quarta-feira, 14 de março de 2012

Filosofia Contemporânea - FANON, Frantz - o Negro e o Racismo

FANON, Frantz
1925/1961

Para o Negro há somente um destino, e ele é branco... Frantz Fanon em “Pele negra, Máscaras brancas”

“Esse sacerdote ao menos não negava que os índios descendiam de Adão e Eva: eram numerosos os Teólogos e Pensadores que não tinham sido convencidos pela Bula Papal de Paulo III, em 1537, que declarava os índios ‘verdadeiros homens’...”. “Em Setembro de 1957, quatro séculos depois da Bula Papal, A Suprema Corte de Justiça do Paraguai emitiu uma circular comunicando a todos os juízes do país que ‘ os índios são tão Seres Humanos quanto os outros habitantes da República’...Eduardo Galeano em “As veias abertas da América Latina”.

Fanon nasceu na Martinica, colônia francesa no Caribe, e após lutar na 2ª Guerra Mundial, estudou Medicina em Lyon – França – e frequentou cursos e saraus de Literatura e de Filosofia, inclusive com o Mestre Merleau-Ponty, tornando, desse modo, mais sólida a sua formação intelectual.

O filósofo sempre pensou ser francês, mas o Racismo que encontrou na França o surpreendeu a tal ponto que ele passou a questionar a sua própria identificação com a nacionalidade. E também fez com que ele desenvolvesse rigorosos estudos sobre o tema, isentos de paixões panfletarias e oportunistas, em sua reconhecida literatura filosófica.

Assim, um ano após se formar em Psiquiatria, em 1951, publicou sua primeira obra intitulada de “Pele Negra, Máscaras Brancas” que iniciou a série de seus escritos especulativos e críticos (no sentido de “censura”).

Empregado do governo francês, foi enviado para a Argélia como Psiquiatra chefe de uma ala do Hospital local. Ali, ele tomou conhecimento, através dos relatos das vitimas, das torturas e abusos que sistematicamente foram cometidos pelas tropas francesas durante a guerra de independência da colônia. Enojado e revoltado com aquela atitude, exonerou-se do posto no Governo francês e aderiu ao Movimento de Independência da Argélia, cujos membros eram as vitimas que ele tinha ouvido, até que no final da década de 1950 adoeceu e a Leucemia o levou no mesmo ano em que se publicava a sua última obra “Os desafortunados da Terra”, cujo prefácio era assinado por Jean Paul Sartre, que o reverenciava como um ícone do movimento contra o racismo e contra as outras formas de discriminação.

Neste Ensaio focaremos a questão do preconceito racial que sofre o Negro, embora essa injustiça sórdida seja imputada a várias outras etnias, que também mereceram o brado combativo do filósofo Fanon. As frases pinçadas do excelente livro de Eduardo Galeano, e expostas no inicio desse texto, sinalizam para esta universalização do preconceito e da segregação.

Ainda sobre as frases em epigrafe, aquela lavrada por Fanon, a principio (e, mormente, nesses tempos do vazio “politicamente correto”), poderá parecer provocativa. Porém, ela sintetiza com muita propriedade a tese do filósofo que se pode resumir conforme os itens sintéticos abaixo que, posteriormente, serão desenvolvidos com mais profundidade. Tem-se, assim, que:

  • As “Culturas Coloniais Brancas1 tendem a igualar a “Negritude” com inferioridade.
  • Os negros, colonizados ou escravizados, submetidos à brutalidade dos Colonizadores, tornam-se tão aparvalhados com a brutalidade da subjugação que nem conseguem reagir contra a usurpação de sua dignidade e de sua tábua de valores.
  • No passo seguinte aceitam a ideia de que “a Cultura dos Colonizadores seja superior à sua”.
  • Já sem qualquer Identidade Cultural, imaginam que a única alternativa é rejeitar a sua Negritude para “se parecer com o Branco colonizador”. Tentativa em vão, é claro, que só aumenta a progressiva queda em sua autoestima. Além de vitimas, tornam-se atores desse sórdido processo.
  • A “Inferioridade” diretamente associada ao fato de ser Negro, leva muitos colonizados e/ou escravizados (inclusive seus descendentes) a adotarem, ou tentarem adotar, a “Cultura Branca do Colonizador” e desejarem “ser como os brancos”.
  • Além de todos os agravantes em termos de dignidade, esse comportamento acarreta outro enorme malefício à Causa pelo fim do preconceito. De fato, se o próprio “Inferior” julga que o outro é tão “Superior” que até anseia tornar-se igual a ele, fica subentendido que a sua “inferioridade” é real, efetiva. Logo, a discriminação seria justa e justificável (sic).
Observação – A partir dos Movimentos de Valorização do Negro, de sua Cultura, de sua Estética, de sua Religiosidade etc. essa rejeição à Negritude deixou de ser explicita, embora ainda persista no inconsciente de alguns extratos da população negra. Porém, o fato desse Movimento de Recuperação da dignidade de ser Negro ser ainda muito jovem e já ter conseguido resultados expressivos, inspira sólida esperança de que toda subvalorização, inclusive a que se esconde no Inconsciente, em tempo muito curto será completamente extinta.
Por outro lado, peço a compreensão do leitor (a) para o fato de que neste Ensaio comento o Ideário de Fanon que, claro, escrevia conforme as circunstâncias de seu tempo. As atualizações de discursos, de nomenclaturas, de palavras de ordem, de práticas etc. não serão consideradas, salvo em itens pontuais, pois o que se pretende é mostrar o pensamento original do filósofo, inclusive para balizar o quanto se avançou, ou não, na eliminação desse câncer social que reproduz seus malefícios ainda hoje, não obstante o cerceamento legal e moral que lhe é feito.

Frantz Fanon, desde a sua primeira obra, supramencionada, buscou investigar as raízes mais profundas da herança social e psicológica que o Colonialismo deixou em sua vitimas.

Para ele, o negro “querer ser como o branco” poderia ser uma reivindicação justa, mas apenas se olhada pelo aspecto material. Afinal, querer ter melhores escolas, postos de saúde, oportunidades para os crescimentos profissional e financeiro etc. é uma legitima aspiração humana. Porém, esse desejo, segundo ele, vai além da questão material.

O negro abdica de sua cultura ancestral, para tentar viver como os Colonizadores brancos. Em raríssimos casos conseguem, mas apenas para ser um “branco de segunda classe”. Fanon identifica esses indivíduos entre atletas e artistas cujos talentos os elevam acima da média. São pessoas que abrem mão de suas características, de sua tradição, de seus valores para serem apenas tolerados como “um intruso inferior”. E por que o fazem?

Para Fanon as “Culturas Brancas Europeias” tendem a ver o negro como um Ser inferior. Afinal, segundo sua lógica rude e belicista, como classificar um Homem que se deixou escravizar? Um Homem que tanto teme a morte, que troca a independência por uma miserável vida de escravo? Arrogantemente eurocêntricos, salvo as exceções de praxe, não conseguem entender que a Vida pode ser regida por outros valores que diferem dos seus. Que outras pessoas, outras etnias, outras culturas tenham outra Escala de Valores, os quais, não são necessariamente idênticos aos seus.

De acordo com a sua ignorância e com a sua tosca lógica, ao invés de buscarem ampliar seus horizontes, não hesitaram em taxar o Negro como um Ser inferior, derrotado, covarde, primitivo etc. Incapazes de ver e de compreender que a sua endeusada “Cultura Europeia” não passa, ela própria, de uma cópia de valores e de saberes que outros povos, como os negros, os hindus, os indígenas etc. ofereceram à Humanidade. Sem conseguirem enxergar essa óbvia verdade, como bestas irracionais e enfurecidas, avançaram ferozes em seus maléficos propósitos de escravização, saque e roubo e graças à sua feroz belicosidade (típica das inteligências inferiores) subjugaram corpos e mentes. E tal foi a força deste “tsunami” que o próprios subjugados acabaram vendo-lhes “como superiores”. Resignaram-se ao fato de serem os “inferiores” que foram vencidos.

Assim foi que a Negritude como sinônimo de Inferior, moldou a visão dos Vencedores e dos Vencidos que repassaram essa herança maldita para seus descendentes, os quais, em extremo, chegam a considerar a cor de sua pele como sinal de sua inferioridade.

Recorte – os cidadãos (ãs) estadunidenses da raça negra Não se autointitulam de “negros”, mas de “afrodescendentes. Os cidadãos (ãs) estadunidenses da raça branca se autointitulam de “brancos” e Não de “euro descendentes”. Por quê? Ser negro, ainda envergonha os primeiros?

Como resultado dessa visão deformada, a única alternativa seria o desejo de ter “uma existência branca”, mas esse desejo esbarraria na “maldição” de ter nascido com a pele negra.  E por isso nunca seria aceito como “branco”, ainda que abandone os valores de sua etnia e tente abraçar os da outra. Um triste exemplo dessas tentativas está na memória de todos com mais de cinquenta anos – como este escrevinhador – que se lembram de como os homens negros alisavam quimicamente os seus cabelos para ficarem semelhantes aos cabelos dos brancos. Nos EUA essa tendência ainda é forte entre as mulheres, pelo mesmo motivo.

RECORTE – sobre o termo “Maldição” é interessante notar que por inescrupulosa manipulação, religiosos e teólogos de carateres duvidosos não hesitaram em associar a pele negra de Jefé, ou Jafé, filho de Noé, a tenebrosas perversões. Tais perversões seriam castigadas por Deus, fazendo com que os descendentes de Jafé fossem sempre inferiores aos descendentes de Sem, o patriarca dos semitas de pele branca (sic).

Para Fanon, o desejo de ter uma “existência branca” é o que de pior pode haver para se combater efetivamente o racismo, já que além de inibir a valorização da Cultura Negra em suas várias faces, ocasionando rejeições e auto rejeições significativas, traz em seu bojo, como já se citou alhures, o Mal maior de “avalizar” a justiça e o acerto do Racismo.

Noutra parte de sua obra, mas ainda dentro do tema, Fanon escreveu que “a alma do homem negro é um artefato do homem branco”. Ou seja, a ideia do que significa ser negro – ie, “ser inferior” – resulta do Pensamento eurocêntrico que mede todas as coisas segundo sua escala de valores, dentre os quais, como já se disse, estão a conquista sanguinária, a brutalidade, a belicosidade e outros traços da violência que produziu duas Guerras Mundiais. Esse Racismo ainda hoje vigora de maneira implícita e em certos momentos de forma explícita, quando, por exemplo, jogadores de futebol de outras etnias, principalmente a negra, são insultados apenas pelo seu biótipo.

Com efeito, em quê a etnia negra é inferior às demais? Próceres intelectuais e esportivos são vários, assim como, toda uma construção mitológica, religiosa e filosófica que nada fica a dever às similares de outras raças. Nada, pois, justifica o malfadado preconceito, a segregação, a injustiça.

Outra parte a ser destacada no ideário de Fanon é quando ele analisa o movimento ocorrido na França, na década de 1930, chamado de “Négrittude” e que congregava escritores negros franceses e os de língua francesa (inclusive de sua Martinica natal) em torno do objetivo de rejeitar o Racismo e a Cultura Colonialista, que predominavam à época, e fazer uma defesa vigorosa de uma Cultura Negra, compartilhada e independente.

Para Fanon, o movimento fracassou justamente por visar substituir a nefanda Cultura predominante, como forma de superar a discriminação e as injustiças, por outra que se tornaria inexoravelmente similar à substituída, mas com papéis invertidos. O ódio racial e a baixa desforra não poderiam ocupar um espírito elevado como o dele e por isso ele afirmou que ao substituir as posições dos envolvidos no preconceito racial (o negro passaria de oprimido a opressor e o branco vice-versa) nada de efetivo estaria sendo realizado à medida que o Mal em si, o Racismo, permaneceria intocado. A “Négrittude” propunha, de fato, apenas a repetição de um erro brutal.

Para ele, a solução efetiva só acontecerá quando formos além da questão racial. Enquanto permanecermos presos à ideia de Raça, jamais acabaremos com as injustiças. Fanon resumia seu desejo com as seguintes palavras: “Encontro-me no Mundo e reconheço que tenho apenas um Direito. Aquele de exigir um comportamento humano do outro”.

Que se trata de um desejo legitimo não se duvida, é claro. Mas se olharmos com mais objetividade para a realidade, veremos o quanto ele tem de ingênua utopia. O nascimento do “Conceito Raça” se perde na noite dos tempos e seguindo-lhe pari passu vem o Racismo. Como já se disse, neste Ensaio destacamos o Racismo cometido contra o negro, mas sabemos que o mesmo é uma doença que a todos atinge. Nós, humanos, gostamos de pertencer a um conjunto, a um grupo, a uma etnia. Somos “animais políticos” como bem disse Aristóteles. Temos essa carência desde sempre.

E em singular conversão, ao pertencermos a determinado grupo, dele nos apossamos. Somos simultaneamente integrantes e proprietários. E por termos assumido que o grupo é nossa propriedade, tendemos a sobrevalorizá-lo em relação aos demais. Salvo as honrosas exceções, assim somos, assim pensamos e assim agimos (ou gostaríamos de agir se fosse o temor da punição). Esta é a fria realidade. Porém, como nos ensinou Heráclito, tudo muda. Inclusive a realidade. Por isso, talvez esteja em Hegel a fórmula para o Futuro mais justo que desejamos. Adaptando o “Sistema Dialético” do genial alemão, teremos a seguinte configuração:

TESE – a ideia sobre a “superioridade branca” que ainda vigora.

ANTÍTESE – o movimento de valorização do negro, de sua estética, de sua cultura, de seus valores, de sua religiosidade etc.

SÍNTESE – que oferecerá a completa igualdade de Direitos e de Deveres entre os cidadãos (ãs), sem que seja necessário o abandono das características de cada etnia. Afinal é pela diversidade do conjunto que o Todo se enriquece. 

Será, então, a realização do desejo de Homens como Fanon, que ousaram sonhar sem medo de expor a sua própria responsabilidade pelo fato do sonho ainda não ser real.

                                      Para Sonia Alves do Nascimento, serena guerreira do bom combate.

São Paulo, 14 de Março de 2012.

Nota1 - “Cultura Colonizadora Européia, ou Branca” é um termo genérico que obviamente não engloba todas as pessoas brancas e europeias, mas tão somente aquelas cujo pensamento e ação são cordatos com a prática espúria do preconceito e da discriminação. Registre-se, também, que os abusos cometidos por Colonizadores não são inerentes apenas aos “brancos europeus” que tendem para tal vertente. São de uso costumeiro de todos os maus caracteres, de todas as etnias. Pede-se a compreensão dos leitores (as).

Bibliografia Consultada e Recomendada:


Dicionário de Filosofia – Nicola Abbagno
Ed. Mestre Jou – São Paulo, capital.
Tradução – Alfredo Bosi.

O Livro da Filosofia – Anna Hall, editora de projeto e Sam Atkinson, editor Sênior – Londres, Grã Bretanha.
Tradução de Rosemarie Ziegelmaier.

Pequeno Dicionário de Filosofia Contemporânea – Oswaldo Giacoia Junior – Ed. Publi Folha.

Um comentário:

  1. Gostei muito professor. Texto com informações sólidas, mesmo que eu não concorde com alguns pontos. Parabens.

    Cauê

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