terça-feira, 30 de setembro de 2014

Sombra e Luz


A moça que retrata a vida,
traça em sombra e luz
a silhueta do poema presumido.

Em sutil elegância imersos,
brancos e negros versos
contam as coisas do mundo
na lírica dança dos inversos.


Homenagem pouca à fotógrafa e artista plástica Li Sakamoto, cuja arte repõe belezas esquecidas.

Fotografia de Li Sakamoto.


Produção e divulgação de Lettré, l´art et la culture. Rio de Janeiro, Primavera de 2014.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Voltaire e o Iluminismo francês - Parte IX - O antagonismo entre Voltaire e Rousseau

 
Voltaire e o Iluminismo francês - Parte IX
O Antagonismo de Voltaire e Rousseau

Os franceses que acreditam em Deus devem, certamente, agradecer-lhe por terem nascido no mesmo país que deu ao mundo homens como Voltaire e Rousseau.

Ambos, mais que gênios, tornaram-se os próprios sistemas filosóficos que criaram. Em Voltaire, a Razão; em Rousseau, o Sentimento; e na soma de seus privilegiados intelectos, a visão panorâmica do homem em toda a sua complexa grandeza.

E, justamente por conta da excepcionalidade de cada um, alguns estudiosos (como esse modesto escrevinhador) ousam criticar-lhes em aspectos específicos, talvez pelo mau costume de esperar de gênios como eles, a perfeição absoluta.

Assim sendo, se alguma censura pode ser feita ao filósofo Voltaire, talvez seja a de ter tratado com certo descuido as questões políticas, em virtude de sua imersão quase absoluta na luta contra o Clero e contra a supersticiosa ignorância que ele promove.

Aliás, o próprio Voltaire assumia essa falha, proveniente de seu, também assumido, desapego às questões de Estado, de Governo. Em suas palavras:

“A política não é do meu feitio; sempre me limitei a fazer o máximo de meus modestos esforços para tornar os homens menos tolos e mais honrados. (...) Estou cansado de toda essa gente que governa Estados do recesso de seus sótãos. (...) Esses legisladores que governam o mundo a dois centavos a pagina; (...) incapazes de governar suas esposas ou suas casas, sentem grande prazer em regular o universo. (...) É impossível resolver essas questões (as políticas) com fórmulas simples e genéricas, ou dividindo todas as pessoas em bobos e escravos de um lado, e nós do outro. (...) A verdade não tem o nome de um Partido”.

Contudo, ainda que lhe faltasse um apetite mais aguçado para o jogo político, ele tinha bem definidas as suas posições sobre o tema. As principais podem ser elencadas da seguinte forma:

1 - Inclinação para certo Conservadorismo econômico, com a crença no poder da propriedade como indutor de comportamentos mais ordeiros, cuidadosos e produtivos.
2 - Indiferença em relação à suposta melhor forma de Governo, com ligeira preferência pela República, já que para ele “os homens são indignos de governarem a si mesmos”. A posição de Platão a esse respeito – o Governo composto apenas por sábios – era o seu ideal, embora ele reconhecesse a sua impossibilidade (É claro que se ele assistisse ao triste espetáculo atual, a sua posição seria muito mais severa nesse quesito.).
3 - Indiferença a conceitos sem amparo natural ou racional, tal como: patriotismo, nacionalidades, ufanismo etc. Para ele, o patriotismo só significa que “o indivíduo odeia todos os países, exceto o seu”. Por ter tido a oportunidade de viajar muito, ou por ter sido obrigado a exílios, ele não se prendia às ideias rasteiras de glorificação das “causas nacionais” e, por isso, permitia-se admirar a literatura inglesa, a pintura italiana, a Filosofia hindu e a várias outras manifestações do gênio humano, pouco lhe importando donde proviesse. E isso, mesmo que aquela nação estivesse em guerra contra a sua França natal. Aliás, a seu ver, o fato das mesmas guerrearem as nivelava por baixo e justamente por isso nenhuma delas merecia o seu apreço. Apenas as suas Culturas é que recebiam sua aprovação. Em suas palavras:
“Enquanto as nações tiverem por hábito fazer a guerra, não há muito que escolher entre elas. (...) A guerra é o maior de todos os crimes; no entanto, não há agressor que não disfarce seu crime com pretexto da justiça. (...) É proibido matar; portanto todos os assassinos são punidos, a menos que matem em grande quantidade e ao som de trombetas”.4 - Desaprovação de rebeliões populares, por desconfiar abertamente do povo enquanto agente político. A seu ver, a maioria dos homens está sempre tão ocupada que não consegue enxergar a “Verdade” até que uma mudança a transforme em erro. A história intelectual da maioria dos homens consiste apenas da substituição de um mito por outro.
5 - Discordância da tese que propunha serem todos os homens iguais, no tocante à posse de bens materiais e poderes; todavia, encampava a doutrina dos ingleses que afirmava que todos os cidadãos podem não ser igualmente fortes, ricos e poderosos, mas todos podem ser igualmente livres.

Desse modo e de acordo com essas suas convicções, o filósofo vivia sem atentar para os fatos do mundo exterior. Não percebia, por exemplo, a ascensão que vinha obtendo o filósofo Jean Jacques Rousseau, tanto no meio intelectual, quanto no seio do povo, cativado por seus romances adocicados e otimistas.

Não se dava conta de que o domínio do Racionalismo, que até aquela quadra havia dominado a cena intelectual, estava ruindo e que uma larga fatia do Pensamento acolhia o Sentimentalismo de Rousseau.

Não percebia que a complexa alma francesa, dividia-se entre o que ele representava e o Sistema proposto pelo genebrino, cujos textos emocionavam Paris e o resto do mundo.

Não atinava, em suma, que entre Voltaire e Rousseau desenhava-se o velho embate entre a Razão e a Emoção. Nele, o apego à racionalidade e ao conservadorismo; no outro, o voluntarismo, o ímpeto e o destemor pela revolução nos costumes sociais e políticos.

Porém, em determinado momento não pôde fugir da evidência do confronto e se as diferenças entre ambos não resultaram em declarada hostilidade, também não serviram para aproximá-los.

É certo que os dois mantiveram um tratamento civilizado em relação ao oponente, bem como mantiveram o respeito pelo direito de cada qual ter e expor as suas ideias; mas nem o fato de Voltaire ter oferecido o abrigo de “Les Delices” a um perseguido Rousseau, fez com que surgisse a amizade entre eles. A profunda divergência nas concepções de cada qual, não permitia qualquer composição.

Para Voltaire os argumentos de Rousseau contra a civilização não passavam de um absurdo infantil, já que, em seu ponto de vista, o homem vivia muito melhor agora, na civilização, do que quando estava no “Estado da Natureza”, sob o jugo da implacável “Lei do mais forte”. Para ele, o controle exercido pela sociedade, ainda que falho, permitia atenuar a rapinagem e ferocidade naturais do homem, impedindo o massacre dos mais frágeis fisicamente. Ao contrário de seu oponente, ele não considerava “O homem bom por natureza, tornando-se degenerado apenas por culpa da sociedade”.

Todavia, apesar das divergências com Rousseau e com as novas tendências derivadas de seu sistema, Voltaire concordava que as coisas não estavam indo bem em termos governamentais, eivado de sinecuras, corrupções, perseguições e outros males que proliferam na corrompidas sociedades governadas por tiranos (Recorte do autor – observe o leitor (a) a atualidade desse último parágrafo. A similaridade com o que ocorre em nossos dias, bem mostra o quão pouco se evoluiu nesse quesito).

Uma rara convergência entre ambos que só o espírito democrático da “Cidade Luz” poderia abrigar. De um lado, Voltaire e seus inúmeros seguidores, crentes que seria possível romper com o círculo vicioso e nefasto da Política, de maneira racional, gradual e pacifica; e no outro lado, Rousseau e seus adeptos, confiantes que o deletério círculo só poderia ser rompido com medidas drásticas, radicais, passionais.

E talvez por essa largueza de espírito, é que Voltaire nunca deixou de amar Paris e de se encantar com as suas características redentoras. Ali, encontrava-se o aprisco perfeito para a exuberância de sua inteligência, a qual, mesmo com a sombra das ideias adversárias, não sofreu qualquer déficit de reconhecimento e de consideração. Afinal, na “Cidade Luz” todas as “luzes” convivem, ainda que em castiçais opostos.

No próximo capítulo faremos as considerações finais sobre o Iluminismo e sobre a sua face mais exata, Voltaire.


Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de Comunicação com o Público. Rio de Janeiro, Primavera de 2014.

domingo, 28 de setembro de 2014

Canção de Sarajevo



Há tanto que a morte
perambula em Sarajevo,
que nuas, tornaram-se as ruas.
O fogo e a metralha
cobriram os risos;
surdos ficaram os cellos
e inúteis os últimos guizos.

Estão findos os amores
e órfãos os poemas.
Vadias, vagam as canções
entre soturnos escombros
e cessam, ante tantos assombros.

A guerra,
sempre a guerra,
entranha-se nas almas
e marcha nos homens zumbis.
Marcha com os súditos de Ares,
imperador das hordas ensandecidas
de assassinos suicidas.

Há tanto se chora em Sarajevo,
que estão secos os olhos de Tanya.
Secos espinhos,
sem rosas que os adornem.


Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessora de Imprensa e Comunicação. Rio de Janeiro, Primavera de 2014.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Voltaire e o Iluminismo francês - Parte VIII - O Tempo da Concessão e do Abrandamento.


Voltaire e o Iluminismo francês - Parte VIII -
O Tempo da Concessão e do Abrandamento

Antes de tudo, será preciso fazer o seguinte esclarecimento:

Ateu não é quem desacredita que Deus exista.

Ateu é o indivíduo que pode, ou não, acreditar em um Ser Supremo, desde que o mesmo seja totalmente desvinculado de qualquer viés religioso.

Isso colocado pode-se, então, dizer, que Voltaire não era ateu, já que ele rejeitava o Materialismo, a descrença absoluta e até o Panteísmo spinoziano por considerá-lo “excessivamente ateu” (sic). Em uma missiva a Diderot ele diz que:

“Confesso que não sou, em absoluto, da mesma opinião que Saunderson (Nicholas, matemático, 1682-1739, Grã Bretanha), que nega um Deus porque nasceu cego. Talvez eu esteja errado; mas no lugar dele eu reconheceria uma grande Inteligência que me deu tantos substitutos da visão; e percebendo, ao meditar, as maravilhosas relações entre todas as coisas, eu deveria ter desconfiado que existe um artífice infinitamente capaz. Se é muito presunçoso adivinhar o que Ele é e porque Ele fez tudo o que existe, parece-me também muito presunçoso negar que Ele existe”.

Peço a atenção do leitor (a) para o último parágrafo da missiva, no qual ele expõe a sua crença e a sua censura à presunção daqueles que se imaginam capazes de compreender e, pior, explicar a divindade. Não lhes basta sentir a Sua presença; tentam mostrar-se “íntimos” Dele, para que tal proximidade garanta-lhes privilégios.

Voltado ao filósofo, vemos que ele voltou a externar a sua crença, ao Barão Holbach, observando que o próprio título da obra do Barão, “Sistema da Natureza”, já pressupõe a existência de uma Inteligência organizadora.

Todavia, fiel às suas convicções, ele nunca deixou de negar peremptoriamente a ocorrência de milagres e símiles, bem como, qualquer suposto poder sobrenatural da oração, da prece, das novenas, dos sacrifícios etc.

Embasou-se na tese de Spinoza para escorar seus argumentos e tanto quanto o genial holandês, afirmava que Deus se expressa nas Leis Naturais e não em suas inexistentes exceções.

Igualmente negava qualquer veracidade e validade ao conceito de “Livre Arbítrio”, pois julgava ser o conjunto das circunstâncias o que produz as ações e os pensamentos. Em relação à “Alma”, ele se escusava de fazer afirmativas sobre a sua natureza e o seu propósito, mas acreditava na necessidade de que a mesma fosse imortal para servir como “freio” aos instintos mais deletérios do homem.

E quando a maturidade chegou, a sua convicção se consolidou definitivamente, pois, em sua ótica, apenas a expectativa de um prêmio ou de um castigo por toda a eternidade é que seria eficiente para conter os abusos.
Essa guinada rumo a uma maior tolerância com a crença religiosa, chegada com o avanço da idade, talvez tenha sido deflagrada pela própria sensação de senilidade ou pelo fim da ilusão de que os homens pudessem progredir intelectual e eticamente.

Porém independentemente do motivo e por conta dessa constatação, ele passou a afirmar que a Sociedade só poderia prescindir da “presença e da ameaça de Deus” se fosse composta apenas por Filósofos (no sentido de amigos do “Verdadeiro Saber”) libertados da escravidão dos desejos, que é a origem de todos os males sociais. Em suas palavras:

“Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo”.

E junto com a mudança acima, também se lhe modificou a perspectiva sobre o objetivo precípuo da Vida, que deixou de ser “a busca pela Verdade”, para se tornar “a busca pela Felicidade”.

Com isso, de certo modo, ele fez uma antecipação ao ideário que sucedeu ao Racionalismo Iluminista e que propunha a preponderância dos Sentimentos, das Intuições, sobre a Razão, conforme as teses de Rousseau, Kant e outros.

E nesse processo de câmbio de opiniões, ele avançou até ao ponto de ver com certa condescendência o próprio Teismo1, argumentando que o Mal causado pela religião provinha mais da superstição que nela se embute, de que da adoração pura de algum Ser.

E essa diferenciação entre a superstição (ou a liturgia que foi inventada pelo Clero) e a “Religião Pura” tornou-se tão importante para ele, que culminou na fundação de sua própria Igreja; a qual, segundo ele, seria a única “que foi erigida para Deus”. Nela, sem qualquer ritual, liturgia, cerimônia, fórmula etc., ele e seus adeptos podiam praticar a crença segundo os seus meios e modos, sem a pressão de seguir ritos que podem ter conteúdo para quem os inventa, mas que são vazios para todos os outros. E a concessão a esse tipo particular de “teísmo”, mereceu o verbete “Teísta” no Dicionário Filosófico que diz:

“O Teísta é um homem firmemente convencido da existência de um Ser supremo tão bom quanto poderoso, que formou todas as coisas (...); que castiga, sem crueldade, todos os crimes, e recompensa com bondade todos os atos virtuosos. (...) Unido, nesse principio, com o resto do universo, ele não adere a nenhuma das Seitas que, todas, se contradizem mutuamente. Sua religião é a mais antiga e a mais disseminada; porque a simples adoração de um Deus precedeu todos os sistemas do mundo. Ele fala uma língua que todos os povos compreendem, embora não se compreendam entre eles. Ele tem irmãos de Pequim a Caiena, e considera todos os sábios seus companheiros. Acredita que religião não consiste nem nas opiniões de uma Metafísica ininteligível, nem em vãs ostentações, mas na adoração e na justiça. Fazer o bem á a sua adoração, submeter-se a Deus é o seu credo”.

Uma grande concessão, sem dúvida, porém, mesmo tendo abrandado algumas de suas posições, Voltaire ainda continuou a ser considerado o antípoda de Rosseau, como veremos no próximo capítulo.

Nota do Autor1 – Teísmo – termo originado do grego “Theo”, deus. Resumidamente, é a crença em um Ser modelado pela doutrina de alguma religião.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de Comunicação com o Público. Rio de Janeiro, Primavera de 2014.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Voltaire e o Iluminismo francês - Parte VII - O Tratado sobre a Tolerância

 
Voltaire e o Iluminismo francês - Parte VII -
Tratado sobre a Tolerância

Indiferentes aos contra ataques, Voltaire e seus adeptos prosseguiram com a carga. Dentre outras manifestações, ele escreveu o “Tratado sobre a Tolerância”, onde diz que suportaria os absurdos do dogma cristão se os Sacerdotes que o pregam, vivessem de acordo com aquilo que pregavam e fossem tolerantes com quem deles discordasse. Afinal, indagava, “com que direito um Ser criado livre pode obrigar um outro a pensar como ele?”.

Para ele não deveria haver qualquer concessão, já que a existência da desejada harmonia social dependeria da completa destruição do Poder Eclesiástico, do qual se originava a matriz de todas as intolerâncias. Seria, a seu ver, imprescindível que o Estado fosse laico e que a Sociedade criasse padrões éticos baseados no Conhecimento, no Saber e não na ignorância supersticiosa que a Igreja impunha.

Recorte do Autor:
“Nesse ponto, peço ao leitor (a) um instante para fazer a seguinte reflexão:
Não há como negar que se originam nas doutrinas religiosas a maioria, senão a totalidade, dos julgamentos pejorativos que ainda hoje são feitos sobre determinados segmentos da população. Vejamos dois exemplos:
1 - As pessoas da etnia negra são julgadas inferiores “porque foram amaldiçoadas por descenderem de Cam” (sic).
2 - Os homossexuais são malditos porque “são aberrações que desafiam a Lei Divina que criou o Homem e a Mulher” (sic).
A histeria rancorosa dirigida atualmente às pessoas homossexuais (principalmente nos cultos evangélicos, físicos ou televisionados), felizmente fica restrita à sórdida verborragia, embora existam casos de covardes agressões físicas em outros espaços sociais. Ademais, sempre há o risco de que as agressões verbais progridam para as perseguições fascistas que abundam na história recente.
No tocante à discriminação étnica, não custa lembrar que há poucas décadas, a mesma era oficial e com embasamento em dogmas religiosos em países dito civilizados, como os Estados Unidos, a África do Sul e a Austrália, onde, aliás, os aborígenes só passaram a serem considerados Seres humanos a partir de 1969, em pleno século XX. Atualmente, essa discriminação passou a ser criminalizada, embora subsista fortemente no inconsciente coletivo, ocasionando toda sorte de situações vexatórias, incriminadoras e prejudiciais.
Alguns contra-argumentarão que não são as doutrinas religiosas a fonte dos preconceitos e, sim, a deturpação que se faz das mesmas. É uma antítese com algum valor, reconheço, mas que não invalida o fato concreto de que a maioria dos religiosos adota posições que embasam as discriminações.


Voltando ao filósofo, vemos que após o lançamento de o “Tratado”, Voltaire publicou uma longa série de textos em panfletos, historietas, diálogos, cartas, catecismos, diatribes, pasquins, sermões, versos, contos, fábulas, comentários e ensaios, assinando o próprio nome ou usando um dos tantos pseudônimos que empregava. Em termos atuais, pode-se dizer que fez uma “Campanha publicitária” maciça.

Nunca a Filosofia tinha sido exposta com tamanha clareza e objetividade; e de modo tão didático e agradável. E, por consequência, nenhum filósofo havia sido tão popular quanto ele. Aos setenta anos de idade ele estava em pleno auge criativo e produtivo e graças a essa energia as suas críticas seguiram um percurso de ascendente impacto e de progressiva aceitação popular.

Inicialmente as suas críticas eram dirigidas para a questão da confiabilidade e autenticidade da bíblia. Assim, baseado em Spinoza, nos deistas1 ingleses e no filósofo Bayle (Pierre, 1647-1706, França) ele construiu uma sátira genial, na qual a personagem protagonista, chamada “Zapata”, candidata-se ao Sacerdócio. Ingenuamente, Zapata faz perguntas sobre a doutrina e sobre os ritos e as respostas que recebe revelam todas as incongruências das chamadas “Escrituras Sagradas”. Por fim, farto daquelas inconsistências, das mentirosas convenções e das demais falcatruas, passa a pregar outro tipo de divindade: um Deus despojado dos artifícios com que o Clero que lhe deturpou; um Deus simples, longe do fausto perdulário da liturgia católica. Por fim, anuncia outro Ser Supremo, distante do estereótipo de cruel ditador que as Elites utilizam para conservar a servilidade das massas ignorantes. Nesse texto, ele completou as considerações que já havia consignado no verbete “Profecia” do Dicionário Filosófico.

Noutros, ele prossegue na temática, esclarecendo que a popularidade que os rituais cristãos alcançaram é proveniente do fascínio que a cultura helênica, egípcia e hindu sempre exerceu sobre os homens, cujas mentes obtusas, na maioria das vezes, maravilham-se diante do miraculoso, do fantástico, do fabuloso. Aliás, a esse respeito, no verbete “Religião” do Dicionário Filosófico, ele pergunta ardilosamente: “depois da nossa Santa Religião, que sem dúvida é a nossa única boa, qual aquela que seria menos condenável?”. Na verdade, para além da ironia, o seu objetivo era demonstrar que quase todos os povos antigos já possuíam mitos semelhantes aos que os cristãos adotam; concluindo, por isso, que estes, são comprovadamente reles invenções dos padres, bispos, pastores (pais de santo) etc.

Entretanto, apesar da virulência com que atacava o Clero, Voltaire não censurava a Religião em si. Seu rancor focalizava diretamente os que a utilizavam em beneficio próprio, promovendo as explorações e as disputas internas e externas. Em suas palavras:

“(aos devotos – na.): não são as pessoas comuns (...) que tem provocado essas ridículas e fatais disputas, as fontes de tantos horrores. (...) Homens alimentados por vocês num ócio confortável, enriquecidos pelo seu suor e pela sua miséria, lutavam por adeptos e escravos; inspiraram vocês com um fanatismo destrutivo, para que pudessem ser os seus senhores; transformaram vocês em supersticiosos não para que vocês pudessem temer a Deus, mas para que temessem a eles”.

No próximo capitulo, abordaremos o texto intitulado de “O Filósofo Ignorante”.

Nota do Autor – Deístas1 – os adeptos da crença na existência de um Ser supremo, mas totalmente diferente e desvinculado dos dogmas religiosos.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de Comunicação com o Público. Rio de Janeiro, Primavera de 2014.

Yumi do bordel


O vagão semi vazio,
leva apenas duas lágrimas
e os olhos de onde escorreram
e a alma de onde nasceram.
No espaço pouco do corpo frágil,
a dor balança como se açoitada fosse
e Yumi ignora se ainda vive.

As janelas embaçadas não podem esconder
as luzes vermelhas do bordel cambaleante.
Dentro, jovens putas sorriem para homens velhos
e não sonham, pois a Pedra de Brisa
é sonho negado.

Yumi, a das lágrimas e a das coxas abertas
e a do vagão semi vazio
e a da vida no bordel
entre os homens vermelhos de velhas luzes,
cambaleia por longas corredeiras e íngremes ladeiras
à frente do berro de cadela, de vaca amarela,
de lanterna chinesa banguela
de abat-jour de meia tigela
e de japa piranha rameira
sem eira, nem beira.

E no alto, um Pastor vocifera contra o mundo
e anuncia o fim de Satã,
o deus vivo dos homens ruins.
E ao Deus morto, dos homens bons
pede a desistência doutro Gênese,
pois faltarão gregos para tantas tragédias
e para secar as lágrimas de Yumi,
sentada no vagão semi vazio,
com as coxas abertas,
à espera dos velhos vermelhos
que chegam cambaleantes
do bordel em que nasceu o Pastor.

O mundo não é o tanto que se alardeia.
É só um quarto de parede e meia.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de Comunicação Social. Rio de Janeiro, Primavera de 2014.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Dragões


Ainda que tortas, foram essas
as máscaras que usamos.
Assimétricas e sujas faces
que envergonhados envergamos.

E tudo por nossa covardia
de não ver que a sombra e a luz
só mostram a alternância das ausências
e a intermitência do riso e do drama.

E tudo por não vermos
que secaram as acácias
em eternizadas esperas.

Agora, as roupas imitam os desejos
e sonhamos não ser
o que só podemos ser.

No velho teatro chinês,
a fealdade do dragão
não se oculta sob as dobras da arte;
e será em vão
alisar o cetim que houve
nas fantasias esquecidas.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de Comunicação. Rio de Janeiro, Primavera de 2014.

Voltaire e o Iluminismo francês - Parte VII - Ecrasez L´infame


Voltaire e o Iluminismo francês - Parte VII -
Ecrasez L´infame

Já muito famoso, a partir de o “Dicionário Filosófico”, Voltaire tornou-se quase que uma unanimidade e passou a ser visto como um verdadeiro “paladino da Justiça”, a quem se deveria recorrer nos casos de intolerâncias e de perseguições.

E ele não hesitou em assumir esse papel, passando da condição de “homem de letras” para a de “homem de ação”.

Se nenhum fato tivesse quebrado a rotina, é provável que Voltaire tivesse se conservado fleumático, um cético moderado e sempre amável no trato; pois, em verdade, nem mesmo motivos para desentendimentos haveria, já que a maioria, para não dizer a totalidade, de frequentadores de seus círculos seria incapaz de lhe opor a menor discordância, tal era a reverência com que o tratavam. Seus argumentos e suas opiniões eram acatados, ou tolerados, até por seus inimigos no Clero e na Nobreza, já que lhes parecia mais prudente fazer-lhe algumas concessões, do que enfrentar a fúria devastadora de sua pena.

Porém, um acontecimento ocorrido em Toulouse, a sétima cidade mais importante da França, fê-lo abandonar a polida censura e desencadear uma verdadeira guerra contra o Clero, com o declarado propósito de “esmagar a infâmia do excesso de zelo religioso”.

Toulouse, na época, era praticamente controlada pela Igreja, que regia com mão de ferro todos os aspectos sociais, morais e teológicos dos cidadãos. Uma ditadura teocrática como as que vigoram, na atualidade, em algumas nações do Oriente próximo e médio; e como sonham implantar no Ocidente alguns políticos fanáticos religiosos.

Por isso, de acordo com as suas leis, o tristemente famoso “massacre de São Bartolomeu” era comemorado; bem como a revogação de “édito de Nantes” que havia estabelecido a liberdade religiosa. Ademais, ninguém que não fosse católico, poderia desempenhar as profissões mais conceituadas e melhores remuneradas, tampouco podiam os Protestantes servir como Criados de católicos; assim como não poderiam ter certos tipos de negócios etc. Uma extensa lista de proibições injustificáveis, embora comuns nas ditaduras.

Nesse ambiente opressor, em certo dia do ano de 1761, um Protestante chamado Jean Calas encontrou o seu filho morto, após ter cometido suicídio, provavelmente, por dificuldades financeiras. Sabendo que a Lei de Toulouse tratava os suicidas de modo particularmente cruel1, Jean Calas pediu aos parentes que declarassem que a morte de seu filho se deveu a causas naturais.

Porém, surgiu um boato de que o rapaz teria sido assassinado pelo próprio pai que não admitiria a sua suposta conversão ao catolicismo. Em razão do boato, sem qualquer julgamento ou comprovação, Jean Calas foi preso e sendo torturado barbaramente morreu logo depois.

A família ficou arruinada e tornou-se alvo dos fanáticos habitantes do lugar, não lhe restando alternativa que não fosse à do exílio. Dessa forma, seguiu para Ferney e, ali, buscou o auxilio de Voltaire.

A trágica história deixou o filósofo arrasado e logo após socorrer a família perseguida, ele investigou a questão e descobriu que aquele não fora um caso isolado, mas apenas mais um dos terríveis abusos que eram cometidos na localidade.

Foi, então, que a antiga bonomia de Voltaire cedeu lugar para a sua terrível fúria. Possesso, respondeu ao filosofo d´Alembert que dissera “dali por diante irei simplesmente zombar de tudo”, com a seguinte invectiva:

“Não é hora de zombaria, o espírito não se coaduna com massacres. (...) É este o país da Filosofia e do prazer? Ao contrário, é o país do Massacre de São Bartolomeu”.

Aquela situação absurda e crudelíssima o provocara de forma inédita e ele transformou a Filosofia em munição para a guerra que estava declarando. Presto, adotou o célebre slogan “Ecrasez l´infame (esmagai o infame)” e com a sua verve magistral, sacudiu toda a França contra os abusos da igreja.

E tamanha foi a sua dedicação à Causa que não será exagero dar-lhe o crédito de ter sido a principal força que derrubou o domínio teocrático, enquanto contribuía poderosamente para a queda da monarquia.

Dessa época, entre vários outros, destaca-se um discurso seu que entrou para a história como uma das peças de retórica de maior objetividade e poder de convencimento. Nele estava o apelo aos seus pares e a todos os que tivessem um mínimo de decência para que o expurgo daquelas espúrias e canalhas Instituições fosse imediato, completo e definitivo.

A reação do Clero e da Nobreza logo mostrou as suas armas, sendo uma delas a incrível, e obviamente frustrada, tentativa de subornar o filósofo que foi executada pela célebre Mme. de Pompadour.

E tal como essa, baldadas foram as outras tentativas de silenciá-lo, como veremos na sequência, no capitulo sobre o “Tratado sobre a Tolerância”

Nota do Autor 1 – o suicida era totalmente despido, atado a uma armação de madeira, arrastado pelas ruas e depois pendurado em um poste, onde ficava sujeito ao escárnio dos populares.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de Comunicação com o Público. Rio de Janeiro, inverno de 2014.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Voltaire e o Iluminismo francês - Parte VI - Dicionário Filosófico (a Enciclopédia)


Antes de falarmos a respeito dessa obra de Voltaire, será oportuno traçarmos uma breve panorâmica da vida intelectual daquela época.

O reinado de Luis XIV foi permeado pelas ideias revolucionárias de alguns dos mais brilhantes intelectuais que a França deu ao mundo, apesar da rigida intransigência e das sórdidas pressões exercidas pelos bispos católicos e por setores conservadores da sociedade, cuja ignorância e/ou má intenção não diferia em quase nada da que se vê atualmente, nesse mesmo segmento.

Além de Voltaire, o Barão de Holbach, o filósofo d´Alembert, o historiador La Mettrie, o filósofo Helvetius e, sobretudo, o filósofo e enciclopedista Denis Diderot (1713-1784- autor da frase em epígrafe), produziram obras que abalaram profundamente o status quo e semearam o Pensamento moderno.

Horrorizava ao grupo religioso e/ou conservador que as “Luzes” acesas pelo grupo de intelectuais pudessem aclarar a mente das massas populares que eles exploravam e dominavam através das ameaças mundanas e celestiais. Afinal, se tal acontecesse, seria impossível manterem as suas sinecuras, os seus privilégios e as suas “doces vidas” de ócio, festas, caçadas, banquetes e luxúria, financiados pelos dízimos e pelos tributos escorchantes.

Porém, na verdade, esse risco nunca existiu, pois, tal como agora, as “massas exploradas” nunca tiveram grande interesse em se libertar, já que lhes era mais cômodo “não pensar, não estudar, não aprender, não ousar”. Resignar-se a uma vida de servidão, desde que lhe fosse assegurado o mínimo necessário.

Aprender, estudar, ousar etc. parecia-lhes, como lhes parece, algo extremamente difícil, trabalhoso. E, assim sendo, havia, como ainda hoje, certa acomodação entre as duas pontas da situação; isto é, entre explorados e exploradores.

Com isso, a admiração prestada aos Intelectuais soava como um elogio prestado a um Ser diferente e não a um homem comum que só almejava contribuir para a libertação e para a elevação da humanidade. O pensamento filosófico e conceitos como dignidade, independência, igualdade etc. pareciam elementos exóticos e até quiméricos. Inacessíveis porque “assim Deus queria que fosse”.

E essa servilidade era mais evidente na França do que em outros países, por conta do relativo fracasso que a Reforma Protestante ali obteve, ao contrário da Grã Bretanha, da Alemanha e doutras nações.

Desse modo, a evolução do intelecto francês não manteve nenhuma sintonia com a melhora ética que a Reforma introduziu na teologia, como a que se verificou nas terras onde a doutrina de Lutero passou a imperar.

Houve, até mesmo, um recuo às posições católicas mais conservadoras e foi por conta dessa desarmonia entre o avanço intelectual e o teológico que, em solo francês, a hostilidade contra o clero acabou sendo mais radical e agressiva.

Exemplo dessa ira pode ser vista, por exemplo, na obra de La Mettrie (1709-1751), “História Natural da Alma”, que traz um Mecanicismo muito mais ousado do que o proposto por Descartes. Para ele, a “alma” seria apenas matéria, enquanto que a matéria corporal seria apenas “sentimental (dos Sentidos, sensações)”. Ambas crescem, influenciam-se mutuamente e se deterioram em conjunto. Características, óbvio, que não deixavam espaço para Deus ou para qualquer outra figura religiosa. Ademais, a Ética não proviria de outra fonte que não fosse a necessidade, que, no homem, assume a forma sofisticada dos “desejos”. Também é óbvio que, novamente, não havia espaço para Deus ou qualquer figura Metafísica. Assim, para La Mettrie, o divino não passaria de uma reles fantasia.

Em contrapartida, as autoridades civis e religiosas moveram-lhe uma cruel perseguição e ele teve que se exilar na Corte de Frederico, o Grande, que não perdia oportunidade de enriquecer a sua Academia com os talentosos intelectuais que fossem perseguidos.

Porém, nem a ferocidade da perseguição desencadeada contra La Mettrie foi capaz de silenciar o filósofo Helvétius (Claude Adrien – 1715-1771 – França) que se baseou em suas teses, para escrever o livro “Sobre o homem”, onde coloca a Ética como um produto exclusivamente do egoísmo humano.

Em sua ótica, toda ação resulta do interesse pessoal, do amor próprio. Segundo ele, a Consciência não é a “voz de Deus”, mas o “dedo da Polícia”. Seria um tipo de depósito onde se guarda todas as proibições que são impostas ao homem desde o seu nascimento, através dos genitores, professores, governos etc. Por isso, as questões Éticas ou Morais não deveriam ser tratadas pela Teologia, mas, sim, pela Sociologia já que são as circunstâncias sociais que modelam e classificam os comportamentos. Não é um “dogma inalterável” que determina em definitivo o que seja “Bom” ou “Mal”. Apenas as vicissitudes de uma época é que poderiam fazer essa análise e classificação.

Concepções que certamente receberam a aprovação de Denis Diderot (1713-1784, França), a estrela mais fulgurante dessa plêiade, cujas ideias foram expostas por sua própria pena e por outros Pensadores de escol, que eram fiéis admiradores de seu virtuosismo.

Dentre esses, destacava-se o Barão d´Holbach (1723-1789) que expôs várias teses de Diderot em sua célebre obra, “Sistema da Natureza”. Nela, ele consignou, por exemplo, que:

“Veremos que a ignorância e o medo criaram os deuses; que a imaginação, o entusiasmo ou o embuste os adornou ou desfigurou; que a fraqueza os venera; que a credulidade os preserva; e que o costume os respeita, e a tirania os apoia a fim de fazer com que cegueira dos homens atenda aos seus interesses”.

Esta ideia, aliás, era uma das mais caras a Diderot, que a resumiu na célebre sentença:

“Os homens só serão livres quando o último rei (ou governante, político etc.) for estrangulado com as entranhas do último padre (pastor, bispo, pai de santo etc.)”.

Contudo, apesar da ojeriza que demonstrava aos religiosos, Diderot não era adepto do Materialismo, vendo no mesmo apenas um valioso instrumento na luta contra o Clero. Para ele, aliás, seria impossível reduzir a Consciência à reles matéria, pois isto equivaleria a se fazer uma indevida super simplificação.

Portanto, o Materialismo só deveria ser utilizado até que fosse encontrada uma ferramenta melhor para a luta contra a Igreja; devendo-se, enquanto isso, estimular o Conhecimento nas massas populares, pois o Saber, per si, poderia, ao menos, impedir o aumento das hordas supersticiosas e má intencionadas.

Compartilhando essa visão estava o filósofo d´Alembert (1717-1783, França), coautor da “Encyclopédie”, sobre a qual, aliás, é preciso fazer mais algumas considerações, tal é a sua importância:

A Encyclopédie foi escrita por vários eruditos de 1752 a 1772. Nessa vintena, em cada um de seus capítulos, trazia concepções e saberes filosóficos destinados às massas populares, que através desse aprendizado poderia libertar-se de seus opressores religiosos e governamentais.

Seus primeiros volumes foram proibidos pela Igreja e repudiados pelos devotos mais fanatizados. Além disso, passou a sofrer pressões por parte da Nobreza e do Governo e até no meio intelectual surgiram objeções, como as de Jean Jacques Rosseau (1712-1778, Genebra) que discordava da glorificação que o grupo dava à Razão, ao raciocino, em detrimento das sensações, dos sentimentos, das intuições. E até a genialidade de Immanuel Kant foi citada para contrapor alguns dos argumentos dos enciclopedistas, ainda na questão do endeusamento da Razão, já que o gênio alemão havia questionado qual seriam o real limite e potencial da mesma.

Esse conjunto de opositores fez com que vários autores iniciais do projeto o abandonassem, ficando à frente do mesmo apenas Diderot e alguns outros eruditos que lhe compartilhavam as ideias e a coragem. E neles a determinação só aumentou em decorrência das oposições, bem como a virulência de suas críticas e censuras contra os alvos prediletos: o clero e o governo.

E, enquanto as contra-argumentações e as perseguições religiosa e oficial não se tornaram um obstáculo intransponível, a Encyclopédie e seu ideário reinaram absolutas no panorama intelectual francês, meio ambiente em que a figura de Voltaire era reverenciada.

E ele, sempre pronto para os bons combates, nunca deixou de frequentar o círculo dos enciclopedistas, chegando mesmo a escrever vários verbetes da mesma. Os melhores, dizem os críticos literários.

Essa experiência despertou-lhe o desejo de fazer uma “Enciclopédia” pessoal, apenas sua, e logo batizou o projeto de Dicionário Filosófico.

Assim, com o arrojo característico e com uma ousadia que era inédita até mesmo nele, escreveu sobre todos os assuntos, impregnando cada trecho de sua erudita cultura e superior inteligência. Produziu uma obra que além da profundidade com que tratou os temas abordados, também cintila pela acessibilidade no estilo e na linguagem. Realmente, um clássico.

De inicio, escreveu sobre “dúvidas”, fazendo um sincero agradecimento ao filósofo Bayle (Pierre – 1647-1706 – França) por ter-lhe ensinado a “arte da dúvida”. Nessa linha, ele rejeita todos os Sistemas e desconfia que:

“todo chefe de seita em Filosofia, seja um tanto charlatão, pois só os charlatães tem certeza (...) já que nada sabemos dos primeiros princípios. (...) Pois é realmente extravagante definir Deus, anjos e mentes, e saber exatamente o motivo pelo qual Ele criou o mundo, quando não sabemos (sequer) porque mexemos os braços quando queremos.”. “A dúvida não é um estado muito agradável, mas a certeza é um estado ridículo”.

Depois, escreve sobre vários temas, com a profundidade necessária e com a leveza estilística que lhe era característica. São verbetes que elucidam os mais diversos temas filosóficos, sociológicos, antropológicos, históricos e até teológicos, compondo um vasto panorama do Saber humano. E já quase no final, narra a história do “Bom Brâmane1”, que reproduzimos a seguir:

“- Quem me dera, eu nunca tivesse nascido!
- Por quê? Disse eu.
- Porque há quarenta anos que venho estudando e, verifico que foi muito tempo perdido. (...) Creio que sou composto de matéria, mas jamais consegui me convencer do que é que produz o pensamento. Chego até a ignorar se a minha compreensão é uma simples faculdade como a de caminhar ou digerir, ou se penso com a cabeça da mesma maneira que seguro uma coisa com as mãos. (...) Eu falo muito, e depois de acabar de falar, fico confuso e envergonhado do que disse.
No mesmo dia tive uma conversa com uma velha senhora, vizinha dele. Perguntei se alguma vez se sentira infeliz por não compreender como sua alma era feita. Ela nem sequer compreendeu a minha pergunta. Não pensara, no mais curto instante da vida, naqueles assuntos com os quais o bom brâmane tanto se atormentava. Ela acreditava, no fundo do coração, nas metamorfoses de Vishnu2, e desde que pudesse arranjar um pouco da água sagrada do Ganges para fazer suas abluções, considerava-se a mais feliz das mulheres. Impressionado com a felicidade daquela pobre criatura, voltei para o meu filósofo, a quem me dirigi da seguinte maneira:
- Não tendes vergonha de vos sentirdes tão infeliz, quando, a menos de cinquenta metros de onde estais, existe um velho autômato que não pensa em nada e vive contente?
- Tendes razão, tenho dito a mim mesmo, mil vezes que eu deveria ser feliz se fosse tão ignorante quanto minha velha vizinha; no entanto, é uma felicidade que não desejo...

Essa resposta do brâmane me causou uma impressão maior do que qualquer outra coisa que acontecera”.

Com essa história, Voltaire ilustra com perfeição o fato de que não é possível existir uma paz efetiva na ignorância, pois nela, só existe uma resignação acomodada ou, pior, covarde. Existe apenas o medo de pensar, de refletir, de descobrir.

Com isso, ele termina sua obra tecendo considerações acerca da importância fundamental do verdadeiro Saber, pois, ainda que nunca produza verdades definitivas, a Filosofia é a maior e a mais nobre aventura que o homem pode alcançar.

E, seguramente, obras como o seu Dicionário Filosófico são como brados perenes que nos encorajam a nunca abdicarmos do uso da Razão, pois, talvez, seja isto que justifique a nossa existência.

No próximo capitulo nos dedicaremos aos fatos condensados sob o jargão “Ecrasez l´infame”.

Nota do Autor1 – Brâmane – sacerdote hindu.

Nota do Autor2 – Vishnu – o segundo deus na Trimurti hindu. Aos interessados recomendo a obra de minha autoria “Deusas e Deuses Hindus – dicionário sintético”, exposta em meu WebSite.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de Comunicação com o Público. Rio de Janeiro, inverno de 2014.

sábado, 20 de setembro de 2014

Voltaire e o Iluminismo francês - Parte V - Cândido (O Otimismo), Ferney

 
 
Voltaire e o Iluminismo francês - Parte V -
Cândido (o Otimismo), Ferney

Devido, então, à proibição de voltar à França Voltaire mudou-se para “Les Delices” e logo depois se transferiu para Ferney, uma localidade limítrofe à Suíça e a França, onde ele se fixou até o fim da vida.
Suas constantes idas e vindas anteriores não se deveram apenas à inquietude de seu espírito, mas, também, às perseguições que sofreu; porém, ali, ele encontrou a paz e a segurança de que necessitava. Um plácido refúgio.
E na nova vivenda permitiu-se viver de forma pacata, porém o mundo culto não podia prescindir de sua erudição e não tardou para que o assédio voltasse a lhe perturbar o sossego.
A exemplo de Cirey, a nova casa se tornou a “capital intelectual da França”, para onde acorriam padres céticos, aristocratas libertinos, cultas senhoras, jovens estudantes e estudiosos não tão jovens.
Não eram raras as visitas de homens ilustres, como, por exemplo, as dos historiadores Gibbon e Boswell, da Grã Bretanha; dos Filósofos franceses d´Alembert (1717-1783) Helvetius (1715-1771) e de vários outros adeptos do Iluminismo.
Um fluxo interminável de admiradores que agradava ao filósofo, mas como ele era sabidamente econômico, logo começou a se ressentir pelos gastos que representavam; e seus protestos, feitos com suas tradicionais e espirituosas tiradas, tornaram-se proverbiais, como as que seguem:

“Voltaire para um hóspede: - qual a diferença de vós para Dom Quixote? Ele confundia estalagens com castelos, e vós confundis este castelo com uma estalagem”.
“Deus me proteja de meus amigos; dos inimigos, eu mesmo cuido”.
E além das visitas pessoais, o assédio também se dava por via postal, tornando-o um contumaz correspondente de importantes figuras da Europa, como o Rei Gustavo III, da Suécia, que se declarava privilegiado e honrado por saber que às vezes Voltaire interessava-se por seu reino, o que constituía o estímulo necessário para que os suecos tentassem ser sempre melhores; o rei Cristiano VII, da Dinamarca, que lhe pedia desculpas por não ter conseguido, ainda, implantar todas as medidas que ele preconizara; a grande soberana russa Catarina II que lhe enviava presentes valiosos e sempre se mostrava preocupada em estar incomodando-o; e vários outros luminares da época. E até mesmo Frederico, o Grande, não resistiu à sua genialidade e pediu humildemente para retornar ao “rebanho”, através de uma missiva em que consignava a sua admiração, dizendo que: “serieis perfeito, se não fosses homem”.
Uma verdadeira torrente de loas, de elogios e, talvez, de afeto e de admiração sinceros. Tudo, em suma, que deveria alimentar a conhecida extroversão de Voltaire; mas, para surpresa geral, aquele anfitrião tão alegre, acabou se transformando em um dos expoentes do Pessimismo filosófico. A imagem daquele farrista que brilhava nos salões de Paris, que havia visto e vivido o melhor lado da vida, apesar da Bastilha, ainda estava presente na lembrança de todos, mas já não era real.
Por baixo de sua imperturbável amabilidade e fineza, crescia-lhe um severo sentimento de contestação contra aquele “Otimismo exagerado” que havia se tornado a última moda nos círculos cultos e sociais, sob o patrocínio de importantes Pensadores, dos quais, o exemplo mais claro era o filósofo Leibniz.
As perseguições que sofrera e os desencantos e as desilusões que experimentara haviam desgastado a sua fé na vida e nos homens. E a sua descrença aumentou quando um terrível terremoto devastou Lisboa, Portugal, em 1755, deixando mais de trinta mil mortos e um sem número de feridos, desabrigados, arruinados e desamparados.
E como se não bastasse a extensão da tragédia, amargurava-lhe profundamente a atitude cínica e sórdida da Igreja que logo se pôs a afirmar que o cataclismo era “castigo de Deus” aos pecados do povo lisboeta, que deveria, então, tornar-se mais submisso ao divino, através de “seus representantes”. Mais que a tragédia, doía-lhe ver a exploração que os maus carateres faziam em cima do sofrimento de tantos. Doía-lhe a maldade do homem.
Ademais, para agravar ainda mais o seu sofrimento, poucos meses após aquele terrível desastre, eclodiu a chamada “Guerra dos Sete Anos”, que para ele era mais outra sandice humana; um mútuo suicídio que a França e Grã Bretanha cometiam em troca de um prêmio constituído por somente “alguns acres de neve no Canadá”.
E como ele rejeitava a opinião do filósofo Spinoza de que o “Bem” e o “Mal” são apenas conceitos humanos, nem essa janela ele pôde utilizar para amenizar o seu sofrimento. Pôde, apenas, externar a sua consternação através de um poema que compôs sob o mote do velho dilema: ou Deus pode evitar o mal, mas não quer; ou quer evitá-lo, mas não pode.
Todavia, esse mesmo poema, causou-lhe outro aborrecimento, quando o filósofo Jean Jacques Rosseau o repeliu, argumentando que, em verdade, a culpa pelas mortes em Lisboa era exclusivamente de seus habitantes, pois “se os homens não vivessem agrupados nas grandes cidades, uma tragédia como aquela não atingiria a tantos”; além disso, “se os homens vivessem sob o céu aberto, as casas não lhes cairiam na cabeça”. Argumentos, no mínimo, questionáveis, mas que ainda assim seduziram a maioria da população, para assombro e indignação de quem tivesse um pouco de bom senso.
Para Voltaire essa nova comprovação da estupidez humana foi a gota que faltava para transbordar o jarro da paciência. Transtornou-o completamente. Não lhe era possível aceitar que aquela teodiceia pudesse existir entre Seres que se julgam racionais; tampouco, que diante de tantas tragédias ainda houvesse tanta resignação covarde e tanto otimismo infundado.
De onde vinha esse desejo absurdo de ser ludibriado? Essa ingenuidade de crer num Deus infinitamente bom, incapaz de causar qualquer dano? Por que aceitar que a culpa dos infortúnios seja sempre dos homens? Por que acreditar que esses infortúnios são “produzidos” apenas para aumentar-lhes a coragem e a determinação? Ou, que sejam “Castigos Divinos” merecidos?
Não! Não lhe era possível calar-se frente a tamanha insanidade e a sua resposta foi fulminante, pois em apenas três dias ele escreveu uma de suas obras-primas mais conhecidas: Cândido (ou Otimismo).
Usando a “mais terrível de todas as armas intelectuais já brandidas, o escárnio voltariano”, em meados de 1751, ele compôs esse pequeno livro que conta as histórias do epônimo, um rapaz simples, honesto e ingênuo, filho do Barão de Tlunder-Tem-Trockh da Vestfália e discípulo do “filósofo” Pangloss.
O jovem Cândido vive incríveis aventuras tragicômicas no amor, na guerra, nas amizades, nos negócios etc. E em todos os campos a maldade humana e a severidade da natureza estão presentes, ocasionando-lhe uma série de sofrimentos; os quais, no entanto, segundo lhe assegura Pangloss, só existem em seu beneficio, haja vista que o farão tornar-se mais forte, inteligente, rígido de caráter etc. Ademais, ainda prega Pangloss, todos os sofrimentos são benéficos por mostrarem a infinita bondade do Criador (sic)1.
Em termos literários, o livro é uma joia rara, pois apresenta numa linguagem agradabilíssima e com toda a profundidade necessária a infame hipocrisia teológica, a governamental e a social. Um clássico, sem dúvidas, que mereceu de Will Durant (EUA – 1885-1981) e de Anatole France (França 1844-1924), respectivamente, os seguintes comentários:

“Nunca o pessimismo foi demonstrado de forma tão alegre; nunca se fez o homem rir com tanto gosto enquanto ficava sabendo que este mundo é um mundo de desgraças. E raramente uma história foi contada com uma arte tão simples e oculta; é pura narrativa e puro diálogo; nada de descrições para encher linguiça; e a ação é desenfreadamente rápida”.

“Nos dedos de Voltaire, a pena corre e ri”.

Na sequência abordaremos a obra mais conhecida de Voltaire, o celebrado “Dicionário Filosófico”.

Nota do Autor1 – aqui, o leitor (a) já pode vislumbrar uma prévia da crítica de Nietzsche sobre a moral cristã que prega haver virtude no sofrimento.

Produção e divulgação de Pri Guilhen, lettré, l´art et la culture, Assessora de Imprensa e de Comunicação. Rio de Janeiro, inverno de 2014
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quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Poema do amor exagerado


Que seja o poema do amor exagerado.
Que não haja pudores e que nada iniba
esses versos de lirismo derramado.
Que fale de sereias, de jasmins,
de flores, de querubins
e dos luares que brilham nos jardins.
Que conte de sonhos, de desejos
e dos corpos que se mostram sem pejos,
pois eis que só recobrem a pureza das almas
que navegam a enseada de águas calmas.
Que diga dos carinhos
e do acolhimento de abraços e de ninhos.
Que afronte os racionais e os falsos intelectuais.
E que escandalize os bedéis da vida
e os censores dos amores,
ao contar das delicias na cama
e da nobreza de suas damas,
ardentes em impudícas chamas.
Que não esqueça das idas, das voltas
e da saudade que se sente
do amor ausente.
E que, ao fim, proclame a glória
de sermos parte dessa história.


Para a moça bonita.


Produção e divulgação de Pri Guilhen, lettré, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de Comunicação Social. Rio de Janeiro, inverno de 214.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Voltaire e o Iluminismo francês - Parte IV - Ensaio sobre o Costumes


Voltaire e o Iluminismo francês - Parte IV -
Ensaio sobre os Costumes

Primeiramente será conveniente esclarecer o motivo do exílio, decretado pelo governo francês, que foi citado no final do último capitulo.
Essa punição foi-lhe imposta devido à publicação feita em Berlim, Alemanha, do Ensaio que veremos adiante. O célebre “Ensaio sobre os Costumes e o Espírito das Nações e sobre os Principais fatos da História, de Carlos Magno a Luis XIII”. Um longo titulo para aquele que segundo Will Durant foi o mais volumoso, o mais característico e o mais ousado de seus trabalhos.
Voltaire o começara quando ainda residia com Madame du Chatelet em Cirey. Aliás, o motivo para tê-lo iniciado veio da própria amada e de suas criticas a forma como a História moderna era escrita.
Segundo ela, um amontoado de fatos vulgares, personagens idem, lugares comuns, repetidas descrições de batalhas irrelevantes, travadas por facções igualmente desinteressantes. Um tedioso exercício repetitivo que ela abandonara ao sentir que nada lhe acrescentava. Ainda segundo ela, se a história antiga tinha o seu encanto e lhe ofertava novos conhecimentos por contar as vidas, os costumes e os fatos de nações e de personagens deveras importantes, o mesmo não se repetia com os acontecimentos da modernidade.
Convenhamos que se trate de uma censura pertinente e que ainda hoje é válida; sendo, em verdade, a maior causa de seu abandono por parte dos estudantes hodiernos, que logo se fartam da prolixidade de datas, nomes e eventos que em nada lhes interessa.
Voltaire também concordava com essas observações, mas, ao contrário da mesma, ela via a importância da História no contexto geral do conhecimento humano. E foi para harmonizar essa necessidade com aquelas críticas, que ele decidiu reescrever a disciplina, modificando o seu objeto de estudo e o próprio estilo literário para torná-la prazerosa.
Para tanto, ele decidiu acrescentar Filosofia às narrativas, traçando abaixo do fluxo de acontecimentos narrados, os pensamentos humanos que os causaram. A seu ver, a solução estaria em não apenas narrar os fatos, mas em ir além e investigar as causas, os motivos que o causaram e as consequências que dele resultaram. Em suas palavras:

“Só os Filósofos deveriam escrever História. (...) Em todas as nações, a história é desfigurada pela fábula, até que por fim a Filosofia vem iluminar o homem; e quando finalmente ela chega em (sic) meio a essa escuridão, encontra a mente humana tão cega por século de erros, que dificilmente pode desenganá-la; encontra cerimônias, fatos e monumentos empilhados para provar mentiras. (...) A história, afinal de contas, nada mais é do que uma série de peças que pregamos nos mortos. (...) Transformamos o passado para que fique de acordo com os nossos desejos para o futuro, e o resultado final é que a história prova que qualquer coisa pode ser provada pela história”.

Logo após a idealização do projeto ele começou um árduo trabalho de pesquisa que o levou a se debruçar sobre centenas de livros, de manuscritos, cartas, diários e tudo que pudesse contar a história real, sem as falcatruas oficiais que habitualmente lhe são colocadas.
Estudou minuciosamente alguns volumes oficiais, como, por exemplo, “História da Rússia”, “História de Carlos XII”, “A Era de Luis XIV”, “A Era de Luis III” e os outros a que teve acesso. Porém, o estudo desses compêndios sempre foi acompanhado do extremo zelo de confrontar as versões que eles apresentavam com as que ele recolhia em suas outras fontes acima citadas, nos documentos oficiosos, nos documentos apócrifos e, até, com as narrativas dos eventuais sobreviventes dos fatos estudados.
Um trabalho de garimpeiro, tal a sua volúpia; e de joalheiro, tal a sua precisão. E que não terminou nem mesmo após a publicação da obra, pois ele fazia, em cada nova edição, as correções que surgiam.
Após a coleta inicial de dados, ele partiu para a redação do texto usando como critério principal a seleção dos fatos, pois, a seu ver, a prolixidade de minúcias não seria desejável pelos motivos que já se citou, além de apenas repetir as obras que já existiam. Segundo ele:

“Detalhes que não levem a nada são, para a história, o que a bagagem é para um exército: impedimenta; temos de olhar para as coisas em grande escala, pela simples razão de que a mente humana é muito pequena e afunda sob o peso das minúcias”.

Assim, em seu ponto de vista, dever-se-ia adotar a diagramação usada para compor um Dicionário e dispor os fatos, realmente importantes, em determinada ordem (alfabética, cronológica etc.) para que o leitor pudesse ir diretamente ao ponto que lhe interessasse. Ter-se-ia, pois, um “Dicionário Histórico” semelhante a um léxico de palavras.
Mas, o seu objetivo real não se resumia em criar facilidades para o leitor. O que ele queria, de fato, era encontrar um principio unificador que entrelaçasse a história de toda a Europa. Um “fio” que unisse “todas as histórias”. E esse “fio” seria a “Cultura” ou, melhor, a “História da Cultura”.
Por isso, a sua obra não trata do General sicrano, do Político beltrano, da Batalha tal, etc. Ela focaliza o “movimento”, “as forças”, “as massas”. Não disseca a natureza das nações, mas, sim, a natureza da espécie humana; não se debruça sobre as guerras, os armistícios, os conchavos etc., mas, sim, sobre a marcha, o desenvolvimento da mente do homem. Para ele:

“As batalhas e as revoluções são a menor parte do plano; esquadrões e batalhões conquistando ou sendo conquistados, cidades tomadas e retomadas, são comuns a toda história. (...) Tirem as artes e o progresso da mente, e nada encontrarão (em qualquer era) de notável que seja suficiente para atrair a atenção da posteridade. (...) Quero escrever uma história, não de guerras, mas da sociedade1; e apurar como viviam os homens no seio de suas famílias e quais eram as artes que costumavam cultivar. (...) Meu objetivo é a história da mente humana, e não um mero detalhe de fatos insignificantes; tampouco me preocupo com a história de grandes senhores...; mas quero saber quais os passos pelos quais os homens passaram do barbarismo para a civilização”.

Uma guinada de 360º na historiografia de então que se constituía, basicamente, de narrativas, nem sempre fiéis aos fatos, e de glorificações a quem tivesse o poder de escrevê-la.
E, por isso, talvez inconscientemente e ainda involuntariamente, ele tenha colocado mais lenha na grande fogueira que se iniciava e que culminou com a derrocada do Absolutismo, cujo exemplo clássico é a queda da dinastia dos Bourbons na Revolução Francesa. E talvez também inconscientemente, tenha feito a primeira “Filosofia da História”; ou seja, a primeira sistematização de “causa e efeito” no desenvolvimento da mente europeia. A primeira busca pela “essência” do acontecimento.
E como essa “essência” só pode estar na natureza concreta, na física, o abandono das “causas metafísicas (Deus mandou exterminar os mouros, por exemplo)” foi automático. E foi, justamente por esse abandono, que na obra o Iluminismo se mostrou de forma mais cristalina. Mostrou claramente o poder da Razão, das Luzes, do Saber racional, vencendo as sombras da superstição teológica e política. “Iluminação” de tamanha magnitude que para vários Pensadores, foi o livro de Voltaire que deu a base da moderna ciência histórica. Eruditos do porte de Gibbon, Niebuhr, Buckle, Grote e outros, são, certamente, seus agradecidos discípulos.
Porém, como sempre acontece, esse reconhecimento só aconteceu a posteriori, pois, na época, o trabalho de Voltaire suscitou apenas temor e ressentimento, do qual resultou o exílio citado no inicio.
Afinal, o “maior de seus livros” ofendeu a praticamente todos os segmentos da sociedade. Algumas pessoas se sentiram diretamente atingidas, enquanto outras, indiretamente, pois se o Clero foi particularmente afrontado pela adoção que o filósofo fez dos seguintes pontos de vista:

1. A fulminante conquista do paganismo pelo Cristianismo, paradoxalmente, enfraqueceu o poder de Roma, deixando-a vulnerável aos bárbaros invasores2;
2. Pelo desdém que ele dedicou à Judeia e à doutrina cristã, para tratar com muito mais cuidado e amplitude das religiões orientais (sem esboçar qualquer restrição àquelas fés que eram consideradas demoníacas), tornando, assim, os dogmas católicos apenas relativos e não mais absolutos.

Os pobres e ignorantes homens do povo ressentiram-se por ele ter-lhes tomado um objeto de fé, de devoção, que os consolava de suas inumanas condições de vida, sem lhes oferecer nada em troca.
Ademais, de chofre, a Europa como um todo, viu que o Oriente e a Cultura oriental eram maiores que ela mesma. Que ela estava longe de ser o “centro do mundo”, como se imaginava.
Portanto, nada mais previsível que todo europeu passasse a ver em Voltaire um traidor, um inimigo a ser banido. E o rei o baniu.

Nota do autor1 – o leitor não deixará de perceber nesse trecho a semente das disciplinas de Sociologia e de Antropologia. E não estará errado em creditar ao filósofo o desenvolvimento posterior de ambas.

Nota do Autor2 – posteriormente o historiador Gibbon (Edward – 1737-1794 – Grã Bretanha) retomou o assunto, consolidando a tese voltariana.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de Comunicação com o Público. Rio de Janeiro, inverno de 2014.

domingo, 14 de setembro de 2014

Reflexos


Óleo sobre tela de Thyago Marão Villela

O antigo espelho embaçado
só reflete as faces esquecidas
e o ladrilho já não repousa
o desejo saciado.
Ficaram frias as paredes polares
e a maresia que entra pela janela
já não conta as histórias
do mundo de tantos lugares.
Quebraram-se os penates,
inúteis deuses de tantos lares.

Agora, só nos resta esperar
por novo acorde da avena
e a tentativa de outra cena
nessa tragédia de três atos
onde se desenrolam
nossos amores insensatos.


Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de Comunicação. Rio de Janeiro, inverno de 2014.


sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Voltaire e o Iluminismo francês - Parte III - Cartas sobre os Ingleses


Ainda que de inicio tenha detestado o idioma inglês, Voltaire não tardou a dominá-lo e a partir daí desfrutou com prazer do melhor da literatura britânica.
Através do Lorde Bolingbroke conheceu vários literatos de escol, dentre os quais o reverenciado Swift, cuja causticidade era assaz temida. E esse contato com a escrita inglesa fascinou-o, não só pela sua excelente qualidade, mas, também e principalmente, pela liberdade de que gozava. Escritores como os citados e outros, como Pope, Addison etc. dispunham de total independência para escreverem sobre o que quisessem, sem sofrerem a menor pressão.
E tal liberdade não se esgotava na literatura, já que o povo gozava do direito de ter opinião própria a respeito de assuntos religiosos e políticos; sendo-lhe, portanto, possível refazer a sua crença religiosa; executar o seu antigo rei e com ele o ranço do Absolutismo e construir um real sistema democrático através do Parlamentarismo efetivo, que lhe assegurava proteção e liberdade individual, bem como a dignidade de cidadãos.
Não lhes oprimia a sombra ameaçadora da Bastilha, instrumento de uso comum pelos nobres e pelo clero francês para perseguir quem ousasse discordar de suas falcatruas e injustos privilégios, mantidos sob a capa da superstição religiosa e política.
Ao contrário, ali, na Ilha, havia trinta religiões, mas nenhum sacerdote opressor. Nem mesmo os sinceros e honestos Quacres, famosos pelo seu ortodoxismo religioso, incomodavam quem pensasse diferente. Aliás, esses mesmos Quacres marcaram-no de modo especial por praticarem de forma pura os dogmas do Cristianismo. E essa admiração ele fez questão de consignar em seu célebre “Dicionário Filosófico” com os seguintes termos:
(segundo um quacre): nosso Deus, que nos mandou amar nossos inimigos e sofrer o mal sem reclamar, certamente não deseja que atravessemos o oceano para irmos cortar a garganta de nossos irmãos porque assassinos de fardas vermelhas e chapéus de setenta centímetros de altura convocam cidadãos fazendo barulho com duas vaquetas sobre a pele de um asno”.
E a sua simpatia pelos ingleses cresceu com o correr do tempo, pois a Grã Bretanha vivia uma época de ouro em termos intelectuais, com os devidos reflexos sociais. Eram dias em que o filósofo Bacon ainda estava tão presente no espírito inglês, quanto estivera em seu auge. Em que o filosofo Hobbes (1588-1679) fundiu com absoluto sucesso o Ceticismo da Renascença com sua convicção acerca da praticidade e, com isso, criou um estupendo sistema Materialista. Em que o filósofo Locke (1632-1704) escreveu a obra-prima “Ensaio sobre a compreensão humana”, que se tornou um farol para o pensamento moderno. Em que Collins, Tendal e outros reafirmaram o Deismo1 em oposição às falcatruas da religião oficial. Dias em que o grande Sir Isaac Newton ainda vivia em toda a sua glória.
Era, com efeito, uma época realmente privilegiada e Voltaire não escapou de seus encantos. E ávido por absorver todos aqueles conhecimentos, ele não mediu esforços para abarcar todo o tesouro que se lhe oferecia. Assim, graças ao seu talento, à sua natural e superior inteligência e ao seu interesse sempre renovado, ele conseguiu absorver todas aquelas luzes e, depois, moldá-las ao espírito francês, registrando-as em sua obra, “Carta sobre os Ingleses”, cujo manuscrito circulou primeiramente apenas entre os íntimos, já que o filósofo não se dispunha a publicá-la por temer a censura oficial que, certamente, implicaria com os elogios que ele fazia à “perpétua inimiga”, à “pérfida Albion”.
Afinal, a exposição que ele fazia acerca da liberdade de que dispunham os ingleses, comparada com a opressão política e religiosa de que padeciam os franceses, bastaria para que fosse taxado de “traidor”, “incitador de rebeliões” e sandices do gênero que são comuns nas tiranias. É indubitável que seria ferozmente perseguido pela Nobreza e pelo Clero, haja vista que as suas ideias poderiam ameaçar o recebimento de dízimos, tributos etc., bem como a manutenção dos indevidos e injustos privilégios que essas Classes gozavam a partir da exploração dos mais humildes ou desesperados. Exemplos dessas perseguições não faltavam, como se pode ver a seguir5:
1)       Diderot ficou preso seis meses pela sua Carta sobre o Cego.
2)       Buffon, em 1751, foi obrigado a se retratar publicamente por suas aulas sobre a antiguidade da Terra;
3)       Freret foi mandado para a Bastilha por ter feito um levantamento critico sobre as origens do poder real na França;
4)       Em 1757 um édito decretava a pena de morte para qualquer autor que “atacasse a religião” ou questionasse qualquer dogma da fé tradicional
5)       Etc.
Porém, o Regente real desconhecia a “Carta sobre os ingleses” graças à sua circulação restrita e concedeu-lhe anistia, permitindo o seu regresso. E Voltaire voltou a desfrutar da noite parisiense por cerca de cinco anos, relativamente tranquilos.
Todavia, um editor inescrupuloso, à revelia do filósofo, publicou a obra e a vendeu por todo o país. O impacto em todos os segmentos da sociedade foi avassalador, não faltando as indefectíveis fogueiras onde se queimaram os “exemplares malditos”; as censuras burguesas; as excomunhões religiosas e as perseguições governamentais. Conseguintemente, não tardou a ordem de prisão contra o “autor da vil infâmia que prega a descrença na religião e a insubordinação às autoridades”. Ao filósofo não restou alternativa que não fosse fugir. E Voltaire, para ser fiel ao seu estilo, empreendeu a fuga em companhia de sua nova amante, com o consentimento tácito do marido da mesma.
A jovem e bela amante era a Marquesa du Chatelet, que além dos dotes físicos era uma intelectual de primeira grandeza. Sua inteligência superior e a sua vasta cultura podiam ser admiradas na erudita tradução que fez da obra de Sir Isaac Newton “A Principia Mathematica” e em seus altos estudos de matemática com os célebres catedráticos Maupertius e Clairaut. Aliás, por conta dessas suas extraordinárias qualidades, assim como as de outras tantas mulheres da época, Voltaire tornou-se um ferrenho defensor da tese que propunha haver absoluta igualdade intelectual entre os dois gêneros. Talvez, ele tenha sido um dos primeiros feministas declarados e influentes, num tempo em que nem se cogitava tal isonomia.
E além da admiração, Voltaire dedicava à amante um amor sincero e cheio de gratidão pelo desprendimento da jovem que nunca titubeou em acompanhá-lo e que lhe proporcionava magníficas instalações em seu castelo de campo.
Assim, o casal viveu belos momentos na propriedade que a Marquesa possuía na localidade de Cirey2, sem ser incomodado pelas questiúnculas políticas partidárias e tampouco pelo marido da moça, que se casara apenas por conveniência, como era habitual à época.
Seus dias eram divididos entre os amores e os trabalhos intelectuais que ambos desenvolviam, dos quais, aliás, não se apartavam nem para receber os convivas que em pouco tempo tornaram-se frequentes, atraídos pela inteligência e espirituosidade de ambos, que brindavam os comensais, após a ceia, com as leituras, as representações e as declamações que Voltaire fazia.
Em pouco tempo o castelo de Cirey tornou-se um referencial para a vida intelectual francesa, causando ao filósofo a saborosa sensação de ser o centro das atenções. E essa conjunção de fatores positivos serviu-lhe como poderoso estímulo à criatividade e lhe rendeu a necessária inspiração para produzir os deliciosos romances que criticavam as hipocrisias individuais e as sociais; bem como, as incongruências governamentais e religiosas. Textos profundos, mas sempre servidos com a necessária dose da mais fina e inteligente ironia.
Foi o parto de preciosidades como Zadig, Cândido, Micromégas, L´Ingenu, Le Monde, Comme Il Va etc. Perfeitas expressões do gênio voltariano, cada uma dessas obras traz a elegância ferina de sua pena nas denúncias que faz à mediocridade, à ignorância e ao embrutecimento primitivo que ainda vive em todo Ser humano.
Nelas, os heróis não são pessoas, reis, guerreiros, generais. São, sim, as ideias esclarecidas, iluminadas; enquanto que os vilões são a ignorância, a superstição, o atraso intelectual, ético, artístico etc.
Vê-se, por exemplo, em “Le Ingenu” o quão contraditório e carente de sentido são os ritos católicos e o quanto são absurdos os rituais sociais do casamento, entre outros. O livro expõe com muita picardia as contradições entre o formalismo religioso e a generosidade pura dos chamados “selvagens” ou “inocentes, ingênuos”.
Em “Micromégas” ele continua a explorar esse filão, mas, agora, sob o ponto de vista de gigantescos extraterrestres oriundos de Sirius e de Saturno, que ao chegarem a Terra julgam que os homens sejam criaturas apenas espirituais, posto que a matéria que os compõe é quase que inexistente de tão ínfima. E julgam que por isso, os terráqueos estariam isentos dos desejos e dos pecados. Entre considerações sobre o Tempo e Espaço em seus respectivos mundos, os alienígenas retiram uma embarcação do Mediterrâneo, que só lhes banha o calcanhar, e entabulam um diálogo surreal com os navegantes, do qual, transcrevemos os seguintes trechos:
“Ó átomos inteligentes, nos quais o Ser Supremo houve por bem manifestar sua onisciência e seu poder, não há dúvida de que seus prazeres nesta Terra devem ser puros e requintados; pois, livres da matéria e – ao que tudo indica – sendo pouco mais do que alma, devem passar a vida nas delicias do prazer e da reflexão, que são os verdadeiros deleites de um espírito perfeito. Em parte alguma encontrei a verdadeira felicidade; mas sem dúvida é aqui que ela mora”.
“Temos matéria suficiente, respondeu um dos filósofos, para praticarmos o mal em abundância. (...) Deveis saber, por exemplo, que neste exato momento, enquanto falo, existem cem mil animais de nossa espécie cobertos com chapéus, matando um igual (sic – na.) número de semelhantes vossos que usam turbantes; pelo menos, estão ou matando, ou sendo mortos; e de modo geral tem sido assim por toda a Terra, desde tempos imemoriais”.
“Patifes! Gritou o indignado siriense; estou pensando em dar dois ou três passos e esmagar sob meus pés toda a ninhada desses assassinos ridículos”.
“Não vos deis a esse trabalho, replicou o filósofo, eles tem competência suficiente para conseguir a própria destruição. Ao cabo de dez anos, a centésima parte desses malditos não irá sobreviver. (...) Além disso, o castigo não deve ser aplicado a eles, mas aos bárbaros sedentários e indolentes que, de seus Palácios, dão ordens para o assassinato de milhões de homens e depois, solenemente, agradecem a Deus pelo sucesso”.
Mais do que qualquer Tratado solene e formal sobre a relatividade das coisas e dos conceitos, este texto leve e irônico, apresenta o assunto com soberba clareza. Sob a saborosa hilaridade voltariana repousa a verdade cristalina das regras e dos valores que regem o mundo. O absurdo das convenções e incitações (patriotismo, honra ferida etc.) é mostrado de forma irretorquível em sua condição de instrumento que os “Donos do Mundo” usam sordidamente para explorar o restante da humanidade.
Em Zadig, Voltaire conta a história de um epônimo filósofo babilônico “que sabe tanto de Metafísica, quanto é possível conhecer; ou seja, nada”. Por esse início, o filósofo já antecipa a sua descrença em todos que se proclamam “arautos do céu ou de Deus”, como é comum em todos os padres, pastores, pais de santo etc. Ademais, deixa clara, também, a sua descrença na própria Metafísica. Na sequencia da obra, a sua censura se volta para o comportamento humano, cujo móvel principal é apenas o interesse próprio e rasteiro, sendo falsos os sentimentos de honra, solidariedade, generosidade, lealdade etc. que, em geral, os homens julgam possuir. E os exemplos que ele cita de tais comportamentos são tão revestidos de realismo, que as suas personagens ficam ao alcance do leitor como se fossem as pessoas com quem ele convive no seu cotidiano. Por tudo isso, cabe-lhe o merecido crédito de ter escancarado a realidade nua e crua que os autores (de antes e de agora) buscam esconder, enquanto, paralelamente, demonstra toda a genialidade de seu estilo.
E, com essas e muitas outras pedras preciosas, a fama da “nova Atenas” cresceu continuamente e a celebridade de Voltaire logo ultrapassou as fronteiras francesas e ele passou a manter copiosa correspondência com intelectuais estrangeiros.
Dentre estes, destacava-se o príncipe austríaco Frederico, que depois viria receber o epíteto de “O Grande”. O primeiro contato entre ambos aconteceu em 1736 e ficou caracterizado pelo tom reverente e quase servil com que Sua Alteza se dirigiu ao filósofo, sinalizando, assim, o tamanho da reputação que Voltaire já conquistara, mesmo sem ter, ainda, escrito as suas obras primas. Reverência, diga-se, sincera, pois o jovem príncipe era um amante das letras e das artes e pretendia tornar-se um brilhante e culto intelectual.
E Voltaire viu que nele estava a grande oportunidade de elevar a mentalidade dos governantes, tornando as relações políticas mais racionais, justas e harmoniosas, tanto no aspecto interno, quanto no externo.
Mas, a sua esperança no presumido pacifismo de Frederico durou pouco tempo, pois tão logo o príncipe assumiu o trono, invadiu a Silésia4 e mergulhou a Europa em uma sangrenta guerra.
Contudo, malgrado essa guerra, o relacionamento entre o filósofo e o príncipe prosseguiu por vários anos.
Enquanto isso, a sua relação com a Marquesa du Chatelet esfriava paulatinamente, embora ela ainda o acompanhasse na viagem que ele fez a Paris, em 1745, para tentar uma vaga na Academia Francesa que o recusou, apesar do apoio da amante e dos amigos, bem como das concessões a que ele se obrigou (chegou até mesmo a se declarar um “bom católico”).
Ele teve que aguardar até o ano seguinte para conquistá-la e na ocasião da posse fez o célebre discurso que ainda hoje é reputado como um dos textos mais importantes da literatura mundial. Finalmente empossado, permaneceu na capital por algum tempo, dividido entre os salões sociais e a criação de peças teatrais.
Entrementes, a relação com a Marquesa deteriorou-se completamente e em 1748 ele o trocou pelo belo e jovem Marquês de Saint-Lambert. Voltaire ficou transtornado, mas quando o jovem pediu-lhe perdão, ele se enterneceu e abençoou o casal, pois a maturidade já o havia alcançado e não lhe foi difícil resignar-se à Lei da vida. Porém, a Marquesa du Chatelet não sobreviveu por muito mais tempo, vindo a falecer por complicações em um parto; e essa tragédia, sim, o abalou profundamente. Dela, só refez após viver um largo tempo em profunda melancolia.
Foram decisivos para que voltasse à sanidade, a imersão que fez no trabalho que vinha desenvolvendo, “Siécle de Louis XIV”, e o convite que recebeu de Frederico, o Grande para que passasse algum tempo em sua Corte.
Lá, a recepção calorosa, a acomodação nababesca e a companhia de intelectuais brilhantes fizeram-no viver um de seus melhores momentos. Dava-se até o Direito de fugir dos compromissos formais, para estar sempre presente nos saraus que o monarca comandava todas as noites, na hora da ceia.
Um grupo de Pensadores de altíssimo nível que podia discutir qualquer assunto e externar qualquer argumento sem temer qualquer censura ou repreensão, pois o imperador Frederico admirava-lhes o gênio, a cultura, a inteligência e via naquela plêiade uma oportunidade de se tornar o poeta e filósofo que sempre ambicionara ser.
E a bela temporada foi passando entre os acepipes e as altas conversações até que em novembro daquele ano o filósofo decidiu investir em ações e títulos de crédito austríacos, mesmo sabendo que isso lhe era proibido por ser estrangeiro. Investiu uma soma considerável e obteve um alto rendimento, mas o seu corretor, chamado Hirsch, o chantageou visando tomar-lhe uma parte dos lucros. Ante a ameaça de ser delatado ao imperador, Voltaire agrediu o agente com violência e o caso chegou ao conhecimento de Frederico, que ficou furioso e decidiu livrar-se do hóspede “tão logo tivesse sugado tudo que pudesse”, como disse ao seu assessor Mettrie, o qual, desejoso de afastar qualquer um que pudesse fazer-lhe sombra junto ao trono, não tardou em contar a Voltaire a decisão do imperador.
As ceias e os saraus ainda prosseguiram por mais algum tempo, mas Voltaire já sentia o peso do infortúnio e a ruptura definitiva aconteceu quando ele tomou partido a favor do matemático Koenig (em uma discussão acerca de uma proposição de Isaac Newton), contra o também matemático Maupertuis, apoiado por Frederico.
O fato, irrelevante a principio, tomou maiores proporções quando ele, para satirizar o oponente escreveu a famosa peça “Diatribe do Dr. Akakia”, que, embora tenha provocado sonoras gargalhadas no imperador, foi proibida pelo mesmo por “atentar contra as Instituições”.
Todavia, a peça já estava na gráfica e Voltaire recusou-se a suspender a sua produção e tão logo ela chegou ao público, Frederico sentiu-se irado e traído e o filósofo fugiu para Frankfurt, onde a jurisdição real, em teoria, não o alcançaria.
Mas, alcançou. E logo ele recebeu a visita de dois agentes austríacos que exigiam a devolução de um poema escrito pelo imperador, em momento de pilhéria, cujo conteúdo não poderia vir a público por não ser adequado à imagem real, quer pelo linguajar chulo, quer pela temática que abordava.
Porém, o manuscrito havia se extraviado durante a mudança rápida que ele havia empreendido e, assim, até que fosse encontrado ele permaneceu quase que prisioneiro por algumas semanas, durante as quais, aliás, ele esmurrou com violência um livreiro que insistiu em lhe cobrar uma divida antiga.
Por fim foi libertado, mas ao tentar voltar para Paris foi avisado de que estava oficialmente exilado. Surpreso, perambulou por alguns lugares e acabou adquirindo em uma antiga propriedade, chamada de “Les Delices”, nos arredores de Genebra em fins de Março de 1754.
E foi ali que, para muitos estudiosos, ele compôs a série de suas maiores obras, sobre as quais falaremos na sequência.

 Nota do Autor1Deismo – sistema teológico que aceita a existência de Deus, mas que rejeita qualquer tentativa de enquadrá-lo nas características humanas, como tentam fazer as Religiões ao criarem a figura do “Deus Pai”, ou “Deus General dos Exércitos”, “Deus vingativo ou bondoso” etc.

Nota do Autor2 – Cirey – localidade situada no Nordeste da França, na região administrativa de Champanha Ardenas.

Nota do Autor3 - Foi, como se vê, uma época em que a sua produção atingiu níveis superlativos. E para alguns (inclusive este escrevinhador) foi de sua pena que brotou o protótipo para a posterior literatura “Realista” francesa que teve em gênios como Vitor Hugo, Flaubert, Zola etc. um de seus ápices.

Nota do Autor4 – Silésia, região histórica, dividida entre as atuais Republica Checa, Polônia e Alemanha.

Nota do Autor5 - Contudo, a simples existência daquela obra é vista por muitos estudiosos como o “primeiro canto do galo” da Revolução que viria a acontecer em 1789.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de Comunicação com o Público. Rio de Janeiro, inverno de 2014.