segunda-feira, 31 de agosto de 2015

DR. FAUSTO, Gounod - Óperas, guia para iniciantes


Autoria – Gounod (Charles – 1818-1893 – França).
Libreto – Jules Barbier e Michel Carré

Personagens

Fausto – velho e sábio cientista e filósofo. Interpretado por um Tenor.
Mefistófeles – o demônio. Interpretado por um Baixo.
Wagner – jovem amigo de Valentino. Interpretado por um Baixo.
Margarida – a mais bela jovem da aldeia, seduzida por Fausto. Interpretada por uma Soprano.
Valentino – irmão de Margarida. Interpretado por um Barítono.
Siebel – jovem namorado de Margarida. interpretado por uma voz Mezzo Soprano.
Marta – vizinha de Margarida. Interpretada por uma Mezzo Soprano.

Local e época

Alemanha, meados da Idade Média.
Enredo

O primeiro ato é encenado na réplica de um sombrio laboratório onde o velho e sábio cientista e filósofo, Dr. Fausto, estuda e trabalha.
Uma dura rotina que praticamente permeou toda a sua existência sem lhe trazer reconhecimento, fama e fortuna. Uma vida sem aventuras, sem prazeres, compensações, amores, amizades e outras maneiras de satisfação.
Apenas trabalho e um enorme acúmulo de saber que, segundo ele, a rigor, de nada lhe serviu.
A baixa iluminação indica que a noite avança célere e a sensação de inutilidade, de amargura e de frustração já não lhe cabe no peito e ele expressa toda a sua triste condição ao entoar a sofrida ária em que questiona a validade de tanto conhecimento, de tanto labor.
Dolorosos suspiros encerram a sua melodia e ele leva aos lábios o veneno com que pretende terminar os seus dias infelizes, mas o alegre alarido que lhe chega das ruas, por conta dos cantos e risos das belas jovens que festejam a nascente manhã de Páscoa, faz com que seu gesto fique suspenso por instantes, nos quais ele sente aumentar o seu rancor em face da alegria alheia. Tanta juventude, tanto vigor, tanta felicidade para todos os outros, menos para si.
Amarga constatação que o leva a blasfemar e a invocar as “Forças das Trevas”, pois já não pode acreditar nas virtudes do Bem.
E a resposta chega imediatamente através de um grande estrondo que anuncia a chegada de Mefistófeles, transfigurado em um elegante cavaleiro.
Fausto não consegue conter um grito de pavor e resgatando um resto de princípios religiosos tenta expulsar o “Anjo das Trevas” com insistente “sinais da cruz” e orações, mas Mefistófeles se recusa rudemente a partir, alegando ter vindo de tão longe apenas porque foi chamado e que, portanto, não admite ser enxotado daquela maneira.
Depois, de modo mais polido, oferece-se a Fausto como um “amigo” capaz de lhe proporcionar todos os prazeres desse mundo, como rejuvenescimento, beleza, saúde, fortuna, amores etc., desde que ele lhe entregue a alma ao fim da vida.
Fascinado com a perspectiva de obter tanto prazer o velho cientista não mensura as terríveis consequências de sua opção e pede: “juventude e prazer”.
Mefistófeles não perde tempo e magicamente faz materializar no despojado quarto a figura radiosa de Margarida, a mais bela jovem da cidade.
Fausto entusiasma-se com a aparição e com a demonstração de poder do “Emissário do Inferno” e este não perde a oportunidade de lhe oferecer o contrato em que Fausto lhe cede a alma em troca dos prazeres mundanos.
Após uma breve hesitação, o velho cientista assina o terrível documento e Mefistófeles lhe dá uma estranha bebida, que o torna jovem, belo e rico. Um verdadeiro cavaleiro da mais alta estirpe.
Eufórico com a sua nova estampa e condição, Fausto aceita de bom grado ao convite do “Anjo Maligno” para saírem em busca dos prazeres do mundo.
Caminham felizes como uma dupla de ébrios e Fausto entoa a ária “Moi Les Plaisirs (A mim, os prazeres)”, encerrando o primeiro ato.

§§§

O segundo ato é ambientado na praça do mercado de uma típica cidade medieval alemã, onde uma quermesse congrega quase todos os aldeões.
À esquerda do cenário, avista-se a reprodução de uma taberna, cujo letreiro é composto pela imitação de uma barrica de vinho, abaixo do nome do estabelecimento.
No centro da cena, camponeses brincam e dançam, sem, no entanto, olvidarem completamente de um triste acontecimento que irá modificar a suas pacíficas rotinas, vez que um destacamento de filhos da terra foi convocado para a guerra.
Acontecimento, aliás, que faz com o jovem Valentino entoe a sofrida ária “Avant de Quitter ces Lieux (Antes de deixar estes lugares)”, pois, sendo um dos convocados, mais que a morte, teme a sorte de sua irmã, a bela Margarida.
E tão grande é a preocupação e a angústia que demonstra, que o jovem Siebel, namorado da moça, promete-lhe cuidar da mesma como se ela fosse a sua própria irmã. Outro amigo, Wagner, também o tranquiliza e ao cantar uma alegre canção consegue amenizar o clima pesado.
Pouco depois, um cavaleiro, elegantemente trajado, interrompe a canção de Wagner, dizendo saber outra música que mais alegrará o ambiente; e sem esperar o consentimento dos demais, inicia “Le Veau D´or (O bezerro de ouro)”, que faz grosseiras críticas à fé cristã, enquanto exalta as virtudes do ouro.
O teor da ária causa estranheza e repulsa nos ouvintes, mas, ainda assim, as pobres almas, presas aos liames da ignorância e da superstição, permitem que o “Enviado de Lúcifer” “leia-lhes a sorte”.
São vaticínios sombrios, aziagos, funestos, mas quando Mefistófeles faz jorrar vinho da figura no letreiro da taverna e com ele propõe um indecente brinde à Margarida, a multidão esquece-se dos maus prognósticos e volta a festejar alegremente.
Contudo, nem todos participam daquele momento alvissareiro, pois Valentino não pode aceitar o ultraje feito, naquele brinde, à reputação de sua irmã Margarida e desafia o cavaleiro insultante para um duelo. É o bastante para que o “Príncipe do Mal” use os seus poderes infernais e quebre a espada do desafiante em vários pedaços.
É um claro sinal de que o estranho não é um homem comum e os camponeses recuam aterrorizados, pois percebem estarem diante de um “Ser Infernal”. Valentino, por sua vez, recorre à arma que lhe resta, a fé cristã, e faz o tradicional “sinal da cruz”, sendo imitado por todos.
Ante aquela demonstração de crença no Poder de Deus, Mefistófeles se desconcerta e não vê alternativa que não seja retirar-se.
A festa, então, recomeça e a orquestra executa uma valsa. Fausto aproxima-se de Margarida e a convida para dançar, porém a timidez da moça faz com que recuse o convite, apesar de ter-se encantado com a bela estampa e com a fidalguia de seu pretendente.
Fausto, por sua vez, fica ainda mais encantado com a beleza e graciosidade da jovem e expressa toda essa paixão na ária “O Belle Le Enfant! Je T´aime”, que encerra o segundo ato.

§§§

O terceiro ato é ambientado na réplica do jardim da casa de Margarida, onde se pode avistar, por certo ângulo, a residência em si e, por outro, a torre de uma igreja. Em primeiro plano, avista-se um belo roseiral.
De início a orquestra executa um breve prelúdio e logo em seguida surge Siebel, que do alto de sua pureza juvenil pede às flores que trouxe que digam à namorada, o quanto ele a ama (Faites lui mes aveux), retirando-se em seguida.
Na sequência entram Fausto e Mefistófeles e enquanto o primeiro entoa a ária “Salut! Demeure Chaste et Pure (Salve, lar casto e puro)”, o segundo sai de cena para retornar pouco depois com um luxuoso estojo com várias joias, para que Fausto presenteie Margarida, garantindo-lhe que ela irá recebê-las com muito mais prazer, que às pobres flores deixadas por Siebel.
Sem questionar, Fausto ajuda-o a acomodar o rico presente à porta da casa, rente às flores, e ambos saem de cena.
Instantes depois, Margarida vai ao jardim e se põe a divagar sobre aquele estranho que mexeu com as suas emoções e ao cantar a bela ária “Balada do Rei de Thule” deixa claro o quanto ele lhe agradou.
Finda a ária, ela levanta-se da roca de fiar, onde estivera, e descobre as flores e as joias. Exultante, não reprime a vaidade e se orna com as últimas, admirando-se em um pequeno espelho. Sem poder conter-se, ri de si mesma e entoa a ária “Je Ris de me Voir” e acaba sendo surpreendida por Marta, sua vizinha, que não regateia elogios à sua beleza, aumentada pelo esplendor das ricas peças de ouro e de diamante.
É um momento de comunhão e de alegria para ambas, mas a descontração do momento logo é interrompida pela chegada de Fausto e de Mefistófeles.
Enquanto o “Anjo do Mal” procura afastar Marta, usando delicados subterfúgios, Fausto aproxima-se de Margarida, a quem cobre de elogios e galanteios.
Nisso, a noite começa a cair e Mefistófeles entoa a ária “Oh Nuit Étend Sur Eux ton Ombre (Oh, noite estende o seu manto sobre eles)”, procurando acender a paixão no casal, que passeia pelo jardim. E, com efeito, a paixão entre ambos já não pode ser negada ou ocultada e o dueto “Laisse Moi Contempler ton Visage (Deixa-me contemplar o teu rosto)” parece, ingenuamente, celebrar a pureza de um novo amor.
Contudo, apesar da força de sua paixão, Margarida ainda é prisioneira dos costumes da época e por isso impede que Fausto avance além de certo limite, despedindo-se do mesmo sob o argumento de que é chegada a hora de se recolher.
Uma atitude que em nada desagrada ao apaixonado Fausto, que vê em seu recato e em sua meiguice mais motivos para desejá-la. Sentindo-se leve e feliz, despede-se e se prepara para partir quando é rudemente interpelado por Mefistófeles que lhe acusa de ser um tíbio que não ousa aproveitar as oportunidades que surgem.
Desconcertado, Fausto aceita a crítica e a sugestão de permanecer oculto no jardim para que possa ouvir Margarida confessar o amor que lhe dedica.
E, com efeito, através da ria “Il M´Aime – que o grande compositor Berlioz classificou como o ápice da obra”, ela expõe, sem pudor, todo o afeto que sente pelo recém chegado.
Para Fausto é o bastante e com o vigor que a nova juventude lhe deu, salta pela janela e a beija e abraça apaixonadamente, para contentamento de Mefistófeles, que com uma cínica gargalhada encerra o terceiro ato.
§§§
O quarto ato é encenado na reprodução do interior de uma igreja.
Algum tempo já transcorreu desde o primeiro beijo entre Fausto e Margarida. Depois, ela se entregou completamente a ele, que, uma vez saciado, desinteressou-se e a abandonou.
Execrada pela comunidade, afastada da família, a pobre Margarida busca através de orações e penitencias o perdão dos homens e o de Deus, mas, ainda que seu arrependimento seja sincero, ela não encontra paz, sendo constantemente atormentada pela maligna voz de Mefistófeles, que repete continuamente que a sua Alma já está condenada ao fogo do Inferno.
Extra cena, um Coral entoa o vigoroso hino “Dies Irae” e um segundo Coro canta músicas com teor demoníaco. A eterna luta entre o Bem e o Mal, em meio a qual se eleva a voz angustiada de Margarida em contínua oração, contra a de Mefistófeles em perpétua condenação.
É um momento tenso, pesado e num crescente de excitação, culpa e busca pela redenção, Margarida perde as forças e após um grito lancinante cai desacordada ao solo, do qual só é erguida quando outros devotos da congregação chegam ao Templo para os ofícios religiosos.
E assim termina a primeira cena.
A segunda cena é ambientada na réplica da praça fronteira à casa de Margarida.
Ao fundo se escuta as fanfarras militares e os gritos do povo que saúda os soldados retornados da guerra.
Liderando o batalhão, Valentino, o irmão de Margarida, marcha gloriosamente. Desfilam garbosamente até que em certo ponto estacionam e a soldadesca entoa o famoso “Coro dos Soldados”, dispersando-se em seguida.
Ansioso, Valentino busca Siebel e o interroga sobre a irmã, mas a resposta vaga e hesitante do ex-namorado deixa-o preocupado e ele parte apressadamente à procura de Margarida.
Nesse momento, Fausto e Mefistófeles chegam à praça e o “Anjo do Mal”, com o seu habitual sarcasmo, entoa a célebre “Vous que faites l´endormite (Ó, tu que finges dormir)”, acompanhando-se em uma guitarra, numa clara alusão ao triste destino da jovem irmã de Valentino. E como se não bastasse o deboche da música, ele tripudia ao terminar a canção com uma sonora e cínica gargalhada.
O jovem herói de guerra não pode suportar tamanho ultraje e já com a espada desembainhada, volta à praça e avançado furiosamente contra Mefistófeles quebra-lhe a guitarra em mil pedaços. Depois, percebendo a presença de Fausto, ataca-o vigorosamente, mas, este, ajudado pelo “Príncipe do Mal” repele a sua investida e acaba ferindo-o gravemente.
O alarido do combate atrai inúmeros populares e a dupla de malfeitores foge apressadamente, enquanto, Valentino, com as suas últimas forças, amaldiçoa a irmã por ter deflagrado toda aquela funesta sequência, dando, logo depois, o último suspiro nos braços do povo, que o lamenta sentidamente.
Margarida, atraída pelo barulho, ao ver o irmão morto se desespera e sobre o corpo inerte do irmão encerra o quarto ato com lágrimas copiosas.
§§§
O quinto ato é encenado em uma suja e horrenda cela de prisão, onde a alucinada Margarida jaz sobre uma tosca cama de palha.
Algum tempo já é passado desde a morte de Valentino. Nesse ínterim, Margarida gerou o filho que Fausto lhe fez quando a seduziu e, depois, num acesso de loucura, matou-o; razão, aliás, pela qual se encontra presa e condenada a morrer enforcada na manhã seguinte.
Se a culpa por ter-se deixado seduzir e pela morte do irmão já a tinham abalado profundamente, o infanticídio que cometeu eliminou qualquer laço com a lucidez e, por isso, quando Mefistófeles e Fausto entram na sua cela – após embebedarem o carcereiro – ela se alegra enormemente, achando que Fausto ainda é o mesmo amor de antes.
E, realmente, ele ainda tem algum interesse por ela, principalmente por compaixão e por culpa. Em relação a Mefistófeles, porém, nada de bom se pode dizer, pois o que lhe interessa é apenas levar a Alma da pobre coitada para o “Fogo do Inferno”, tão logo se consume a sua morte na forca.
Nesse ponto a orquestra executa vários trechos de Árias que marcaram os momentos felizes que o casal viveu e ela, envolta nesse delírio, abandona a cama e vai em direção ao seu antigo amado; porém, quando percebe a presença do “Príncipe das Trevas” junto dele, sente uma enorme repugnância e um grande temor e essas novas sensações despertam-lhe relances de Razão, que a fazem compreender que ele é um “emissário do Inferno”, cujo único objetivo é fazê-la purgar por toda a eternidade.
Horrorizada, ela grita de pavor e usa a única arma que conhece: as rezas, as preces e o pedido de socorro a Deus. Ajoelhada, reza devotamente e implora pelo socorro divino, ignorando a pressão contrária que Fausto e Mefistófeles fazem, na tentativa de que ela fuja com eles.
É um momento tenso, dramático e que mais se acentua graças ao Trio que os três entoam, onde a voz de Margarida canta “Anges Purs, Anges Radieux (Anjos puros, Anjos radiosos)” e a dos inimigos, cantos blasfemos e pervertidos.
Por fim, seus rogos são atendidos e anjos descem à Terra e cantando o célebre “Hino da Redenção” elevam a sua alma ao Paraíso.
Ao infernal Mefistófeles só resta a frustração por tê-la perdido. Irritado, entre muitas blasfêmias, segura Fausto firmemente e, com ele, segue em direção ao “Reino de Lúcifer”.
É o fim da Ópera.
Histórico
A lenda do cientista que vende a sua alma ao Demônio em troca dos prazeres mundanos foi uma das mais populares da Idade Média e, ainda hoje, é muito conhecida e citada, enquanto metáfora condenatória da ganância excessiva, que não mede consequências para satisfazer de bens materiais ao ganancioso.
Como toda lenda, a de Fausto não foi gerada apenas por alguma imaginação fértil, sendo, em verdade, derivada de alguns fatos e personagens que existiram realmente.
Primeiramente foi associada a Johan Faustus, que teria vivido na Alemanha e que era dado a práticas de feitiçaria, sendo, por isso, associado ao Diabo, razão que o levou a ser linchado. O próprio Martinho Lutero, fundador da Reforma Protestante, chegou a citá-lo como exemplo das “Forças do Mal”.
A história do trágico personagem foi escrita pela primeira vez em 1587, em Frankfurt, por Spiess e desde então todo indivíduo dotado de luzes acima da média passou a ser considerado um signatário de “Pactos com o Demônio”, como ocorreu, por exemplo, com Johnn Fust de Mongúcia, principal auxiliar de Gutenberg, em razão de seu extraordinário conhecimento em tipografia.
Tempos depois, o grande romancista e poeta Goethe, fascinado pela história desde a tenra infância, escreveu a grande obra “Fausto e Margarida”, ao qual dedicou nada menos que trinta e quatro anos, já que o iniciou aos vinte e seis anos de idade e só o terminou sexagenário.
Goethe deu à lenda ares mais sofisticados e eruditos e foi em seu Romance (novela, para o público em espanhol) que Charles Gounod se baseou para escrever a sua grande Ópera.
A riqueza dramática e filosófica da obra do romancista alemão foi o primeiro atrativo a seduzir o compositor; assim como, como o de um vasto e variado grupo de pintores e musicistas, dos quais vale citar: “Doktor Faust”, de Busoni; “A Danação de Fausto”, de Berlioz; “Petit Fausto”, opereta-paródia; a grande música sinfônica e incidental para a peça de Wagner e, por fim, a esplêndida composição sinfônica de Liszt.
A Ópera de Gounod começou a ser planejada em 1856 e após três anos estreou em Paris, que a consagrou. Na noite inaugural, enriqueceram a plateia os gênios de Berlioz, Delacroix, Perrin e mais uma centena de figuras proeminentes no campo das Artes que, junto a grandes banqueiros e políticos, atestaram o prestígio da peça e o sucesso de seu criador.
E o êxito inaugural solidificou-se continuamente.
Dez anos depois, 1887, Gounod revisou-a para a apresentação no “Grande Ópera”, quando o compositor comemorou, com uma legião de fãs e amigos, as quinhentas apresentações de sua obra. Oito anos depois, a celebração foi pela milésima apresentação, sempre em Paris. Ademais, coube-lhe, ainda, a honra de inaugurar o “Metropolitan Ópera House” em New York, EUA, em 1883.
Sucesso merecido para o jovem compositor de apenas quarenta e um anos de idade e que perdura até os dias atuais.
 
Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, inverno de 2015.

sábado, 29 de agosto de 2015

Cores



Há tanta cor no poente
que parece que o Sol
reluta em partir...




Produção e divulgação de Vera L. M. Teragosa.
Lettre la Art et la Culture

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

NORMA, Bellini - Óperas, guia para iniciantes


Autoria: Bellini,
Libreto: Felice Romani
Personagens

Norma – Grã Sacerdotisa Druida. Interpretada por uma Soprano.

Pollione – Pró Cônsul romano. Interpretado por um Tenor.

Adalgisa – Virgem do Templo. Interpretada por uma voz Contralto.

Oroveso – Sacerdote Supremo Druida. Interpretado por um Baixo.

Flavio – Centurião romano. Interpretado por um Tenor.

Clotilda – confidente de Norma. Interpretada por uma Mezzo Soprano.

Local e Época
Gália (França atual) c. 50 AEC.

Enredo

O primeiro ato é encenado na reprodução do “Bosque sagrado dos Sacerdotes Druidas” que exercem o governo espiritual dos Gálios (atuais franceses), então sob o domínio da Roma Imperial. Ao centro, avista-se o majestoso “Carvalho Sagrado” e sob ele o “Altar Ritual”. Também se vislumbra a presença de inúmeros parasitos nos galhos da árvore, os quais serão expurgados em cerimônia mística, que só ocorrerá quando as profecias se realizarem.
A baixa iluminação indica ser noite, mas mesmo entre as sombras é possível vislumbrar a inquietação do povo em sua ânsia de se libertar do jugo romano. Apenas, o respeito que tem à liderança dos Sacerdotes, a quem caberá decidir o início da revolta, é que lhes impede de agir.
Pouco depois, uma solene procissão avança pela cena, tendo à frente os orgulhosos guerreiros gálios e logo atrás os Druidas, liderados pelo Sumo Sacerdote Oroveso.
Chegando ao centro do altar, ele ordena que seus auxiliares subam as colinas próximas para avisarem do surgimento da Lua, o sinal que dará início ao ritual de expurgo dos parasitas da árvore sagrada e da profecia em relação ao destino da Gália.
Inicialmente ele invoca o deus “Irminsul”, rogando-lhe ajuda para expulsar os invasores. Em seguida, finaliza o ritual preliminar vibrando o grande escudo de bronze, que representa aquela divindade, e a cena se esvazia.
Nela, pouco depois, dois jovens romanos adentram furtivamente: Pollione, o Pró Cônsul (governador da ocupação) e o seu fiel amigo Flavio, centurião. Ambos se movem pelo local com cautela, pois Flavio insiste que Norma – a alta sacerdotisa Druida – avisou-os que o bosque é um local sagrado e que a entrada no mesmo é considerada um sacrilégio, passível de ser punido com a morte.
Pollione, casado secretamente com essa mesma Norma, não desconhece o perigo que corre, mas aos riscos ele está habituado, já que além de seu casamento proibido com Norma, ele é o pai de seus dois filhos. Ao perigo, pois, está exposto tanto por ter “traído” Roma, quanto por ter desposado uma “Alta Sacerdotisa”, tornando-a “impura”.
Norma, obviamente, também corre sérios riscos, pois além de ter quebrado seus votos, casou-se com o inimigo odiado.
É, em suma, um amor que venceu grandes desafios, mas que surpreendentemente está prestes a ruir, pois Pollione confessa ao amigo Flavio que se apaixonou por outra mulher, a bela Adalgisa e que já não ama a esposa, a quem nada contou por temer que ela se vingue cruelmente da jovem.
Nisso, os vigias nas colinas dão o sinal de que a Lua surgiu e como os dois romanos sabem que os Druidas retornarão ao bosque, apressam-se em fugir.
Na sequência, uma Marcha religiosa indica que os oficiantes da cerimônia estão próximos. À frente vem a Grã Sacerdotisa Norma trazendo uma foice de ouro para que sejam cortados os ramos infestados no “Carvalho Sagrado”.
É uma cena deslumbrante. Efeitos de luz simulam os raios de luar incidindo em sua fronte, enquanto ela entoa a mais célebre ária da Ópera, “Casta Diva”, e anuncia solene: “O destino de Roma está nas mãos dos deuses e quando Roma chegar ao fim não o terá chegado pelas forças externas, e sim pelas forças de destruição geradas dentro da própria Roma”.
Depois, anuncia ao povo que quando chegar a hora da revolta, ela, pessoalmente, dará o sinal. A massa grita com entusiasmo e jura vingar-se primeiramente de Pollione, o detestado Governador romano.
Logo depois desse momento de catarse, a cena se esvazia, exceto pela jovem Adalgisa que se ajoelha em frente ao altar e implora que os deuses a libertem do amor que sente pelo Pro Cônsul e que julga equivocado. Em seguida, Pollione abandona o esconderijo em que estava e, enlaçando-a, jura-lhe amor eterno e propõe fugirem juntos.
A princípio ela o repele, mas vencida pela paixão, aninha-se em seu peito e diz que o seguirá incondicionalmente. Ambos, então, cantam o romântico Dueto “Vieni in Roma” e combinam escaparem na noite seguinte.
É o fim da primeira cena.
A segunda cena se desenvolve na tosca habitação de Norma: uma despojada caverna, revestida com o couro de animais selvagens.
Ali, acompanhada por seus dois filhos, ela conta a Clotilda de sua preocupação com o chamado que Polônio recebeu de Roma, pois teme que ele a abandone, assim como teme que o casamento e os filhos sejam descobertos por seu povo, o que ocasionará terríveis consequências para todos.
Nesse momento um vulto assoma à porta e ela só tem tempo de pedir que Clotilda esconda as crianças.
É Adalgisa, que oscila entre o entusiasmo do amor e a culpa que sente por ter quebrado os votos. Veio para se confessar com a Grã Sacerdotisa e pedir-lhe a dispensa do sacro juramento.
Norma, tendo em mente o seu próprio amor, acolhe-a com bonomia e a absolve de toda culpa, desejando-lhe êxito em sua partida para outras terras, com o homem amado. Por fim, indaga-lhe quem é o escolhido e quando Adalgisa vê Pollônio chegar, diz que é ele, sem sequer imaginar que se trata do marido da outra.
A surpresa desfigura o semblante de Norma e, ensandecida, ela acusa Pollônio de trair-lhe e, também, aos filhos. Depois, selvagemente, volta-se contra Adalgisa e diz que o marido é um crápula, duplamente culpado por ter traído a ambas.
A jovem, por sua vez, aos poucos se recupera do choque que também experimentou e assegura a Norma que diante dos fatos, o seu amor por Pollônio foi substituído pelo mais profundo ódio e desprezo.
Pollione desespera-se com a atitude de Adalgisa e implora que ela não o deixe. Tenta segurá-la, mas ela se lança nos braços de Norma, que, no auge de sua fúria, expulsa o Procônsul entoando a vigorosa ária “Vanne, si mi lascia, indegno...”.
Todavia, do alto de sua arrogância de conquistador de terras e de mulheres, ele não se dá por vencido e cinicamente desafia a ex-esposa, mas, nesse momento, ouve-se tocar o “Gongo de Irminsul” convocando os Druidas ao Templo.
Abraçadas, Norma e Adalgisa seguem para o ritual enquanto Pollônio, transbordando de rancor, deixa a cena.
É o fim do primeiro ato.

§§§

O segundo ato começa na réplica de um aposento da caverna onde Norma reside.
Dormindo o sono dos inocentes, as crianças não despertam com a chegada da mãe, que traz expressa no semblante toda a dor que lhe corrói a alma.
Após olhá-las longamente, num misto de ternura e de tristeza, ela saca um longo punhal e dirige-se aos filhos dizendo: “melhor para eles morrerem, que viverem como escravos em Roma”.
Porém, antes de lhes dar o golpe fatal, o amor materno grita mais alto e a impede de cometer o bárbaro infanticídio. Então, como se saísse de um transe horrendo, ela se ajoelha e pede perdão aos deuses e às crianças pela insanidade que esteve prestes de cometer.
Nisso, ouvindo o seu choro convulsivo, os pequenos despertam e ela pede que Clotilda traga-lhe Adalgisa a quem pede que entregue os filhos a Pollônio, o pai.
Adalgisa pressente que por trás daquele pedido está a intenção de Norma cometer suicídio e, por isso, recusa-se a cumprir a solicitação e roga-lhe que não consume mais uma tragédia. Contudo, Norma insiste para que ela se vá e, novamente, Adalgisa retruca, cogita ir ao acampamento romano para pedir que Pollônio volte para a esposa e filhos e, por fim, coloca à sua frente os filhos ajoelhados, enquanto é entoando o Dueto “Mira, o Norma”, que roga à mãe que contemple os pobres meninos e poupe a sua vida por eles.
É um apelo por demais dramático e Norma não consegue resistir-lhe, abandonando o seu mórbido intento.
E, desse modo, a primeira cena é encerrada.
A segunda cena é encenada na reprodução de uma caverna onde estão reunidos vários guerreiros Gálios, ansiosos para lutarem contra os romanos. Ali se reuniram para planejarem a expulsão dos odiados invasores e só aguardam a autorização dos Sacerdotes Druidas, para tanto.
Pouco depois, chega Oroveso, o Sumo Sacerdote, cuja fisionomia carregada indica que porta más notícias.
E, de fato, a sua primeira fala é para dizer que o Pro Cônsul Pollônio foi chamado de volta a Roma e que o seu sucessor será ainda mais cruel.
Os guerreiros se agitam e perguntam-lhe o que a Sacerdotisa Norma falou a esse respeito, mas Oroveso só tem a lhes dizer que, por hora, ela ainda não autorizou o ataque, malgrado todo o ódio que sente pelo maldito invasor. Pede-lhes, depois, que mantenham a falsa aparência de resignada submissão, pois isto é que lhes dará a vantagem da surpresa, quando for o momento de liquidar e expulsar o estrangeiro infame.
É o fim da segunda cena.
A terceira cena é ambientada na reprodução do Templo do deus Irminsul. Nele, Norma aguarda ansiosamente o retorno de Adalgisa que foi tratar com Pollione da guarda das crianças e, indiretamente, da reconciliação do casal.
Porém, quem primeiro chega é Clotilda que lhe conta do insucesso da jovem Sacerdotisa em sua tentativa de reaproximá-la do marido, já que ele tornou a jurar-lhe eterno amor, implorando que ela o acompanhasse a Roma. Chegou até a forçá-la fisicamente e só a muita custa, ela conseguiu escapar e refugiar-se noutra dependência do Templo.
O comportamento de Pollione decepciona e enfurece Norma ainda mais. Tomada por extremo ódio, deixa-se levar pela impulsividade e ordena que o “Gongo de Irminsul” seja vibrado por três vezes, conclamando todos os Gálios para a guerra contra os invasores.
E uma grande massa belicosa atende ao seu chamado, tendo Oroveso à frente. Está armado o cenário para a bestialidade.
O Sumo Sacerdote indaga a Norma o motivo da convocação e ela confirma que é chegada a hora de se guerrear. O povo responde exaltado, sedento por sangue e vingança.
Oroveso também se inflama, mas com um resto de racionalidade, lembra-lhe que ainda não se fez o sacrifício ritual no altar, o que é indispensável em momentos tão grave quanto aquele.
Norma aceita a observação e diz que será feito no momento adequado. Do lado externo a malta aguarda inquieta a ordem final.
Nisso, Clotilda entra no Templo e avisa que o “Bosque Sagrado” fora profanado por Pollione e que ele, nesse momento, está sendo conduzido preso à presença da Sacerdotisa.
Pouco depois, os guardas introduzem-no no átrio e ele, arrogante como de hábito, livra-se das amarras guardas e se posta em frente a Norma, numa atitude de claro desafio.
Oroveso saca o punhal ritual e dirige-se a ele com a intenção de matá-lo, mas Norma o detém e avança pessoalmente contra o seu ex-marido; porém, antes de atingi-lo faz uma pausa dramática e pede que todos se retirem, pois ela quer interrogar o cativo acerca de seus objetivos e motivos para profanar o “Bosque”.
A sós, ela diz que se ele jurar que nunca mais procurará Adalgisa ela o libertará, mas ele recusa a oferta, deixando transparecer na voz embargada todo o amor que sente pela jovem. Em seguida, parcialmente recomposto, diz, altivo: “Não! Nada lhe prometerá, mesmo que ela ameace matar aos filhos de ambos!”. Depois, todavia, mostrando-se mais pai que guerreiro, implora-lhe humildemente que não faça mal às crianças, pois elas são vitimas inocentes. Que ela se contente em assassiná-lo e poupe os pequenos.
Humilhada por ter se rebaixado de novo e pela postura digna de Pollônio, Norma ainda tenta uma ultima cartada e lembrando-o de sua condição de Grã Sacerdotisa, diz que deverá realizar o sacrifício ritual e que a vitima será Adalgisa.
Pollônio sente o golpe terrível e volta a implorar que ele mate apenas a si e deixe que todos os outros inocentes continuem a viver, mas Norma recusa, dizendo que assistir à morte de sua amada ser-lhe-á mais doloroso e que, assim, ela se sentira melhor vingada.
Na sequência, entoa-se o Dueto “In mia man alfin tu sei (Enfim estás em minhas mãos)” e ela volta ao Altar, onde permanece em atitude vingativa e cruel, enquanto o povo atende a sua nova conclamação.
Com voz solene e postura marcial, ela anuncia que a vitima do sacrifício já foi escolhida, sendo uma “sacerdotisa que foi falsa em seus votos”.
Iracunda, a multidão pede que ela identifique a traidora e Pollione, submerso em angústia, suplica que ela tenha clemência de Adalgisa. Que não seja tão vingativa.
Nesse momento, a plateia é surpreendida com uma reviravolta inesperada, pois Norma atira longe as suas insígnias de Grã Sacerdotisa e diz ser ela a “Sacerdotisa Pecadora”.
O espanto é geral e atinge a todos, já que o seu comportamento anterior não sinalizava que ela fosse ter uma atitude tão digna.
Jogando por terra a “Grinalda Cerimonial” ela pede que seja feita a fogueira para o seu sacrifício e dirigindo-se a Pollônio diz que ainda o ama, como sempre amou.
Ele, por sua vez, responde-lhe dizendo que agora consegue ver que o seu sentimento por Adalgisa foi apenas um encantamento passageiro, um deslumbramento momentâneo e que ela, Norma, é, sim, o seu amor verdadeiro.
Entrementes, Oroveso e outros Druidas do alto escalão tentam convencer Norma de que a sua atitude foi irracional, motivada apenas pelas pressões e que, por isso, ela deve voltar atrás em suas decisões, já que nela reside a reserva moral, patriótica e libertária que faz dos Gálios, o povo altivo que é.
Norma, porém, não lhes dá atenção e insiste em assumir a culpa, haja vista que os seus atos contrariaram a todas as Leis do Sacerdócio Druida e à confiança dos galeses. Que ela, portanto, arque com os merecidos castigos. Em seguida implora que Pollônio cuide dos filhos que tiveram, mas ele, ao contrário, diz que a acompanhará na morte, pois a culpa também é sua.
Nesse ponto a pira sacrifical é concluída. Norma abraça e despede-se do pai Oroveso e aceita que lhe cubram a cabeça com uma negra mortalha, enquanto os Sacerdotes entoam fúnebres cânticos e hinos, que celebram o fogo que haverá de purificar o Templo Sagrado.
Então, abraçados, Norma e Pollione caminham resolutamente em direção ao fogo e sem qualquer hesitação entregam-se às chamas devoradoras. Já não são inimigos, apenas um homem e uma mulher que viveram e morreram por amor.
É o fim da Ópera.

Histórico

Vincenzo Bellini viveu apenas trinta e quatro anos, mas a sua breve existência foi altamente produtiva, como bem atestam as onze magníficas óperas que compôs.
“Norma” foi a oitava e, seguramente, a que mais glória e reconhecimento lhe trouxe, desde que estreou no Teatro Alla Scala, de Milao, em 1831.
A profusão de elementos melódicos sublimes - especialmente as Fanfarras guerreiras e os Coros dos Sacerdotes Druidas e os dos Guerreiros gauleses; os belíssimos efeitos do Coral e os cenográficos e o empolgante enredo conquistaram desde o primeiro minuto a simpatia do público e as graças da Crítica, que logo a classificou com uma das mais belas “Tragédias Líricas” que já haviam sido produzidas.
O libreto de Felice Romani, que tanto contribuiu para esse sucesso, foi feito a partir de uma peça de Alexandre Soumet, que estreara um ano antes, 1830, e que contava as ânsias e as lutas dos Galos (gálios, gauleses, franceses) contra o invasor romano; tema de apelo universal, pois não há quem não simpatize com as lutas pela liberdade e pelo fim da opressão.
Atualmente a Ópera conserva a sua condição de favorita o público e, por isso, é encenada com a constância adequada a sua grandiosidade.


São Paulo, 26 de Agosto de 2015.

Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, inverno de 2015.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

OTELO, Verdi - Óperas, guia para iniciantes.


Autoria – Verdi (Giuseppe Fortunino Francesco – 1813-1901 – Itália).
Libreto – Arrigo Boito.

Personagens

Otelo – General Mouro a serviço da República de Veneza. Interpretado por um Tenor.

Desdemôna – Dama veneziana e esposa de Otelo. Interpretada por uma Soprano.
Iago – o principal vilão. Militar veneziano e confidente de Otelo. Interpretado por um Barítono.
Lodovico – o Embaixador de Veneza. Interpretado por um Baixo.
Cássio – o Capitão das forças de Otelo. Interpretado por um Tenor.
Montano – oficial da guarnição, em Chipre. Interpretado por um Barítono.
Roderigo – cavaleiro veneziano. Interpretado por um Tenor.
Emilia – mulher de Iago e aia de Desdemôna. Interpretada por uma Mezzo Soprano.


Local e Época.

Chipre, meados do século XV.

Enredo

Ao subirem as cortinas para o início do primeiro ato, a plateia imerge no fabuloso cenário que reproduz uma bela praça fronteira ao mar de Chipre, apinhada de entusiasmados cidadãos que ali se aglomeram para saudar Otelo, que há pouco venceu a guerra contra os turcos.
Após um breve agradecimento do homenageado, a festa perde o caráter cerimonioso que mantinha e uma alegre descontração toma conta do povo, enquanto o General segue para o seu Palácio, ansioso em rever a sua amada esposa, Desdemôna.
Porém, o clima de euforia pela vitória e de alegria pelas conquistas não é partilhado pelo invejoso Iago, por não ter sido promovido por Otelo ao posto delugar-tenente.
E tamanha é a sua ira e frustração que em seu pensamento só existe espaço para urdir a mais cruel vingança contra o escolhido, o jovem Cássio, e contra o próprio General, que o preteriu.
Imerso em ódio, ele dá início à sua funesta trama ao dizer a Roderigo – cuja paixão por Desdemôna é conhecida – que ele tenha um pouco de paciência, pois logo ela se cansará de Otelo e, então, ele terá reais chances de seduzi-la.
E ante a alegria do esperançoso admirador, ele prossegue com o seu plano maquiavélico. Fingindo-se amigo, diz-lhe que exercite, sim, a esperança, mas, também, que tenha cautela com o jovem Cássio, cuja recente promoção pode ser creditada a uma interferência da esposa do General a favor de um de seus amantes.
Com essa sórdida intriga, ele consegue atingir dois objetivos: indispor Roderigo contra Cássio e difamar a casta Desdemôna.
Porém, nesse momento, Cássio se aproxima da dupla e ambos agem como se nada tivesse havido. Convidam o recém-chegado para uma bebida e o novo lugar-tenente os acompanha em apenas uma taça, já que é abstêmio.
Iago, premeditadamente, ergue um brinde ao vinho, mas ao invés de exaltar as suas boas qualidades e seus bons efeitos, como a alegria, por exemplo; exalta os seus malefícios, como o entorpecimento da ética, a dominação que ele sujeita o viciado e os atos impensados que se comete sob os seus eflúvios.
Palavras sombrias, aziagas e que inflamam o ciúme de Roderigo que, em certo momento, não se contem e avança sobre Cássio, que tudo ignora acerca das mentiras contadas por Iago.
O combate entre ambos é violento e antes que descambe ainda mais, surgeMontano, o antecessor de Otelo no governo de Chipre, e intervém. Porém, por um fatal acidente, Cássio o atinge com sua espada e ele falece imediatamente.
A confusão se estabelece e ouvir o alarido, Otelo chega rapidamente ao local do crime e, sem considerar qualquer circunstância atenuante, demove Cássio do cargo que há pouco o guindara.
Ao jovem nada resta fazer senão aceitar resignadamente o infortúnio de ter matado um inocente e de ter que arcar com as consequências.
Por outro lado, sem demonstrar, Iago rejubila-se com essa sua primeira conquista espúria. Sua vingança está em plena marcha.
Após alguns momentos, a situação volta à normalidade e pela primeira vezDesdemôna aparece para o público. Veio encontrar-se com o marido Otelo e ambos entoam o famoso Dueto “Giá Nella Notte Densa”, que encerra o primeiro ato.

§§§

O segundo ato tem como cenário o luxuoso Palácio de Otelo.
Flanando pelos salões, Iago saboreia a vitória há pouco conquistada, mas ainda não está totalmente satisfeito, pois o que ele quer é a ruína total de Cássio; e para atingir esse sórdido objetivo, decide fingir-se solidário e amigo do mesmo.
Mostra-se solicito e preocupado com o rebaixamento “do amigo” e maquiavelicamente aconselha-o a pedir que Desdemôna interceda por ele junto ao marido.
Ingenuamente Cássio acredita em sua amizade e em suas boas intenções e ao ver que a bela esposa do General caminha pelo jardim, não hesita em pedir-lhe auxílio.
Entrementes, feliz por ver que a sua vitima caiu em sua armadilha, Iago proclama o célebre “Credo Maligno”, a genial criação do libretista Boito que inexiste no original de Shakespeare. Esse ponto, aliás, é um dos ápices da parceira entre ele e Verdi.
Enquanto isso, Otelo observa o diálogo entre Cássio e a sua esposa e logo em seguida é abordado pelo pérfido intrigante, que não perde a oportunidade para semear o germe da desconfiança e do ciúme em seu coração. 
Exasperado, Otelo, exige, então, que ele lhe dê informações mais precisas e substanciais sobre um eventual relacionamento adúltero de sua mulher com o exlugar-tenente; e não apenas vagas e maldosas insinuações. 
Ardilosamente Iago desconversa alegando falsamente ser um amigo fiel do decaído Cássio.
É a vez de o General cair em sua armadilha, o que lhe aumenta o ciúme e o ódio pelo suposto “amante” de sua esposa. 
Contudo, ao ver que a sua amada Desdemôna está cercada por mulheres e crianças do povo, que lhe cobrem de afeto e respeito, ele percebe o quão injusto é lançar qualquer desconfiança sobre um Ser humano tão puro e toda a sua ira se volta contra o infame Iago.
Todavia, a semente plantada em seu peito não foi totalmente extinta e logo a sua desconfiança reacende ao ouvir o apelo que a mulher lhe faz em favor do jovem destituído. 
Sem nada dizer, sente uma fúria imensa apossar-se de sua pessoa. A transpiração abundante e os gestos bruscos que faz, indicam a Desdemôna que algo está acontecendo e carinhosamente ela saca de um lenço finamente bordado e tenta secar-lhe a testa, mas ele a repele com um gesto brusco e joga a fina peça no chão.
É o bastante para que ela rompa em sentido pranto, pouco adiantando o consolo que Emilia, sua aia e esposa de Iago, tenta lhe fazer, após recolher do solo o lenço atirado.
Enquanto isso, Otelo entoa a ária “Ora e Per Sempre Addio”, com a qual diz que Desdemôna já nada lhe significa e que renuncia aos votos que fizera às “santas memórias, às glórias militares e às honrarias de seu posto e patente”.
Iago tenta acalmar-lhe, mas nada é suficiente para lhe devolver a serenidade e, após um curto hiato, a sua ira volta-se novamente contra o intrigante, de quem passa a exigir provas definitivas da traição de sua esposa, sob a pena de cair sobre ele todo o peso de seu ódio.
Iago não pode subestimar tamanho perigo e percebe que precisa agir de modo rápido e efetivo. É, então, que pede à sua mulher, Emilia, que lhe entregue o lenço de Desdemôna, que foi jogado ao solo por Otelo.
Em posse da delicada peça, volta à presença do General e diz ter encontrado aquele lenço de Desdemôna em casa de Cássio; sendo que nessa ocasião, também, ouviu-o murmurar, enquanto dormia, o nome da esposa do General.
Para o perturbado Governador de Veneza é o bastante. Sim, aquela é a “prova cabal” de que a sua esposa é uma reles adúltera. 
A desrazão impede-lhe de conjecturar alguma outra explicação, como, por exemplo, se tudo aquilo não seria uma mera armação de Iago, pois, a rigor, apenas a sua palavra é que sustinha a hipotética traição. Nada ilumina o seu pensamento, já despojado de qualquer lucidez. Existe em sua alma apenas o desejo de se vingar brutalmente.
Iago, observando o “estado de espírito” do Mouro de Veneza, coloca-se servilmente à sua disposição para a prática da terrível desforra e ambos ajoelham e juram aos Céus que “não descansarão enquanto não punirem os malditos traidores do sagrado matrimônio”.
E assim o segundo ato é finalizado.

§§§

O terceiro ato é ambientado na réplica de um dos luxuosos salões do Palácio de Governo de Chipre.
Após alguns acordes solenes, um Arauto anuncia que em breve aportará uma Galera trazendo o Sr. Lodovico, Embaixador de Veneza.
Para Otelo, aquela noticia pouco interessa, já que a sua atenção está obsessivamente voltada para a suposta traição de que seria vitima. Apenas esse espinhoso assunto ocupa-lhe a mente. Nada mais importa e ele continua pressionando Iago por mais provas do mau ato de Desdemôna e Cássio.
Iago não se faz de rogado ao lhe prometer mais e, também, não titubeia em valer-se de novas farsas para continuar enganando ao General, a quem odeia intensamente, em virtude de tê-lo preterido na promoção a lugar-tenente. 
Sua vingança será dupla.
E com essas reflexões rancorosas, a primeira cena é encerrada.
A segunda cena inicia-se com Otelo torturando emocionalmente a pobre Desdemôna. Ao lançar-lhe indiretas desconcertantes e grosseiras, ele tem a esperança de que ela se confunda e termine por admitir o seu erro.
Porém, a pobre esposa, com a ingenuidade dos inocentes, limita-se a responder as suas perguntas de modo irretorquível, em flagrante sugestão de sua inocência, como bem se atesta, quando em meio ao cataclismo, ela volta a pedir que ele reconduza o jovem Cássio ao posto de lugar-tenente.
Pedido inoportuno, certamente, mas feito apenas por quem se sabe inocente. Porém, esse apelo desmancha o castelo de confiança que ela vinha construindo no peito do ciumento marido e ele volta a crer em sua infidelidade.
Transtornado, ele exige que ela busque o lenço que ele lhe dera tempos atrás (o mesmo que ele atirou ao solo) e ela, sem imaginar que Iago o usara para montar a sua farsa, dirigi-se ao seu quarto para apanhá-lo. 
Nisso, Iago volta à cena e diz a Otelo que se oculte e escute o diálogo que terá com Cássio, pois, então, todas as suas dúvidas serão sanadas.
Pouco depois, Cássio chega e Iago logo lhe pede o lenço que ele traz no gibão. Ingênuo, Cássio o entrega, sem desconfiar que aquela peça que encontrou por acaso (deixado em seu quarto pelo intrigante) será uma das provas que o incriminarão. Em seguida, Iago pergunta-lhe, em voz baixa e de modo malicioso, sobre uma jovem da cidade, chamada Bianca. Inocentemente, Cássio fala sobre ela de modo licencioso e divertido.
De deu esconderijo, Otelo observa a cena, mas como não escutou a explicação de Cássio, passa a crer que o lenço lhe foi dado por Desdemôna. E, por não ouvir o nome de Bianca, acredita que ele fala de sua esposa.
Dessa sorte, o discurso debochado e mais a posse do lenço, convencem-no cabalmente da culpa de Cássio e de Desdemôna. Um tremendo engano a que Iago o induziu e que terá consequências funestas. 
Já não lhe é possível duvidar e a amargura que sente só não supera o ódio que lhe assalta e que lhe exige uma cruel vingança.
Nesse ínterim, o toque dos clarins anuncia a chegada de Lodovico, o embaixador de Veneza, que é recebido com grandes honras pelo cerimonial. Logo depois, o embaixador anuncia que Otelo é chamado em Veneza e que Cássio será o novo governador de Chipre.
A custa, Otelo manteve a serenidade durante a cerimônia, mas o seu coração arde de ódio, amargura e ciúme. Por outro lado, Desdemôna sente-se imensamente infeliz pelas suspeitas e pelo tratamento que o marido agora lhe dispensa. O seu semblante é apenas uma máscara de dor.
Otelo, todavia, vê nesse sofrimento da esposa, apenas a tristeza que ela está sentindo por ter que se separar do amante em breve e isso o enfurece cada vez mais, fazendo com que perca o resto de civilidade que ainda conservava e a insulte e maltrate na presença de qualquer um, como, por exemplo, na cena que a insulta com ferocidade e a joga no chão aos gritos de “Silêncio, demônio”.
Esta cena, aliás, costuma causar um grande impacto na plateia, que visivelmente repudia aquela atitude covarde, chauvinista e grosseira.
Jogada ao solo, humilhada, Desdemôna é amparada por Emilia, a sua aia fiel, e segue para os seus aposentos. Os outros a seguem na retirada e em cena ficam apenas Iago e Otelo, que não suportando a tremenda excitação e desgosto a que vem sendo submetido, perde os sentidos e cai pesadamente ao solo.
Ali caído, inerte, Otelo já não é mais nada e, por isso, quando Iago escuta que a multidão saúda o General chamando-o de “Leão de Veneza”, ele diz com o mais profundo desprezo: “Ecco Il Leone (ai está o leão)”. 
Satisfaz-lhe o ego corrompido ver a fragilidade e a ruína daquele que o preteriu. É a sua vingança final.
E assim o terceiro ato se encerra.

§§§

O quarto ato começa a ser encenado na representação dos aposentos de Desdemôna.
Emilia, após ultimar os preparativos para o sono de sua patroa, prepara-se para sair quando escuta o choro de sua patroa.
As acusações que Otelo lhe fez, a sua própria desconfiança e o fim de sua história de amor despedaçam-lhe a alma; e tendo apenas Emilia como amiga fiel, abre-lhe o coração, enquanto entoa a melancolia ária chamada “Salce, salce”, que a acompanha desde a infância. Mais que a morte do corpo, que pressente estar próxima, o seu pranto é mais pela morte da alma a que foi condenada e, por isso, o seu cantar é repleto de tons de lamento e tristeza. 
Arrasada, Emilia deixa o quarto e Desdemôna reza uma “Ave Maria” e se deixa no leito, inerte e silenciosa.
Pouco depois, percebe-se um vulto na penumbra do aposento e logo se adivinha ser Otelo que se aproxima vagarosamente do leito, onde, por instantes, fixa o semblante da mulher que tanto amou e que, agora, tanto odeia. 
Curva-se, em seguida, e a beija por três vezes, repetindo uma cena do primeiro ato. Também a música se repete, mas, dessa vez, permeada de sinistros tons.
Ao receber o terceiro beijo, Desdemôna desperta e ouve a voz decidida de Otelo ordenando que se prepare para morrer, pois eis que é chegada a hora de pagar por sua traição.
Em vão ela faz a última defesa de sua inocência, mas, sem piedade, Otelo joga-se sobre ela e a sufoca. Cumpriu-se a tenebrosa ameaça.
Emilia, pressentindo a tragédia, volta ao quarto de Desdemôna e logo que abre a porta depara-se com o lúgubre espetáculo: sua amada patroa está morta!
Em choque recua e sai em disparada, gritando para todo o Palácio que Desdemôna fora assassinada pelo cruel Otelo. 
Logo a acodem e todos, inclusive Iago, dirigem-se para o local do crime.
Otelo tenta justificar-se com a suposta traição, da qual tem como “prova irrefutável” o lenço que Iago sustentara estar com Cássio.
Porém, ao ver a peça, Emilia compreende o motivo de seu marido ter exigido que ela lha entregasse e, com isso, não demora em deduzir o resto do sórdido plano engendrado e executado por ele. 
E tão logo termina de montar mentalmente as patifarias cometidas pelo esposo, fremente de decepção e de ódio, acusa-o de ser o verdadeiro culpado pela tragédia acontecida.
Iago ainda tenta fugir, mas os guardas o capturam e logo ele será sentenciado.
Noutro canto da cena, Otelo sente todo o peso que só o remorso pode acarretar. Então, após curvar-se sobre o corpo da inocente Desdemôna, crava o punhal em seu próprio peito.
E junto com a sua vida, encerra-se a Ópera.

Histórico

Como fazer com que um indivíduo já septuagenário, bilionário e mundialmente famoso, especialmente após a sua última composição, a célebre AÍDA, volte a se interessar por novos projetos e trabalhos?
Foi, justamente, esse, o enorme desafio a que se lançaram o Editor Giulio Ricordie o Maestro Franco Faccio, na tentativa de convencer ao grande Giuseppe Verdia compor uma nova Ópera.
Missão quase impossível, diga-se, mas que, por fim, coroou-se de êxito graças à persistência de ambos e, sobretudo, a sedução que o tema base exerceu sobre o velho compositor.
Afinal, um texto de Shakespeare dispensa apresentações e quando se trata, dentre outras, de uma obra-prima como “Otelo, o Mouro de Veneza” o fascínio se torna irresistível. 
Ademais, outro fator teve importância crucial: o libreto escrito pelo talentosíssimo poeta e músico Arrigo Boito, que, como poucos, compreendia a intrincada relação entre a palavra e a música. Talento, aliás, que o fez ser compositor de várias óperas que ainda hoje são obras de referência.
Assim, essa soma de fatores, fez com que Verdi abandonasse o seu “dolce fair nient”, na enorme fazenda que adquirira no sul de sua amada Itália e fosse, paulatinamente, interessando-se pela proposta. 
Após tomar conhecimento da genial criação de Boito, o “Monólogo – O Credo de Iago”, a sua resposta afirmativa não tardou, pois essa maligna personagem o fascinou de tal modo, que ele chegou a pensar em colocar o seu nome como título da obra.
Pôs-se, então, a trabalhar vigorosamente e em Fevereiro de 1887 deu-se a estreia no Teatro Alla Scalla, de Milão, com ótima recepção de público e de Crítica. Sucesso que se mantém intocado nas várias apresentações que ainda hoje se sucedem por todo o mundo.
Otelo é a mais dramática das óperas de Verdi e ao recontar a trágica história de amor e de ciúme, em meio à guerra turco-veneziana do século XV, também reconta a grandeza e a vileza dos sentimentos humanos, independente das circunstâncias da historia.


São Paulo, 21 de Agosto de 2015.

Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, inverno de 2015.
Lettre la Art et la Culture
Enviado por Lettre la Art et la Culture em 24/08/2015