido, pergunta-lhe: - que dizes mulher? Nunca teu marido, ou teu cunhado, falaram-me de tal himeneu.

- Mas não é possível. Tu ignoras o casamento com minha filha? Efeméride que nos fez vir de Argos até Aulis. Será que fui ardilosamente enganada?

- Talvez, rainha. Pode ser que alguém pregou-nos uma peça de péssimo gosto.

Em meio ao impasse, o herói e a rainha, surpresos, olham na direção de um velho servo que lhes pede atenção.

- Oh nobre Aquiles e ilustre Clitemnestra, por favor, ouçam o que tenho a dizer. Falarei baixo para que não me escutem, pois temo que haja algo mais que uma brincadeira infeliz.

- Perdoem a insolência de um humilde escravo dirigir-lhes a palavra. Sou escravo e amo meus senhores, por isso não posso deixar que seu sangue corra sem tentar impedir essa desgraça. Tu me reconheces, agora, rainha?

- Sim. És um servo leal de nossa casa há muito tempo. Enquanto respondia, Clitemnestra já sentia o coração disparar e o suor acumular-se na testa, pois pressentia um grande perigo por vir. Mas fale depressa, homem. O que te preocupa? O que tu queres nos contar? Termine esse discurso aterrador que iniciastes.

Com lágrimas nos olhos, o escravo conta o sacrifício ao qual Ifigênia será submetida. A deusa Artemis exige esse sacrifício, diz, para liberar os ventos que levarão as tropas até Troia. Logo, Agamêmnon degolará a própria filha, se não for impedido por alguém.

Clitemnestra desfalece e seu rosto se transforma em tenebrosa máscara de medo e horror. Ao voltar à consciência súplica que Artemis a poupe dessa desgraça e passa a compreender o logro, a armadilha criada pelo próprio marido. E o ódio se junta ao terror em seu coração.

- Sim, rainha, foi para oferecer a vida da própria cria que esse pai armou essa mentira. O altar para o sacríficio já foi montado e paramentado com oferendas diversas; e o sacerdote já aguarda a vitima inocente.

Clitemnestra cai aos pés de Aquiles e implora a sua ajuda: - ó filho de uma deusa e o mais valente dos gregos, eu vos imploro socorro. Embora iludidas, como tu, foi o teu renome que nos trouxe até aqui. Viemos ingênuas e felizes, sem imaginarmos, sequer por um momento, que o pai amoroso e terno seria um monstro crudelíssimo. Tu és nossa única esperança, nobre guerreiro.

Aquiles a levanta carinhosamente. Tinha o coração repleto de compaixão e de pena; e sentia crescer a raiva e a indignação contra os Atridas. Como se atreveram a usar seu nome para finalidade tão espúria? Será que Agamêmnon e Menelau o desprezavam por imaginar que ele tivesse origem obscura? Mas como, se ele era filho de uma deusa? Assim, tomado pela compaixão pelas frágeis mulheres e de ódio pelos cruéis irmãos brada resoluto:

- pelos deuses que me geraram, eu te prometo Clitemnestra que ninguém tocará em tua filha. Farei correr o sangue grego antes que o Frigio (troiano) se for necessário. Tu me tratastes como se eu fosse um deus, ó rainha, mas eu te digo que “deus” eu me tornarei e enfrentarei sozinho todos os demais gregos.

Alegria e esperança rebrotam no coração da mãe de Ifigênia. Seu olhar agradecido substitui as palavras que não consegue dizer.

Aquiles prossegue, dizendo: primeiro tentemos trazer Agamêmnon de volta à Razão e ao amor paternal. Suplica rainha, que poupe a filha; mas se ele mostrar-se indiferente ao teu apelo deixe que eu assuma a situação. Confie em mim, mãe.

Clitemnestra suspira, pois pressente que nada conseguirá do marido e diz: - oh, herói, Agamêmnon é um fraco, um covarde, que teme mais os exércitos dos Homens, que o remorso que lhe afligirá eternamente. Prevejo que será vã qualquer tentativa de demovê-lo dessa intenção horripilante. Falarei com ele apenas para te obedecer, nobre Aquiles, mas não tenho esperança de alcançar sucesso.

- Confie em mim, rainha. Eu velarei por tua filha.

Clitemnestra, novamente prostrada, entra na tenda em que a esperam os filhos e suas servas. Ainda que tentasse, não pôde esconder sua imensa dor e titubeante relatou o acontecido e se pôs a preparar Ifigênia acerca da melhor maneira de pedir clemência ao pai. Logo a tenda se encheu de doridos soluços e lágrimas e até o pequeno Orestes, embora não entendesse a extensão da desgraça que ocorreria, chorou lágrimas de intenso amargor.

Em meio a esse burburinho, Agamêmnon adentra o recinto e Clitemnestra, de súbito, lança-se contra ele dizendo já saber de tudo e o maldiz com todas as ofensas de que pôde se lembrar. Irada, diz: - veja nossos filhos. Veja tua obra. Contemple a dor de tua família. Selvagem Atrida, como tu podes pensar em trocar a vida de tua filha, por uma vingança inútil? Tudo que se faça contra Tróia e contra Helena não apagará a nodoa em teu irmão. Ele será sempre motivo de chacota e zombaria. Sempre será um “cornutto”. Se a deusa Artemis exige uma vitima por que não lhe oferecem HERMÍONE, filha da hedionda Helena e Menelau? Por que tomar-me a filha se eu sou uma esposa fiel? Não me forces a ser cruel contigo para vingar-me dessa crueldade de agora. Imagine quão vazios serão os meus dias sem a alegria de nossa filha, a cujo espectro eu direi: - sim filhinha amada, foi teu próprio pai quem te mandou para as sombras do Hades. Foi ele que te proibiu a luz do sol. Foi ele quem te matou.

E mais diria Clitemnestra, mas sua voz é abafada por incontroláveis soluços. Agamêmnon tenta não ouvir a esposa, pois cada palavra era um punhal que aumentava suas feridas. Também evita olhar para Ifigênia e para Orestes, pois a dor, a culpa e a vergonha alargavam seus ferimentos. A pobre princesa agarrada aos seus joelhos implora pela vida e Orestes, como se compreendesse que só o pai poderia devolver a paz e a alegria à família, estendia-lhe os braços pedindo seu colo, sua proteção.

Aqui, novamente, Eurípedes nos brinda, no original, com um estupendo painel acerca da natureza humana. Covardia, medo, dor e esperança são sentimentos expostos de forma tão crua e intensa que não é raro ver a platéia, extremamente comovida, chegar às lágrimas e chorar sem pudor. Inclusive nas encenações hodiernas.

- Oh, pai, não me faça morrer antes da minha hora. Por piedade, deixe-me viver. Tanto te amei, paizinho, e tu me retribuis com a morte? Olhe para o pequeno Orestes que também pede por mim.

- Ai de mim, ai de mim, geme Agamêmnon em voz inaudível. Nada posso fazer, filha. Se eu recusar-te, os gregos matarão a todos nós. Já não é Menelau quem exige teu sacrifício, mas toda a Grécia.

Com muito custo separa-se da filha e insano e delirante, foge cambaleante da tenda. Consigo, leva o horror de ser o pior facínora da Terra e o acréscimo de ter juntado à dor abstrata de antes o contato físico com aqueles que sofrem por sua louca ganância. Ifigênia, semimorta, queda-se em silêncio tumular junto à mãe. Aquiles brada: - pobres mulheres! Em seguida diz aos soldados de sua escolta: vejam a que ponto desce um Homem. Vejam que já circulam no campo as noticias sobre o sacrifício e até alguns de meus soldados rebelaram-se ao saberem que eu defenderei a pobre princesa. Ou como dizem sarcasticamente, a “minha noiva”. De tudo o Homem é capaz para satisfazer seus sórdidos desejos.

Clitemnestra solta novas lamúrias, enquanto Ifigênia a tudo vê e a tudo ouve, sem emitir uma palavra sequer. Parece estar em outro Mundo, em outra Dimensão. Aquiles retoma o discurso e reafirma sua disposição de combater os exércitos gregos, ainda que esteja só nessa luta. Para Clitemnestra diz que quando Odisseu vir para levar a vitima, encontrará a ele e aos seus Fiéis guardiões prontos pra resistirem, devendo ela postar-se a frente da filha e protegê-la com seu corpo.

Nesse momento, ouve-se a voz de Ifigênia, em tom estranhamente calmo: mãe querida e glorioso filho da deusa Tétis, escutem-me: irei voluntariamente enfrentar a morte, à qual me querem arrastar. É justo que eu dê a minha vida para a glória da Grécia. Nada farei que seja diferente daquilo que fazem os milhares de soldados que partem para o combate. Minha morte será igual à deles. Injusta, Aquiles seria a tua morte aqui, pois de ti, em grande parte, depende a nossa sorte na luta. Darei meu sangue para a glória dos gregos, aos quais compete dominar os bárbaros e não o inverso. Que Tróia seja destruída! Isso compensará o himeneu e os filhos que não terei.

- Filha de Agamêmnon, eu saúdo tua coragem. Demonstras que é filha da Grécia gloriosa. Porém, eu te salvarei, mesmo que tu não queiras, pois eu não suportaria ver-te imolada em sórdido sacrifício. Eu, Aquiles, te salvarei, ou morrerei.

Após seu arrazoado, Aquiles segue em direção ao altar de Artemis onde se aglomera a maioria dos gregos. Ifigênia segue-o com o olhar e suspira resignada. Para a mãe diz: não me tire a coragem, mãezinha. Não corte o seu lindo cabelo e nem vista luto por minha causa. E, principalmente, não guardes rancor de meu pai. Eu sei que ele concordou com o sacrifício a contragosto e só após sucumbir à imensa pressão que os outros lhe fizeram. Perdoa-o, como eu o perdôo. Beijes minhas irmãs e diga-lhes que desejo que tenham toda ventura do Mundo. E tu, pequeno Orestes, cuja coragem já mostrou quando me defendeu na medida de sua força infantil, cresça forte e justo. Seja um rei sábio e poderoso.

Voltando-se, novamente, para a mãe que jazia semi-inanimada diz: ó mãezinha adorada, venha. Leve-me ao altar do sacrifício. Cantemos um “PEÃ (hino)” em honra de Artemis, a filha de Zeus. Leve as faixas sagradas para adornar minha testa. E sem esperar que a mãe se levante a jovem se afasta como se fosse levada por uma brisa divina. Ao seu redor uma multidão se acotovela, juntando hinos diversos aos entoados pelos argivos. Nunca um sacrifício humano foi acompanhado de tanta alegria, tampouco teve vitima tão bela e resignada.

Clitemnestra vai aos poucos recuperando os Sentidos, quando de chofre a chegada de um esbaforido mensageiro a põe em alerta. Sem preâmbulos, diz o homem:

- Senhora, enxugue suas lágrimas. Aconteceu um fato miraculoso. Tua filha não desceu ao Hades. Ao contrário, foi levada aos Céus. Alçou voo com os deuses, rainha.

- Oh servo, o que dizes? Só queres iludir minha dor? Saia daqui!

- Não, minha rainha. O que digo é a pura verdade. Seu marido confirmará o que lhe digo, logo que aqui chegar.

- Diga servo, o que aconteceu.

- No momento em que CALCAS, o adivinho, erguia o punhal para degolar a princesa e Aquiles fingia espalhar as flores e a água lustral em redor do altar, até que desse o bote que a salvaria, aconteceu a maravilha. No lugar em que estivera Ifigênia, em frente ao altar, surgiu uma grande corça que tomou seu lugar no rito da morte. Morreu em lugar de sua filha, rainha. O sangue que escorria vinha do animal e não da criança. CALCAS, estupefato, gritou jubilosamente: a deusa não quis macular seu altar com sangue inocente e tão generoso. Vejam, os ventos recomeçaram a soprar. A vítima que escolheu bastou para acalmar a sede de vingança que Artemis sentia. Vamos gregos, para as naus. Vamos para Tróia.

- Oh deuses, meu coração de mãe parece rebentar de tanta alegria

- Sim, minha rainha, alegre-se. Tua filha foi residir na Morada dos Deuses.

Como já citado alhures, para alguns Eruditos essa história grega embasou a lenda bíblica referente ao sacrifício de Isaac que seria cometido pelo pai Abrão e que foi impedido no último momento por um anjo que substituiu o menino por uma ovelha. Outra vertente de estudiosos, afirma que um fato acontecido na Antiguidade é que deu origem às duas versões.

Ainda relutante em crer no mensageiro, Clitemnestra só se convence com a chegada do marido que estampa no semblante a alegria pela salvação da filha e o alivio por não lhe ter sido o carrasco. Sim, Ifigênia não estava morta. Ainda que distante dos carinhos maternos, ela vivia. Era o que lhe importava.

Em torno da Tenda Real o ar vibra com o alarido festivo dos soldados. Todos se preparam para a breve partida. Vento ligeiro enfuna as velas dos navios e atrás de Agamêmnon as tropas já descem a ribeira para iniciar a jornada. Clitemnestra, com Orestes nos braços, enxuga as lágrimas derradeiras, sabendo que nas alamedas do Paraíso, os olhos de Ifigênia velam por todos.

Note-se a satisfação dos pais com a assunção da filha ao Paraíso. Ora, essa crença é a mesma que ainda hoje conforta, em certa medida, todos que perderam entes queridos. Ao invés de se pensar no corpo enterrado, pensa-se na alma habitando lugares mais aprazíveis. Todavia, a ausência é concreta e dolorosa, e pode-se imaginar que é essa mesma, que com o tempo levou Clitemnestra a odiar o marido. Esse rancor é que a leva a traí-lo e depois matá-lo, quando de sua volta da guerra.

São Paulo, 31 de Julho de 2011.