O
primeiro dos vários preços que o indivíduo dotado de inteligência tem de pagar é
o de viver em permanente confronto com a versão imposta – e aceita pela maioria
– aos assuntos políticos, religiosos, filosóficos e outros semelhantes.
Para
o homem de intelecto mediano é fácil acreditar naquilo que outrem diz ser “a
verdade”, “o bom” etc., mas o mesmo não se repete com quem possui mais luzes, já
que ele sempre acrescenta dúvidas pertinentes e revelações de erros crassos ao
que é imposto pelas Classes dominantes, nos diversos setores. Ao indivíduo de gênio,
não basta a opinião alheia, pois ele necessita chegar à “sua” verdade.
É,
com efeito, um alto custo, pois, além de viver em permanente conflito, o indivíduo
genial deixa de gozar do consolo e da esperança que as falsas “verdades” ofertam
aos homens comuns. Ademais, ele tem que conviver com a hostilidade da maioria
boçal, que não hesita em insultá-lo diretamente, taxando-o de insolente,
arrogante; ou indiretamente através de zombarias primárias que buscam ridicularizar
a sua sapiência. E não é raro que até o excluam de seu meio social.
Se
esses obstáculos, nos dias atuais, não acarretam maiores danos ao sujeito
genial, exceto pelo desconforto de ser julgado pelos inferiores e, claro,
equivocadamente; em épocas passadas, a descrença ou a divergência com os dogmas,
que alguns próceres se atreveram a declarar, causou-lhes graves consequências como
a prisão, o exílio, a expulsão das comunidades e até mortes horrorosas nas fogueiras
católicas da Santa Inquisição, nos apedrejamentos islâmicos ou nos sombrios calabouços,
fuzilamentos e guilhotinas dos déspotas governantes, dentro os quais os recentes
tiranos stalinistas, fascistas e nazistas.
Assim
sendo, não causa surpresa que a genialidade de Spinoza tenha sido punida pela “ousadia”
de ter se insurgido contra a ortodoxia da religião.
Embora
aparentasse ser um homem sereno, sabe-se que Baruch se contorcia intimamente
frente a tantas incongruências, improbabilidades e até falsidades que existiam
na prática religiosa e social de sua comuna. Um funesto conjunto de superstições,
boçalidades, fanatismos e quejandos. E esse cesto de absurdos agastou-lhe de
tal forma que a partir de certo momento ele não pôde se conter e iniciou uma série
de discursos que contestavam aquela gama de impropriedades e hipocrisias.
O
impacto de suas perorações não tardou a surtir efeito e ante o risco de que
pudessem fomentar em larga escala o questionamento e a incredulidade entre os
ouvintes, os velhos Rabinos convocaram-no para lhe repreender, sendo, contudo,
debalde qualquer tentativa, haja vista que ele derrubava com espantosa
facilidade os argumentos que lhe eram colocados. Aturdidos e frustrados, os
Doutores da Sinagoga propuseram-lhe, então, uma substancial ajuda financeira
anual para que ele ao menos fingisse ser crédulo aos seus ensinamentos, mas
novamente a tentativa fracassou e ante a inflexibilidade e honestidade do filósofo,
decidiram excluí-lo da Comunidade Judaica, conforme decreto de 27 de Julho de
1656, emitido pelo Conselho Eclesiástico, a ser cumprido em consonância com o
antigo ritual, que Van Vloten descreveu
do seguinte modo:
“Os
chefes do Conselho Eclesiástico fazem saber que, já bem convencidos das nocivas
opiniões e atos de Baruch Spinoza, procuraram, de diversas maneiras e por várias
promessas, desviá-lo de seus caminhos desastrosos. Tendo em vista, porém, que não
conseguiram fazê-lo adotar qualquer maneira melhor de pensar; que, pelo contrário,
a cada dia tem mais provas das horríveis heresias por ele nutridas e
confessadas, e da insolência com que essas heresias são promulgadas e difundidas,
com muitas pessoas merecedoras de crédito tendo testemunhado isso na presença
do citado Spinoza, este foi considerado plenamente culpado das mesmas. Por isso,
realizada uma revisão de toda a questão perante os chefes do Conselho Eclesiástico,
ficou resolvido, com a concordância dos Conselheiros, anatematizar o referido Spinoza,
isolá-lo do povo de Israel e, a partir do presente momento, colocá-lo em anátema
com a seguinte maldição:
Com
o julgamento dos anjos e a sentença dos santos, nós anatematizamos, execramos,
amaldiçoamos e expulsamos Baruch de Spinoza, com a concordância de toda a sacra
comunidade, na presença dos livros sagrados com os 613 preceitos neles contidos,
pronunciando contra ele a maldição com a qual Elisha* amaldiçoou as crianças e
todas as maldiçoes escritas no Livro da Lei. Que ele seja maldito durante o
dia, e maldito à noite; que seja maldito deitado, e maldito ao se levantar; maldito
ao sair, e maldito ao entrar. Que o Senhor nunca mais o perdoe ou o reconheça;
que a ira e a indignação do Senhor queimem daqui por diante contra esse homem, carreguem-no
de todas as maldições escritas no Livro da Lei e apaguem seu nome sob o céu;
que o Senhor o afaste de todas as tribos de Israel, coloque sobre ele todas as
maldiçoes do firmamento contidas no Livro da Lei; e que todos vós que fordes
obedientes ao Senhor vosso Deus sejais salvos nesta data.
Ficam,
portanto, todos advertidos de que ninguém deverá conversar com ele, ninguém deverá
comunicar-se com ele por escrito; que ninguém lhe preste qualquer serviço, ninguém
resida sob o mesmo teto que ele, ninguém se aproxime dele mais de quatro côvados
e que ninguém leia qualquer documento ditado pó ele ou escrito por sua mão. (...)
durante a leitura do castigo, ouvia-se de vez em quando a lamurienta e demorada
nota de uma grande trompa; as luzes, vistas brilhando forte no inicio da cerimônia
foram extintas uma a uma à medida que ela prosseguia, até que no final a última
se apagou – típica da extinção da vida espiritual do homem excomungado – e a congregação
ficou em completa escuridão”.
Observa-se
no texto acima a citação à “maldição de Elisha” que consta no Antigo Testamento
cristão ou Torá israelita. Será oportuna uma palavra sobre a mesma para bem ilustrar
sobre o quê Spinoza se rebelou:
“Elisha
(ou Elias), certo dia, percebeu que um grupo de crianças ria e zombava de sua
calva. Irritado, ele as amaldiçoou e clamou pela ajuda divina, que se materializou
sob a forma de um urso selvagem que devorou os pequenos”.
É
claro que os textos bíblicos não devem ser interpretados literalmente, pois são
essencialmente simbólicos, mas esse simbolismo não era explicado pelos Rabinos
que preferiam manter a versão literal para que com isso pudessem aterrorizar as
pessoas ignorantes, tornando-as mais dóceis ao seu jugo. Comportamento, aliás,
que ainda hoje é utilizado em várias ocasiões por pastores, padres, rabinos e
outros.
Era,
pois, precisamente contra essa manipulação sórdida e covarde que se rebelou o filósofo
e não contra a religião em si.
Mas
os Rabinos que o julgaram não consideravam que agiam errados, pois argumentavam
que sem uma pátria, um idioma comum, a única coisa que mantinha os laços entre
os judeus era a sua Religião e, portanto, qualquer um pudesse representar a
mais tênue ameaça contra ela deveria ser expurgado imediatamente. Além disso,
argumentavam que as perorações de Spinoza não atingiam apenas ao Judaísmo, mas também
ao Cristianismo e isso poderia indispor os generosos holandeses contra a comunidade.
Como explicar-lhes as ponderações de Uriel Costa e, depois, as de Baruch Spinoza
que propunham abertamente teses que lançavam dúvidas sobre uma Crença que havia
custado guerras e outras tantas dificuldades?
Aqui,
sem a intenção de advogar ao diabo, será preciso dar-lhes algum crédito, pois
como se viu e como é sabido, a hostilidade contra os hebreus era quase que
geral e seria uma temeridade perder o único porto que lhes oferecera algum
abrigo.
Porém,
a marcha do pensamento não pode ser interrompida e dessa sorte Spinoza deixou
de pertencer a um só povo e se tornou um patrimônio intelectual de toda a
humanidade. Um gênio a serviço da verdade, como bem demonstram os próximos capítulos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário