quarta-feira, 30 de março de 2011

Gregas Tragédias - 08 - AGAMÊMNON

Ésquilo – 525/456 aC. – Elêusis

Cenário – A frente do Palácio de Agamêmnon em Argos, com um altar central dedicado a Zeus e outras aras, dedicadas a várias divindades, nos lados.

Época da Ação – idade heróica da Grécia – c. 1200 aC.

A 1ª Apresentação – 485 aC. em Atenas.

Personagens:

1. Agamêmnon - filho de Atreu e rei de Argos e de Micenas; comandante supremo dos gregos na guerra de Tróia.

2. Cassandra – filho de Hécuba e de Príamo, rei de Tróia; profetisa, trazida por Agamêmnon como troféu de guerra.

3. Clitemnestra – filha de Tindareu e de Leda; irmã de Helena, a esposa adúltera de Menelau, que fugiu para Tróia com Páris.

4. Corifeu – líder dos anciãos do Coro.

5. Coro – composto por doze anciãos argivos fieis a Agamêmnon.

6. Egisto – filho de Tiestes, primo de Agamêmnon e amante de Clitemnestra.

7. Sentinela, Arauto.

Sinônimos:

Gregos = Aqueus, Argivos, Helenos.

Tróia = Ilion, Frigia.

“Agamêmnon é a obra-prima das obras-primas”

Goethe

Agamêmnon é a primeira “Tragédia” da trilogia intitulada de “Oréstia(1)” e é vista por grande parte dos eruditos como a melhor dentre todas. Admiração que o poeta alemão expôs com maestria na frase em epígrafe.

1- Derivação de “Orestes”, filho de Agamêmnon e Clitemnestra e protagonista da tragédia a qual empresta o nome.

Antes de iniciarmos o resumo comentado, faremos um breve passeio pelos fatos anteriores aos acontecimentos narrados, para que o (a) leitor (a) tenha melhores subsídios para desfrutar da riqueza que brotou da pena de Ésquilo.

O texto é centrado no sentimento de vingança, bem como na sua realização. E não poderia ser diferente, pois a lenda na qual se baseia tem esse sentimento como espinha dorsal. Conta a lenda a história da família dos “Atridas”, ou descendente de Atreu. Nela, lê-se que Pêlops era filho de Tântalo e oriundo da Lidia, na Ásia Menor, de onde saiu para chegar a Élis, na Grécia, como pretendente de Hipodâmia, filha de Enomau, o rei de Pisa. Com a ajuda de Mirtilo, servo do rei, e de maneira fraudulenta, Pêlops conseguiu seu intento. Logo depois, malgrado a ajuda que dele recebeu, matou Mirtilo traiçoeiramente. Mirtilo, em sua hora extrema, lançou uma maldição a Pêlops, a qual se estenderia a todos os seus descendentes. Contudo, o lídio, tornou-se Senhor de toda a região da qual se tornou epônimo, o Peloponeso.

Mas desde a sua primeira descendência a maldição de Mirtilo se manifestou e seus filhos Atreu e Tiestes entraram em luta fratricida pelo trono de Micenas. Ademais, Tiestes seduziu Aerope, a mulher de Antreu, e com a ajuda dela conseguiu apoderar-se do carneiro com lã de ouro, cuja posse asseguraria o trono disputado. Todavia, por ser o preferido de Zeus, Atreu conquistou o trono e logo se vingou do irmão exilando-o de Argos. Tempos depois, insatisfeito com o castigo que aplicara, simulou estar arrependido e propôs uma falsa reconciliação. Para celebrar essa “nova paz”, Atreu serviu um banquete ao irmão, no qual o prato principal era a carne de seus sobrinhos, os filhos de Tiestes. Dos três sobrinhos apenas um sobreviveu, Egisto, e às maldições de Mirtilo, juntaram-se as de Tiestes agravando os maus agouros.

Na geração seguinte, Agamêmnon, filho de Atreu, recebeu a maior carga dessas maldições e prosseguiu na estrada das vinganças. Assim, quis se vingar de Páris por este ter seduzido a sua cunhada, mulher de Menelau, seu irmão; e desejou com tal ímpeto essa vingança que não vacilou em cumprir a exigência da deusa Ártemis e sacrificou Ifigênia, sua própria filha em troca de ventos favoráveis para navegarem até Tróia.

Com isso granjeou o ódio de sua esposa e mãe de Ifigênia, Clitemnestra. Durante a guerra Clitemnestra amasiou-se a Egisto e o ódio de ambos por Agamêmnon resultou na decisão de matá-lo tão logo voltasse da guerra. E assim se deu. Egisto vingou no filho de Atreu a ofensa feita ao seu pai Tiestes; e Clitemnestra vingou-se pela morte da filha. Posteriormente, Agamêmnon seria vingado por seu filho Orestes e por sua filha Electra, que matariam Clitemnestra e Egisto, fato que marcou o fim do ciclo de ódio que percorreu pari-passu a vida do clã.

A encenação tem inicio com a Sentinela postada na torre de observação. Como ele, vários outros soldados foram colocados na rota entre Tróia e a Grécia para que Agamêmnon não chegasse de surpresa.

Após proferir rotineiras queixas sobre o cansaço e o tédio de sua função e a observação de quão é infeliz a casa de Agamêmnon, outrora tão ditosa, ele avista o fogo do próximo ponto, o que lhe indica que Tróia caiu. Que os gregos venceram a dura guerra. Eufórico, brada sua alegria, ensaia alguns desajeitados passos de dança e não policia o volume de sua voz, para ser ouvida no palácio pela rainha Clitemnestra, a qual logo ordena o inicio dos festejos. Prossegue a Sentinela, em tom mais comedido, insinuando o romance entre Clitemnestra e Egisto, mas nada diz claramente, ponderando o acerto de sua mudez, ainda que tal relacionamento seja sabido por muitos.

Enquanto a Sentinela desce do terraço, ouvem-se os gritos festivos no interior da Casa Real e se avista rainha ajoelhada no altar de Zeus como se rezasse. Nisso, entra em cena o Coro e o dia amanhece.

Os doze anciãos que compõem o Coro cantam a ida dos Atridas para a guerra, motivados pela mágoa que a traição de Helena causou. Comparam tal dor à da águia cujos filhotes foram mortos sem que valesse os cuidados que ela teve ao aprontar o ninho. Os deuses se condoeram da pobre ave e liberaram as “Fúrias Vingadoras” para punir os causadores daquela desgraça, mas se viu que o duro castigo aplicado foi inútil e tardio. O mal já tinha sido feito e nada poderia impedir esse fato. O mesmo que teria sucedido em Tróia.

Note-se que além da bela forma na comparação, o Coro canta a inutilidade das vinganças num claro alerta para Egisto e Clitemnestra.

Prosseguem, cantando que tudo acontece como estava escrito e nada é suficiente para mudar os fatos passados. Na seqüência dirigem-se a Clitemnestra, que ainda está rezando, e lhe pedem que os esclareça sobre as noticias comentadas pelo povo, pois eles veem sinais de júbilo em todas as partes. Ante a indiferença absorta da rainha, um deles avança em sua direção relembrando os bons presságios na partida da Expedição e o bom augúrio que se viu na época: duas águias aniquilando uma lebre prenhe de dois filhotes. Eram Agamêmnon e Menelau aniquilando Tróia, como o adivinho do exército, Calcas, bem interpretou. Também alertou na mesma hora para a necessidade de se ter cautela, pois a deusa protetora dos animais, a casta Ártemis, zangou-se com os cães alados de Zeus (as águias) que mataram brutalmente a pobre lebre e seus filhotes ainda não nascidos e colocaria sério obstáculo aos gregos em sua intenção de subjugar Tróia. Continua o ancião citando as palavras do adivinho: o primeiro obstáculo será uma constante calmaria que impedirá os barcos de navegarem e ela só se dissipará após um sacrifício real. Sacrifício crudelíssimo, pois a exigida foi à filha de Agamêmnon, Ifigênia. Desse sacrifício resultará um efeito colateral horroroso que será a luta entre os familiares; ira que não se apazigua e que sempre exigirá vingança.

Note-se que em algumas versões, Ártemis (Diana, em latim) exigiu de fato o sacrifício de Ifigênia, mas a salvou na última hora, como acontecido com Isaac e Abrão, cuja história seria um plágio dessa lenda. A escolha por Ifigênia se deu por ela ser filha de Agamêmnon, o mais velho dos irmãos e quem mais pugnou pela guerra vingativa. Durante a guerra, Ártemis combateu ao lado dos troianos e foi a protetora de Enéas, o protagonista da “Eneida” de Virgilio e o lendário fundador de Roma. De toda forma, tem-se aí a explicação da ira de Ártemis, seu castigo aos gregos e a condição imposta para libertar os ventos que os levariam a Tróia. Ésquilo, magistralmente, informa assim os antecedentes de sua “Tragédia” e relata, ainda, a dor de Agamêmnon, pressionado por um lado pelo amor paternal e por outro lado, pela exigência dos outros lideres gregos que viam na longa espera o inicio da degeneração das tropas e o fim próximo das provisões. Enfim, vencido pela segunda opção, imolou a jovem filha, não obstante os mudos apelos da jovem, após ser amordaçada, e seus gestos desesperados para fugir do terrível destino.

Nesse momento, Clitemnestra termina suas preces e junto com suas criadas caminha em direção ao Coro. Os anciãos, ao perceberem a aproximação da rainha, repetem suas esperanças de que em face das incertezas do Futuro o gesto de Agamêmnon, de sacrificar sua filha, foi o correto. Na seqüência, o Corifeu dirige-se à rainha em tom submisso dizendo que a reconhecem como legitima governante, em conjunto com o rei ausente e que estão dispostos a fazer o que ela julgar melhor.

Clitemnestra evoca um novo dia cheio de júbilo e lhes informa da tomada de Tróia. Ante a incredulidade (sincera ou só convencional?) do Corifeu, afirma que a noticia lhe chegou por fonte segura e não como resultado de sonhos e premonições, das quais ela desconfia. Respondendo à dúvida do Corifeu sobre que mensageiro poderia ser tão rápido, Clitemnestra explicou-lhe o sistema das fogueiras comunicantes que seriam acesas para dar tal noticia.

Nesse trecho, Ésquilo demonstra todo seu saber sobre a geografia da região, compondo um apreciável painel das localidades existentes entre Argos e Tróia. Também relata um comportamento incomum entre a realeza: Clitemnestra enaltece e agradece o trabalho realizado pelas sentinelas.

O Corifeu torna a simular dúvidas sobre a noticia, embora à trate como muito alvissareira. Pede, novamente, que a soberana repita seu convencimento sobre a vitória grega.

Para convencê-lo, Clitemnestra usa de suposições para ilustrar o que deve estar ocorrendo na cidade vencida, em contraponto ao que ocorrem na festiva Argos. Diz que como azeite e vinagre no mesmo prato não se misturam, embora juntos no mesmo espaço, os gregos e os troianos convivem na mesma localidade. Enquanto o ânimo dos primeiros está voltado para as comemorações pela vitória e pelo conforto dela proveniente, a disposição dos segundos é de luto e pesar, chorando sobre os cadáveres de seus irmãos, esposos, filhos, enquanto as crianças choram sobre os falecidos pais. Diz, ainda, que só espera que seus compatriotas não se entreguem aos excessos brutais, pois mesmo que todos voltem sem mácula é certo que algum deus sentir-se-á ofendido por tantas mortes e haverá de cobrar essa conta do Presente no Futuro. Termina, enfim, o arrazoado dizendo que emitiu modestas opiniões de uma mulher e que tem menos peso justamente por isso.

É patente o domínio masculino na sociedade, o que remete as mulheres a um segundo plano. Posição misógina e chauvinista que perdurou até nossa Era, malgrado as limitações ainda existentes.

O Corifeu elogia sua prudência e clareza ao falar, comparando-a a um homem (sic). Em seguida agradece aos deuses dando-se por convencido da vitória.

Enquanto Clitemnestra volta para o Palácio, o Coro entoa um longo canto no qual homenageia os deuses e critica os ateus e os soberbos, celebrando as virtudes do comedimento (tal como Sócrates), cuja ausência em Páris fê-lo desonrar o lar de seu anfitrião. Também ausente em Helena, cuja lascívia levou-a para a cama do amante e dali para a cidade de Tróia, deixando atrás de si apenas as armas prontas para a guerra. Na seqüência, o canto lamenta a dor do abandono, a saudade da esposa amada e o orgulho ferido de Menelau. Também lamenta as dores nas casas de quem perdeu um ente querido, na guerra que se lutou pela “esposa alheia”. Luta indevida, sem sentido, que atraiu o ódio doutros gregos contra os Atridas. Ódio que enseja a previsão de males e ruínas futuras.

Observe-se neste trecho que o rancor contra Helena não se limitava aos troianos. Também entre os gregos a sua culpa era patente. Outro aspecto a ser notado é que Menelau é retratado na sua dimensão humana. Um homem que sofre por saudade e pela solidão, aspectos que normalmente são ofuscados pela sua face guerreira.

Na seqüência, o Corifeu vê sanada a dúvida que lhe restava com a chegada de um Arauto, há pouco desembarcado. Após tecer os costumeiros elogios e agradecimentos às divindades, especialmente a Apolo e a Zeus, e à Argos natal, dá a noticia que por todos era aguardada: sim, Tróia caiu! E Agamêmnon está a caminho após derrotar Príamo, não deixando pedra sobre pedra da outrora inexpugnável cidade. Volta o líder grego após ter derrubado a prepotência e a soberba troiana. Que lhe sejam, pois, prestadas as mais altas honrarias, pois a sua vitória foi a de todos.

Em seguida, o Corifeu e o Arauto trocam mais algumas informações e cada qual expõe a saudade que sentiram. Os que foram para Tróia, da terra natal; e os que ficaram, daqueles que partiram. Prosseguindo, o Corifeu insinua o pressentimento de que uma grande desgraça se abaterá sobre o Rei e parafraseando o Arauto, diz: “seria bom morrer agora”. O Arauto, porém, replica que sua frase tinha um sentido positivo na medida em que simbolizava a consciência do dever cumprido e a máxima satisfação que poderia querer, ou seja, voltar para casa, junto dos familiares e amigos que, certamente, dar-lhe-iam a merecida e honrada sepultura, ao invés de ficar jogada numa praia troiana. Poderia morrer, por ter deixado no Passado, as dores, os desconfortos, as amarguras, as lutas etc. O Corifeu, contudo, responde que entende sua alegria, o alivio do combatente, mas nada diz sobre a Rainha, limitando-se a dizer que as novidades que conhece estão ligadas ao Palácio Real.

Clitemnestra sai do Palácio e retoma a cena. Primeiro critica o Corifeu e aos outros que não acreditaram na noticia da queda de Tróia, por ela ter vindo através das fogueiras comunicantes. Lembra que foi tratada como ingênua e até como demente, por conta de sua confiança naquele sistema. Agora, vingada dos detratores, diz satisfeita, que ao não compartilhar do ceticismo teve tempo para tomar as medidas necessárias para saudar o retorno do rei, seu Senhor. Em seguida se auto-elogia dizendo que nunca experimentou o amor de outro homem e que sua fidelidade estendeu-se aos bens de Agamêmnon, conservados na integra. Antes de voltar ao palácio, Clitemnestra ouve o Arauto dizer que suas palavras retratam sua alma fiel e generosa.

Não é difícil imaginar a raiva do Corifeu e do Coro ante aquela falsidade escandalosa de Clitemnestra e diante da ingenuidade do Arauto que, provavelmente, seria igual a dos outros guerreiros que voltavam.

O Corifeu alerta o Arauto que as palavras de Clitemnestra serviram apenas para quem não conhece a verdade, pois para quem a sabe não passam de malvadas falsidades. Na seqüência pede noticiais sobre Menelau e o Arauto lhe diz que não mentirá e por isso nada pode dizer já que o paradeiro do mesmo é desconhecido. O Corifeu alude à possibilidade dele ter-se desgarrado por força de uma tempestade e se pergunta se estará vivo? O que dizem os outros navegantes? O Arauto responde que ninguém tem noticias sobre ele e a pedido do primeiro, relata a viagem de volta, porém, diz, será a contragosto que falarei, pois fatos tão tristes não condizem com momentos tão alegres como o que está vivendo. Fala da horrível tempestade que se abateu sobre eles, destroçando várias naus e ceifando a vida de muitos. O navio em que estava salvou-se milagrosamente, bem como ele e o resto da tripulação. Prossegue, dizendo que manhã seguinte, dentre os cadáveres no mar, não se encontrou o do Atrida, vinda daí a esperança de que ele continuaria vivo, embora perdido no imenso Oceano. Finda a narrativa, o Arauto sai de cena.

Assume seu lugar o Coro, que inicia o discurso em que fala sobre o acerto da impudica mulher de Menelau chamar-se “Helena”, pois foi por ela que tantas naus foram destruídas.

Ésquilo propõe a etimologia do nome da seguinte maneira: HELEINa + NAus, cuja tradução literal seria “destruidora de navios ou naus”.

Helena, que foi acolhida por Tróia e só retribuiu com flagelos. Em seguida elogia a virtude de uma honra simples em contraponto à arrogância dos que habitam nos dourados Palácios, mas se perdem em meio às próprias maldades.

Nesse momento, à frente de grande cortejo chega Agamêmnon. Está num carro aberto, puxado por soldados, sendo seguido pelo carro que transporta Cassandra. Ao chegar à frente ao Palácio, os anciãos do Coro curvam as cabeças em submissa reverência, enquanto saúdam o “Herói”. Apregoa o porta-voz dos mesmos, que não são como aqueles que para todos os necessitados dirigem um olhar penalizado, sem, todavia, sentirem pena dos infelizes; e que nos momentos felizes de outrem demonstram alegria maior que a que sentem. São todos, anciãos do Coro, sinceros em seus sentimentos e discursos e é por isso que confessam que quando Agamêmnon preparava a expedição, acharam-no insensato por expor bravos guerreiros e recursos dispendiosos em uma luta cujo prêmio não a justificava. Porém, agora, sua saudação alegre é sincera e verdadeira.

Agamêmnon, ainda no carro, inicia sua saudação dizendo que a dirige primeiro para a terra Argiva, seu berço; e para os deuses que lhe permitiram vencer em Tróia e voltar ao chão que lhe viu nascer e crescer. Dirigindo ao ancião que falou pelos demais, diz-lhe que concorda com sua observação sobre a sinceridade ser rara, enquanto a inveja prolifera. São raros aqueles que veem a boa sorte de outrem sem lhe invejar. Mas que, por fortuna, sabe diferenciar o falso e o verdadeiro companheiro e essa habilidade foi-lhe útil para verificar que entre os companheiros na guerra, apenas Odisseu se mostrou realmente leal, não obstante sua relutância inicial em participar do conflito. Quanto aos outros, será preciso fazer julgamentos urgentes e dar o devido castigo àqueles que se mostraram desleais e malévolos.

Nesse ponto, Clitemnestra retoma sua marcha em direção ao marido, seguida por um cortejo de escravas que trazem uma longa passadeira lilás (o equivalente ao atual tapete vermelho) para que o rei adentre ao Palácio com a pompa devida. Diz Clitemnestra: ilustres concidadãos aqui presentes... E conta-lhes as suas saudades do marido, do desespero que sentia ao receber noticias sobre a guerra, sobre os ferimentos que o esposo teria sofrido e até sobre sua morte. Angústia e desespero que em algumas ocasiões levaram-na a tentar o suicídio, sendo salva da morte, no último momento, pelas servas fiéis. Conta, também, que Orestes, filho e sucessor de Agamêmnon, não está ao seu lado como deveria, por ter sido entregue aos cuidados do amigo Estrófio, da Fócia, que bem a aconselhou a deixar o garoto consigo e, assim, a salvo das funestas conseqüências que poderiam advir da morte de Agamêmnon ou de uma revolta popular. E prossegue enumerando seus sofrimentos por estar solitária e pelas saudades do esposo amado etc. A essas falsidades dá seguimento quando inicia uma série de elogios ao “heróico marido”; “ao leal e forte mastim que cuida de seu rebanho” e outras arengas, até que o chama de “filho único de Atreu” (quando todos sabem que Menelau é seu irmão).

Nota-se, aqui, a genialidade de Ésquilo para ressaltar mais fortemente a hipocrisia de Clitemnestra. Realmente, tratar o marido como filho único, numa época em que era tão grande a importância das filiações, é ilustrar magistralmente o cinismo escandaloso da rainha.

Por fim, convida Agamêmnon a entrar, mas antes que ele pise o chão, manda rudemente suas escravas estenderem os tapetes para que o “heróico marido” caminhe até sua casa. Porém, ao dizer “as justas mãos dos deuses vão encaminhá-lo à Casa que tão cedo ele não pensava ver”, referia-se à Mansão dos Mortos, o Hades, e não ao seu Palácio. E ainda usando de duplo sentido, diz que “está cuidando, sem descanso, para que isso aconteça brevemente”.

Agamêmnon, ainda no carro, responde-lhe com certa acidez, fazendo branda censura ao tamanho do arrazoado e à maneira como ela o saudou, pois tantos elogios e honrarias, para ele, só aos deuses devem ser ofertados; não a um simples mortal como ele.

Clitemnestra, decepcionada, pede-lhe que seja mais especifico sobre suas intenções e Agamêmnon retruca que seus propósitos acabaram de ser expostos. Ante a pergunta da esposa se ele teria feito algum juramento de modéstia, a algum deus em momento de perigo, ele diz que não. Que foi inspirado apenas pela reta virtude. Clitemnestra replica sobre o que faria Príamo se fosse o vencedor; Agamêmnon diz que ele sim aceitaria as honrarias e os tributos prestados que ela lhe ofertou. Clitemnestra prossegue o diálogo, dizendo-lhe que não se deve temer o julgamento do povo, com o que discorda o rei, dizendo temer-lhe sim, pois sabe de sua força. A conversa se prolonga por mais algum tempo e, então, Agamêmnon se diz “vencido” pela mulher e lhe pede que mande alguém tirar-lhe as sandálias, pois irá caminhar sobre o tapete (vermelho) torcendo para que nenhum deus o veja e destrua a Casa Real como punição por aquela insolência. Em seguida aponta para Cassandra e pede que Clitemnestra a trate com generosidade, já que a bela flor troiana foi um presente que os outros gregos lhe deram.

Clitemnestra o conduz pela passadeira e lhe diz que não se preocupe com o belo tapete lilás, pois o mar é pródigo e dará novos materiais para que muitos outros sejam feitos; que os Palácios não admitem limitações vis e nem os Nobres devem dispensar esses requintes que colorem a vida. Prossegue a rainha, dizendo que se os deuses, durante suas longas preces, tivessem ordenado-lhe que enviasse macios estofos para o marido, ela assim o faria, sem se incomodar com a riqueza de cada um dos mimos. E assim procederia, por compará-lo à seiva que sempre vivifica a árvore que a todos abriga. És um pouco, continua Clitemnestra, do Verão que Zeus nos concede em pleno e duro Inverno. Zeus perfeito perfaça o que falta para que tudo aconteça como planejei.

Observe-se que Clitemnestra continua com os exageros superlativos e que na última frase pede que Zeus complete o que faltar para que seu plano tenha êxito. Porém, ao contrário do que Agamêmnon, ou Coro, possa pensar não se trata dos cuidados na recepção do esposo amado. Pede que os deuses, mormente Zeus, não deixem nada faltar que possa comprometer sua intenção de matar o marido.

Seguem Agamêmnon e Clitemnestra um grande cortejo de serva e após a entrada de todos, fecham-se as portas do Palácio. Nesse ínterim, Cassandra permanece imóvel no carro que a transportou.

O Coro volta à Ribalta e entoa um melancólico canto que lhe chega com inexplicável angústia e que tolhe a alegria que o retorno das naus deveria lhe dar. Debalde, tenta compreender o porquê teme alguma desgraça, enquanto canta que nos cataclismos só uma manobra hábil poderá salvar parte da poderosa nau, ou não deixar soçobrar inteiramente a segura casa.

O exemplo que Ésquilo cita: o naufrágio de um navio e/ou a ruína de uma casa consegue ilustrar com perfeição a angústia que assolava os corações dos anciãos do Coro.

Momentos depois Clitemnestra surge na porta do Palácio de onde grita e gesticula para que Cassandra também entre. Diz que Zeus ordenara que a recebesse com urbanidade e que a colocasse com os outros servos.

Cassandra, porém, continua imóvel. E Clitemnestra brada para que não seja orgulhosa, “pois até Herácles já foi vendido e tratado como escravo”. Diz-lhe, ainda, que ela teve até sorte por ser de uma família cuja fortuna é antiga e não de um “novo-rico”, pois estes são extremamente cruéis com seus escravos, animais e empregados.

Observe-se que já na antiguidade o comportamento espalhafatoso dos “novos-ricos” era criticado. Hoje, em regra, sua crueldade se mostra mais como ostentação descabida, como prepotência, como consumismo exagerado, falta de educação, de cultura e outros comportamentos típicos. Outrora, a essa salva de inconveniências juntava-se os castigos físicos.

O Corifeu reafirma a Cassandra a ordem da rainha, mas para si, tem dúvida de que ela obedeça. Parece que advinha a sua personalidade e o seu destino.

Clitemnestra ameaça-lhe com castigos até que obedeça, pois caso seu comportamento seja apenas por rebeldia e não por desconhecer o idioma grego, haverá de domar-lhe o gênio rebelde. O Corifeu insiste com Cassandra, instando-a a obedecer, pois como escrava ela não tem mais o direito de escolha. Clitemnestra retoma a carga dizendo que se ela não entende o idioma, que sinalize com um gesto; mas também isso é inútil. Enfim a rainha lhe diz que logo começarão os sacrifícios, mesmo que deles ela decida não participar.

O Corifeu tenta estabelecer contato com a troiana e sugere que talvez ele necessite de um interprete, enquanto a compara com um animal silvestre que se debate na jaula, inconformado com as cadeias que o prendem. Clitemnestra acrescenta que ela parece uma louca desvairada e que não compreende que agora é apenas um “troféu de guerra”, que refuta o jugo até que seu sangue seja derramado com potentes chicotadas. Mas o Corifeu mostra-se condoído de sua triste sina e torna a fazer-lhe um apelo para que desça do carro e entre no Palácio; que aceite seu destino.

Cassandra desce enfim e entre soluços e lágrimas inicia um lastimoso discurso, o qual, depois, torna-se vibrante, vigoroso, como se ela estivesse em transe profundo, invocando Apolo.

Pergunta-lhe o Corifeu por que invoca Apolo, já que ele é o deus do Sol, da Música, da Alegria; um deus cujos atributos não condizem com tão triste situação?

Indiferente, Cassandra prossegue sua invocação questionando a divindade a que caminhos ele a conduziu e em que casa a levará?

Ingenuamente o Corifeu responde que o caminho é o do Palácio de Agamêmnon e que a casa que entrará será a do próprio. Aos seus pares do Coro, diz que a cativa parece uma profetiza que pressente a maldade.

Cassandra continua seu monólogo dizendo-se detestadas pelos deuses, cúmplice de tantas mortes e apontando e olhando fixamente o chão tem uma terrível visão: “aqui está um evidência tétrica! Crianças choram, os cutelos matam-nas e o próprio pai devora-lhes a carne”!

Nessa visão Cassandra revê o tenebroso banquete em que Atreu – pai de Agamêmnon – serviu a Tiestes seus próprios filhos como alimento. Vingava-se do irmão que seduziu a sua esposa e lhe roubou o carneiro cuja lã era de ouro. Mais detalhes no preâmbulo deste capítulo.

O Corifeu alude à fama de suas profecias, mas desdenha dessa sua habilidade, alegando que vários outros profetas já existem no reino. Completamente desinteressada daquela opinião, Cassandra continua seus vaticínios mencionando, agora, os crimes e as maldades que são tramados no Palácio e o quão longe está qualquer socorro (referindo-se à vingança que Orestes fará no Futuro). O ancião diz que entendeu a primeira parte do discurso e que tal assunto é rotineiro nas conversas pela cidade, mas não compreende a segunda metade.

Cassandra, em transe, repreende Clitemnestra que em sua visão mata o marido. Diz literalmente: Oh! Que visão horrível! Vejo o “véu fatal”, vejo uma tenebrosa mortalha! Sim, vem dela, e do bando de “Fúrias Vingadoras” que a segue, tal sudário. Vejo como vocifera o bando criminoso que persegue essa raça maldita (as irmãs Clitemnestra e Helena e os irmãos Agamêmnon e Menelau), para a qual só a máxima pena será apropriada. Veja, a vaca vence o touro! Envolve-o em seu manto malévolo e o domina pelos seus inúteis chifres. Essa, anciãos, é a descrição de um banho mortal.

Cassandra cita o “banho mortal” numa alusão à banheira de prata em que Clitemnestra deitou Agamêmnon para matá-lo.

Enquanto Cassandra verbaliza suas horríveis visões, o Corifeu e os outros anciãos sentem o sangue lhes faltar, o coração acelerar e a vista turvar ante o terror que vai sendo descrito. Cassandra retoma suas previsões, dizendo que são seus males e tristezas que constroem as palavras que fala. E como se estivesse dirigindo a alguém, indaga: “por que me conduziste até aqui? Para morrermos juntos? Para que?”

O Coro diagnostica-lhe ensandecida, ou presa de um demônio, enquanto ela diz que a afiada espada de dois gumes a espera. O Coro lamenta as tantas desgraças que ela prediz e que eles pressentem como reais. Cassandra continua sua arenga vituperando o rapto que Páris cometeu e do qual resultou a queda de Tróia. O Coro, enfim, compreende todo seu Oráculo e se mostra condoído por destino tão adverso. Lamentos se ouvem nas palavras da troiana, que chora por sua Cidade e pela própria morte que não tardará. Os anciãos compartilham sua dor pelo que passou e pelo que ainda virá.

Cassandra, mais serena, muda seu discurso dizendo que doravante suas profecias serão mais claras, objetivas. Sabe que a morte a colherá em breve e da enorme tragédia nos crimes que se sucederam no Palácio dos Atridas.

Crimes que começam pelo adultério da esposa de Atreu com seu cunhado Tiestes, irmão do marido. Passam pelo roubo do carneiro com a lã de ouro que ambos cometeram para prejudicar a assunção de Atreu ao trono e vão para a horripilante vingança do marido e irmão traído, quando ele matou seus sobrinhos, filhos de Tiestes, e serviu a carne dos mesmos ao pai em um banquete que comemoraria a falsa paz restabelecida.

Também diz ver as “Fúrias Vingadoras” e outras entidades malignas que cercam o Palácio e promovem os atos horrendos que ali acontecem. Por fim, diz ao Corifeu que ele confirme se as suas visões foram exatas, pois a partir dessa confirmação, suas predições serão novamente acreditadas. O ancião as confirma e admirado com a exatidão das mesmas diz não entender como ela pôde saber de tudo aquilo morando antes em terra tão distante. Diz-lhe Cassandra que Apolo deu-lhe o dom da Profecia; e, respondendo à pergunta do ancião sobre o fato do deus ter-lhe desejado, diz que até aquele momento teve pudor em comentar tal fato, mas que não vê mais motivo para declinar o assunto. Sim, ele a desejou; e ela teve que lutar com tenacidade para não ser possuída pelo mesmo, que só abandonou sua tentativa quando ela prometeu-lhe entregar-se em breve tempo. Enquanto pôde enganá-lo, profetizou para seus conterrâneos a Guerra e a Ruína de Tróia, mas de nada adiantaram tais avisos, pois Apolo fez com que suas profecias fossem desacreditadas assim que viu ter sido enganado, e que ela sempre se recusaria a ele. Satisfeitas suas dúvidas, o Corifeu diz que para eles, suas profecias serão sempre dignas de crédito.

Novamente agitada, Cassandra retoma seu monólogo onde ponteia seu horror ao ver os espectros dos filhos de Tiestes. Visão assombrosa que é substituída pela do assassinato que Clitemnestra cometerá em breve contra Agamêmnon, que ingenuamente regozija-se com os mimos e agrados que a esposa lhe oferece. Horrores tão cruéis e visíveis para ela que os cita fluentemente, pouco se importando se serão criveis ou não.

Nesse monólogo, Ésquilo, atinge o que se chama de “pintura com palavras” tal é a intensidade dos fatos e sentimentos que sua pena transmite ao descrever os sofrimentos de Cassandra. É, indubitavelmente, um dos picos da literatura mundial.

No seguimento, Cassandra dirige-se ao Corifeu dizendo que logo ele poderá confirmar a realização de suas previsões. Responde-lhe o ancião dizendo que ela, de fato, acertou inteiramente sobre os fatos ocorridos que levaram ao trágico banquete, mas que ele não consegue compreender a outra imagem que ela predisse. Replica a troiana dizendo que previu a morte de Agamêmnon e o ancião, aturdido e perplexo, pergunta-lhe que homem cometerá tal ato. Responde-lhe Cassandra que ele está, de fato, longe de sua previsão; mesmo não lhe faltando recursos de oratória, haja vista que domina o idioma tão bem, quanto o seu mesmo. O ancião responde que sim, que ele entendeu o que ela falou, mas que não compreendeu o espírito da mensagem; tal como acontece com a Pitonisa que também fala em grego, mas quase nunca é compreendida.

Cassandra, nesse ínterim, volta a ter nova visão e nela vislumbra a morte que “a leoa de dois pés”, unida ao “lobo”, prepara-lhe, logo após ter executado o “feroz leão”. Clama, depois, contra a injustiça de sua sentença, pois que mal um “simples troféu de guerra”, entre outros tantos, cometeu? Morrerá apenas porque Agamêmnon lhe trouxe como cativa? Em seguida joga fora o cetro real que ainda conservava e o colar de Sacerdotisa. Adereços inúteis, pois logo ela será apenas “um corpo”.

Observe-se o apego dos antigos gregos à vida material, em contraponto com a visão dos Orientais. Como tudo mais, esse apego, esse materialismo, a Grécia exportou ao resto do Ocidente formando uma das características mais visíveis dos nossos tempos. Note-se que agora Cassandra não maldiz o cativeiro, a perda do status de princesa; chora a morte iminente, mesmo acreditando – como os demais – na outra vida, no Hades.

Cassandra segue com suas lamentações execrando os adereços que acabou de jogar fora. Diz que Apolo retirou-lhe o dom da Profecia, tal como antes os gregos a despojaram da condição de Princesa e que agora só lhe resta ser o alvo das zombarias de conhecidos e de desconhecidos. Contudo, fala, não há morte sem vingança e a minha e a de Agamêmnon será vingada por um exilado errante que, certo dia, atenderá ao chamado do falecido pai e o vingará matando a própria mãe e o seu amante. Após ter feito esse justiçamento, com ele se encerrará o ciclo de maldições sobre a casa dos Atridas, mas eu não verei tal época e devo agora preparar-me para enfrentar a morte com serenidade e valentia. Apenas a resignação me resta.

Aqui, Ésquilo já antecipa o mote literário da próxima “Tragédia”, as “Coéforas” ou “Electra”, em que Orestes mata Clitemnestra e Egisto para vingar a morte do pai.

O Corifeu lhe indaga, então, como ela consegue falar da própria morte com tamanha calma e Cassandra lhe responde que já é tempo de seu Destino se cumprir e resistir seria em vão. Retruca o Corifeu um elogio à sua coragem, mas ela diz que tal elogio só é feito aos infelizes.

Aguda e verdadeira é essa observação de Ésquilo, pois é apenas nas horas amargas, que a coragem se revela. Só nas adversidades é que se pode demonstrar coragem e ser elogiado por ela, mas quem troca uma vida feliz por esse elogio?

Cassandra caminha até o Palácio, mas recua assustada. À pergunta do Corifeu, responde que seu susto se deve ao odor de morte que exala da Casa Real; e nem a ponderação do ancião de que o cheiro vem das mortes das vitimas dos sacrifícios a acalma. Logo, doridos soluços saltam-lhe do peito enquanto ela retorna ao Palácio, contudo volta a recuar e ao Coro diz que não a prende um medo infantil, mas sim o desejo de lhes pedir que testemunhem a morte de uma mulher por outra mulher e o fim de um marido pela mão da própria esposa. Ao Sol (ou a Apolo) súplica que dê morte igual a sua aos seus carrascos e caminha enquanto lamenta o quanto é incerta a felicidade humana. Basta que um mal chegue para apagar, como uma esponja, as cores da vida.

Por fim, entra no Palácio e o Coro assume a cena e também canta a incerteza da fortuna. Agamêmnon conquistou Tróia e voltou coberto de glória, porém para quitar o pecado das mortes passadas e executadas por ele e por outros, entrará no Hades ainda naquele dia. Tão indigente quanto o mais baixo dos escravos. Consigo levará apenas os erros que acumulou.

Nesse momento, escutam-se no Palácio gritos aterradores. É o rei que geme e clama: “ai, que me matam” “fui ferido mortalmente”.

O Corifeu pede silêncio e indaga quem foi o autor do grito tão lastimoso?

Novos gritos de Agamêmnon preenchem o espaço: “ai, de novo” “ferem-me novamente, ai”

O Corifeu fala que distinguiu a voz de seu rei. Que é Agamêmnon quem grita. O crime está consumado! Os anciãos perdem-se, aturdidos, e falam irracionalmente.

O 1º ancião diz: num átimo eu lhes digo o que fazer: chamemos o Povo e invadamos o Palácio.

O 2º ancião diz: ajamos agora! Ataquemos já! Enquanto alguém ainda empunha a espada criminosa.

O 3º ancião diz: sim! Também é essa a minha convicção. Não temos tempo a perder com abstratas divagações.

O 4º ancião diz: vejamos; pode ser o prenúncio de planos que nos levarão à funesta ditadura.

O 5º ancião diz: por que estamos indecisos? Eles agem e não se dão ao tolo luxo de hesitar.

O 6º ancião diz: não sei o que fazer em tal situação, mas antes de atuarmos convém deliberarmos.

O 7º ancião diz: também é essa a minha idéia, pois os mortos não podem ser ressuscitados pelas palavras.

O 8º ancião diz: o quê? Apenas por cuidar de nossas vidas, cedem ante a usurpação abominável?

O 9º ancião diz: de modo algum! Melhor seria então morrer.

O 10º ancião diz: e nós aqui, apenas por ouvir gemidos iremos afirmar que há um homem morto?

O 11º ancião diz: devemos ter certeza antes de nos revoltarmos; conjecturar e ver são coisas bem diferentes.

O 12º ancião diz: meu voto é a favor dessa ponderação; certifiquemo-nos da sorte de Agamêmnon.

Optou-se por transcrever as opiniões individuais dos membros do Conselho, para que se admire o esplêndido painel da natureza humana que Ésquilo traçou. Vê-se da entrega corajosa de alguns até a covardia explicita de outros. O poeta dividiu equitativamente as opiniões do grupo entre os corajosos e os tíbios, contudo a opinião desse segundo grupo acaba prevalecendo. É o “Instinto de Sobrevivência” solapando qualquer nobreza de ordem emotiva. Quer-se viver. A lealdade que se tinha ao rei morreu com ele.

Os anciãos, após a votação, rumam para o Palácio e ao chegarem as portas se abrem, deixando ver os cadáveres de Agamêmnon e de Cassandra. Junto deles está Clitemnestra com o rosto e as mãos manchadas de sangue.

Os idosos entram na Casa Real e ouvem o discurso da rainha: Senhores do Conselho, não me envergonho das mentiras que há pouco lhes disse. Eram necessárias para o êxito de meu plano. Agora, direi como o executei: primeiro, envolvi o ex-rei em forte rede, como as usadas pelos pescadores, para evitar que ele fugisse ou se debatesse em defesa. Depois eu o apunhalei por duas vezes e quando ele já estava caído, soltando o último suspiro e esse sangue que me suja, tornei a esfaqueá-lo em honra do grande Zeus. Agora exulto de alegria por ver morto o maldito homem que entornou a taça de desgraças que maculava essa Casa.

O Corifeu, atônito, comenta que está pasmo com a linguagem da rainha. Pergunta a si mesmo, como ela pode vangloriar-se por matar o marido?

A resposta vem da assassina, que diz para não a julgarem louca, pois está na posse de todas as suas faculdades mentais. E prossegue dizendo que a opinião dele, Corifeu, e a dos outros em nada lhe importa. Interessa-lhe apenas que agora Agamêmnon está morto. Que a entenda quem for capaz.

O Coro assume a cena e com tom critico pergunta a Clitemnestra que chá, ou outra beberagem, ela tomou? Estará dopada? Que feitiço a fez ter tamanha ousadia e não temer a revolta do Povo que, certamente a expulsará de Argos, além de outros castigos? Como ela não se preocupa em se tornar uma pária indigente, rejeitada por todos e carregada de todas as maldições?

Contra-argumenta Clitemnestra dizendo estranhar que agora a condenem, mas que nada disseram contra quem também deveriam julgar com severidade. Pois não foi o homem que está morto, quem sacrificou a própria filha apenas para bajular a deusa Ártemis, em troca de ventos favoráveis? Quem o condenou? Esse infanticídio não mereceria a mesma punição, ou maior ainda? Quem, dentre vós outros, consolou-me pela perda da filha amada? Deixem de hipocrisias, anciãos. Aviso aos que me ameaçam: se a Zeus agradar que eu seja destituída do trono, humildemente acatarei vossos castigos; porém, se o contrário acontecer, eu os castigarei de tal modo que apesar da avançada idade, vós aprenderão a serem prudentes e justos.

É difícil discordar de Clitemnestra. Porém, a justiça feita pelas próprias mãos sempre acarreta o risco de se castigar o inocente e livrar o culpado. Quando se delegou a vingança para terceiros, através dos fóruns e juízes, intencionou-se justamente evitar que erros assim fossem cometidos, além de evitar que um eterno ciclo de vinganças foi colocado em marcha. Todavia, já se vê aqui, um exemplo clássico que a “Justiça” privilegia determinadas pessoas, em detrimento das outras. Além do assassinato de Ifigênia não ter sido condenado, qual dos anciãos chora e reclama por Cassandra? Apenas por ser escrava, ou pobre, sua morte será menor que a do rei, ou poderoso?

Retruca o Coro dizendo que ela está tão transtornada pela insanidade que se utiliza das manchas de sangue no rosto e na túnica como se fossem ornamentos. E bradam exaltados: serás repudiada até pelos seus amigos e terás o mesmo fim que destes ao teu marido!

Clitemnestra afirma em tom de solene juramento que a “justiça” que fez à filha sacrificada, dedicada às “Fúrias Vingadoras” dar-lhe-á esperança e não medo, pois confia na proteção de Egisto, seu amigo (sic) mais fiel. Também diz que matou o homem que a humilhou como esposa, traindo-a com Briseida1 e com a própria Cassandra, cujo corpo jaz ao lado do dele.

Briseida, sobrinha do rei Príamo, teria sido destinada como despojo de guerra a Aquiles, mas Agamêmnon a tomou para si e disso resultou a séria desavença entre ambos. O herói, em represália, abandonou a luta contra os troianos, com sérios prejuízos para os gregos, e a ela só voltou quando Agamêmnon a devolveu e seu amigo intimo, Pátroclo, foi morto por Heitor. Para vingá-lo, Aquiles voltou com redobrado furor e matou o príncipe troiano, precipitando a queda de Tróia.

Observe-se esse segundo motivo que Clitemnestra apresenta para justificar o assassinato do marido: infidelidade conjugal. Erro, que seria uma justificativa para que ela fizesse igual ao amasiar-se a Egisto. Já então as gregas não eram passivas propriedades dos maridos, mas detentoras de direitos, inclusive o de exigir lealdade.

Volta o Coro a se pronunciar em tom de lamentação resignada, pedindo pelo fim de suas lentas agonias e por uma morte mais rápida e suave; pois está morto seu amado líder pelas mãos de uma mulher e viver já não lhes parece desejável. Justo ele, que tantas vezes arriscou a vida por outra mulher, a sórdida Helena, foi morto por mão feminina.

A réplica de Clitemnestra tem a mesma entonação que a do Coro, ao lhe dizer que não há motivos para que eles queiram morrer. E que também não é justo lançar toda culpa sobre Helena.

O Coro responde que um “gênio do mal” amaldiçoa a descendência de Tântalo (bisavô de Agamêmnon e de Menelau) e que utiliza para causar tantas dores, mulheres de aparência frágil e virtuosa, mas de alma malévolas. Irmãs de sangue, Helena e Clitemnestra, são como corvos malignos espezinhando um pobre morto.

Clitemnestra concorda com o inicio do discurso dos idosos, pois também crê na existência deste “gênio do mal” sobre a Casa Real. Sim, ele existe! E a nossa sede por sangue vem dele. Antigas chagas nem foram curadas e novas feridas já aparecem.

Sim, concordam os anciãos que dizem: tal gênio é deveras rancoroso. É uma triste evocação, pois nele há muita dor contida. Oh Zeus, que tudo faz e tudo sabe, por que deixas essas maldades perambularem entre os homens? Livra-nos, Pai. Oh Agamêmnon, meu rei, como chorar por ti? Que te dirá meu coração? Tu, envolto na teia da aranha que o matou com a espada de dois gumes.

Como? Indigna-se Clitemnestra. Ousai atribuir somente a mim o ônus desse feito? Vocês não devem mesmo acreditar que eu seja a esposa de Agamêmnon; tomam-me pela companheira do falecido que o gênio usou para vingar o horrível banquete que Atreu, pai do seu rei, serviu. Sim, não atribuam o assassinato somente a mim, debitem-no ao maléfico ente vingador.

Será este o argumento que irá apresentar para proclamar-se inocente? Pode a antiga maldição ser tua cúmplice? Se Ares fez o sangue correr foi para vingar os filhos de Tiestes e não pelas ofensas que tu sofreste?

Não sei, diz a rainha, e pouco me importo se é glorioso ou não o que fiz. Não foi Agamêmnon quem trouxe a morte para dentro de nossa casa, quando imolou nossa filha Ifigênia? No Hades ele não terá motivos para se gabar, pois ele pagou pelo mal que fez primeiro.

Confuso, o Corifeu diz: não sei companheiros, que rota seguir. Temo a “chuva de sangue” (referindo-se ao futuro assassinato de Clitemnestra e Egisto) que não tarda. O Destino já afia suas armas para novas punições. Oh Terra, tu não me engoliste apenas para eu presenciar tantos horrores. Mas diga-me, mulher, quem conduzirá o enterro do rei? Quem fará os votos? Será que tu, Clitemnestra, terá o atrevimento de fingir dor e sofrimento?

Sim, eu o enterrarei. Fui eu quem o matou e serei eu quem o sepultará, mas sem lamentar sua partida. Talvez, a filha que ele matou o receba no Hades com carinho; talvez.

Baixezas e mais baixezas! Mas enquanto Zeus mandar no Mundo sua Lei haverá de vigorar e, então: “quem for culpado, há de sofrer o merecido castigo”! A raça de Atreu está atada à perdição.

Sim, ancião, é verdadeira essa tua fala. Eu juro pelo espírito amaldiçoado de Plistenes (irmão de Atreu e de Tiestes) que estou saciada pelo meu feito e já não quero mais vinganças. Quero que todos os medos se afastem de nosso lar e se juntem à outra raça. Que aqui cessem as tragédias.

Ao fim da fala de Clitemnestra, surge Egisto, vindo do Palácio. Nessa sua primeira aparição, regozija-se ao ver Agamêmnon morto e, conseguintemente, seu pai vingado. Na seqüência ele se dirige ao Coro e conta sobre Tiestes, sobre seu exílio e sobre o tenebroso banquete que lhe foi servido.

Note-se que em sua fala, Egisto omite os erros e os crimes de seu pai, os quais desencadearam os castigos de Atreu. É um comportamento que permanece intacto em nossos tempos. Sempre se usa a versão que atende aos interesses de quem conta uma versão do fato.

Prossegue Egisto, agora contando o novo exílio a que seu pai e ele foram submetidos e como retornou para fazer “justiça”.

Responde-lhe o Corifeu dizendo o quanto deplora sua atitude e o alerta sobre a vingança que o povo fará, apedrejando-o e o amaldiçoando.

Retruca Egisto dizendo que o velho homem não deveria falar-lhe como fez, pois é um subalterno e não tem direito de se dirigir aos “Detentores do Poder” daquela forma. Por fim, ameaça-lhe com cadeia, espancamento e fome para que “aprenda a respeitar os Superiores”. Segundo ele, isto é um “Santo Remédio” para curar a insolência, inclusive a dos mais velhos.

O Corifeu compara-o a uma frágil mulher. Uma covarde mulher, que desonrou o leito alheio enquanto os bravos Homens lutavam em Tróia. Covarde, que meditou o traiçoeiro crime contra um bravo guerreiro.

Na réplica, Egisto ameaça dar-lhe novos e terríveis castigos por causa de sua “petulância”. Responde o Corifeu que ele se engana ao pensar que virá a ser o rei dos bravos Argivos. Ele, que nem foi homem para executar os assassinatos, ficando apenas planejando os mesmos.

Egisto tenta se explicar dizendo que o motivo para não ter matado Agamêmnon diretamente é porque ele era conhecido como inimigo e, assim, levantaria suspeitas se adulasse o rei. Suspeitas que poderiam malograr o plano, mas que não aconteceriam se Clitemnestra encenasse a festiva recepção. Também diz que de posse da fortuna de Agamêmnon poderá dominar o Povo através de mercenárias e brutais repressões.

O Corifeu insiste em chamar-lhe de covarde, por delegar a uma mulher o que lhe caberia fazer. E diz que não tardará para que receba o merecido castigo, através das mãos de Orestes que virá vingar a morte do pai (ver Coéforas e/ou Electra, nessa obra).

Egisto, irritado com os insultos manda os guardas atacarem o ancião, mas este não se intimida e convoca os outros anciãos do Coro para a luta. Prontamente todos se preparam e Egisto diz que está pronto para morrer, ao que o Corifeu retruca que já é um bom augúrio essa aceitação.

Porém, nesse momento, Clitemnestra chega à cena e fala com Egisto e com o Corifeu. Ao primeiro apela para que não haja mais sangue derramado, pois as desgraças já são muitas. Aos anciãos, a quem chama de “Ilustres Senhores”, pede que retornem aos respectivos lares e os aceitem como os novos Governantes de fato e de direito, antes que sofram novas e maiores repressões. Diz: Senhores aconteceu o que fatalmente iria acontecer, aceitemos todos os golpes do Destino.

Egisto reluta em entrar dizendo que o Povo continuará a insultá-lo. O Corifeu confirma que sim, pois não é próprio dos argivos elogiarem homens malévolos. Egisto o ameaça, o Corifeu idem, com a volta de Orestes e continuam trocando insultos até que Clitemnestra consegue levar Egisto para dentro do Palácio dizendo-lhe que sossegue, pois ambos terão o Poder necessário para impor suas vontades. Para tomarem o trono em definitivo.

O pano desce, deixando ao espectador a oportunidade de refletir que a trágica vida de Agamêmnon foi uma sucessão de falsidades. De falsos valores, de falsas conquistas, de falsas alegrias etc. Por ironia, em sua vida só o fim foi real.

São Paulo, 29/03/2011

Fortuito

Encontro fortuíto
num toque de mãos
por acaso;
como se inesperada vida
rebrotasse no inerte vaso.

Quem nos semeou
no mesmo campo?
Que lira nos tocou
para que no momento exato
encenassemos o mesmo ato?

Coisas dos antigos deuses
que escrevem o Destino.
Amor seguro por inteiro,
por se querer o derradeiro.

Na beira do mar
ouviremos algum encanto.
É o tempo enquanto,
de sonhar o fim da procura.

terça-feira, 29 de março de 2011

Voragem

Sopro de vento
que traz o Outono,
traga-me o verso fugídio
da paixão no Estio.

Sinto tua falta
mulher recém chegada.
Aflige-me tua ausência
e essa minha carência.

Não serei teu amigo,
pois te quero inteira;
corpo e alma que desejo,
sem vestir-me de pejo.

Saber o teu corpo
e beber de tua alma.
Percorrer-te labirinto
e perder-me na voragem crua
de tua imagem nua.

domingo, 27 de março de 2011

Ária

Bachiana que faz
um Brasil erudito
passar pelos olhos
da Soprano, enquanto
a brisa lhe passa
e a saudade se espaça.

A Pátria da infância
tinha cheiro de terra
e gosto de pitanga.
Villa-lobos já embalava
a árvore em que eu sonhava
e que sustinha o ninho do colibri
que, às vezes, ainda me visita
nesse retângulo de Céu,
dez andares acima.

O Solista vibra o Celo
como vivi cada rompante
no fio trepidante.
Ímpeto e brandura,
paixão e tortura,
no Brasil que havia aqui.

Agora não mais...
A cadência no murmúrio
da Mezzo, indica um fim.
Todos os fins.


Para Eliane, ao som da Bachiana n. 5 de Heitor Villa-lobos

sábado, 26 de março de 2011

Luz

Letras da luz escrita
desenham sentimentos,
atos e momentos,
pois a vida é Musa
que de nada nos acusa.

Ainda que tirana
e que imponha limites
à arte dos poetas tristes,
é da pena que vaza
o voo sem asa.

O inicio de uma paixão,
o fim, depois do não,
e o grito da solidão.

Faz-se um Poema,
luta-se contra o Sistema
e se crê que valeu a pena.

Faz-se uma Poesia
(ainda que tardia),
tentando rima e harmonia
em meio à santa revelia.

E no carvão sobre o branco,
acredita-se no fim do tranco.
Na suavidade, na cara-metade
e que se vive a verdade.

POESIA PREMIADA EM 2º LUGAR NO XV CONCURSO INTERNACIONAL DE LITERATURA DA ALPAS XXI - PORTO ALEGRE RS. EM 30/04/2011

sexta-feira, 25 de março de 2011

Fases

Lua quase cheia,
em três fases e meia.

Noite sem fantasmas,
sem riscos, sem miasmas,
como essa insônia
refletida no cristal da Saxônia.

Noite de todos os jardins,
de bêbados serafins
e daquele rouxinol
que canta o amor sob o lençol.

Céu estrelado
como diamante partido.
Como amor reavido
no dia não nascido.

Noite de música distante
e de sonhar cada instante.
Noite de velejar Cervantes
nos mares de antes,
pois se sabe da amada
no perfume na sacada.

                                   Para N.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Ainda

Ainda te sonho,
moça do Rio.
Imagem que sustenta
o muro que me afasta
da melancolia de estar só.
Absolutamente só,
nesse ensaio da dor
cujo pano nunca desce.

Por onde andará
tua alma dourada?
Tua fala cantada,
teu riso brejeiro
e a paixão
dos mares de Janeiro?

Por onde irá
o coração que te dei.
Por onde procurar-te,
Musa de minha
pouca arte?
Em qual poema te perdi,
sentimento que escrevi?

segunda-feira, 21 de março de 2011

Destinada

Ontem, conheci  N. mulher.
Moça da palavra truncada
e do riso inteiro.
Poderia ter sido
outro sonho primeiro,
mas o tempo passou
e eu fiquei.

Resta-me, agora, atar
o sonho à cama,
pois qualquer descuido
voará para longe;
seguirá o trem que seguiu
com minha ausência.

Ontem, por minutos,
voltei a sonhar
novo embarque.
Junto com N. mulher,
terminaria a viagem
que me foi destinada,
mesmo sem a passagem comprada

Que

Que a festa prosseguisse
com a ousadia de Clarice,
e que tal deslumbramento
fosse o único argumento.

Que cessassem os canhões,
morressem os vilões
e que tal seguimento
durasse além do momento.

Que tudo se fizesse
como o jardim que floresce.
E que tal existir
já não fosse um há de vir.

Então, paixão reavida,
reavida seria a vida.

domingo, 20 de março de 2011

Aedo

Porque houve uma rapsódia
o verso se fez azul,
como um céu de Matisse
prolongando a planície.

Agora, o cheiro de chuva
molha a terra e a alma.
Água da paz conquistada,
em amarela tulipa inviolada.

Noite dos prazeres de antes,
das embriagadas Bacantes
de volúpias delirantes
e taças espumantes.

Noite que a canção suaviza
e que à vida beija e alisa,
no cetim da próxima brisa

sexta-feira, 18 de março de 2011

Branca

Branca angústia
que a tinta não encobre.
Fogem as palavras,
como a última
luz do Luar
ante a voracidade
da bruta claridade.

Branca angústia,
da Ninfa errante,
da Musa distante
e do já passado instante.

Branca angústia,
do verso que se recusa
e do silêncio que me acusa.

Branca angústia
que me cala,
do gerânio que nada fala
e do esquecido poema
no vazio da ante-sala

quinta-feira, 17 de março de 2011

Gregas Tragédias - 07 - HÉCUBA

Eurípedes – 485/406 – Salamina

Época da Ação – Idade heróica da Grécia.

Cenário – uma praia do Quersoneso Trácio (península a oeste do Helesponto), vizinho à Tróia, onde as naus gregas se detiveram após a vitória para cumprir o sacrifício exigido pelo espírito de Aquiles. Ao nascer do sol, no fundo as tendas das troianas feitas escravas, ao lado a tenda de Agamêmnon e no alto, com o uso de cordas, o espírito de Polidoro.

Personagens:

1. Agamêmnon – chefe supremo das forças gregas.

2. Coro – das mulheres troianas, escravizadas pelos gregos. Escrava.

3. Hécuba – viúva de Príamo, o rei de Tróia.

4. Odisseu – rei de Ítaca e um dos chefes gregos. Ulisses, em latim.

5. Polidoro – fantasma – filho de Hécuba e de Príamo.

6. Poliméstor – rei do Quersoneso da Trácia, nas cercanias de Tróia.

7. Políxena – filha de Hécuba e de Príamo.

8. Taltíbio – arauto dos gregos.

Sinônimos:

1. Gregos = helenos, aqueus e argivos.

2. Troianos = frígios

3. Tróia = Ilíon (donde Ilíada, de Homero) e Frigia.

Há alguns anos, montou-se uma encenação dessa Tragédia que percorreu grande parte do Brasil. Após a excelente representação, abria-se o debate entre platéia, mediadores, atores, atrizes e diretores sobre a questão: vingança ou justiça. E muita conversa se viu, sem que se chegasse a um denominador comum. Afinal, na ótica de muitos (inclusive desse escrevinhador) usar eufemisticamente o termo “justiça” para acobertar o desejo por vingança é apenas uma das hipocrisias que permeiam nossa sociedade. “Justiça” representa a equidade, o equilíbrio. “Vingança”, o desejo de revanche. Coisas diferentes, como são os sentimentos que ambos representam. E se assim não fosse, como explicar que ao invés de se construir Centros que reabilitem efetivamente os autores de crimes, constroem-se masmorras onde os mesmos são brutalmente castigados. Contra os criminosos não se quer justiça, quer-se vingança. A mesma que Hécuba pediu e que agora vem disfarçada em conceitos ditos civilizados. Porém, despida a máscara da hipocrisia, vemos que Hécuba nos mostra o que somos. O que, ainda somos.

O livro ou a peça começa com o monólogo do espectro de Polidoro, que entre lamentos conta sua curta vida e sua recém morte: quando Príamo viu que Tróia poderia cair, mandou seu filho mais novo, Polidoro, para viver em refúgio na corte de Poliméstor, na vizinha Trácia, a quem julgava seu amigo. Junto mandou um vasto tesouro para que sua estirpe sobrevivesse e tivesse uma fortuna para amparar seu novo crescimento e pudesse recuperar a Casa Real de Tróia. Enquanto as forças troianas, lideradas por Heitor, enfrentavam com êxito as tropas gregas, Polidoro foi bem tratado por seu anfitrião, mas bastou Príamo e Tróia caírem para que fosse assassinado pelo mesmo, interessado em seu tesouro.

Insepulto Polidoro, sua alma vagava sem descanso. E foi nessa condição que se apresentava em sonhos à Hécuba. Porém, após muito rogar, conseguiu a anuência do deus Hefesto para apresentar seu corpo mutilado à mãe no intuito de que lhe fossem dados os ritos necessários à sua passagem definitiva para o Hades, onde descansaria enfim.

Os jovens mortos pela Ditadura, na década de 1970, foram enterrados anonimamente. Mais de trinta anos depois, suas famílias não medem esforços para encontrar seus restos mortais e lhes dar um sepultamento digno. Essa carência de se enterrar os entes queridos com rituais apropriados, de alguma forma traz alguma paz aos que sofrem com sua ausência. Na Antiguidade, berço dessa tradição, além da paz dada aos que enterram essa ação dava ao morto o direito de gozar seu descanso eterno. Nota-se, pois, que tanto naquela época, quanto agora, o sepultamento é um sentimento tão arraigado que alguns eruditos o classificam como o divisor da civilidade e da barbárie. Voltaremos ao assunto.

Prossegue Polidoro narrando o fato dos gregos ainda estarem em Tróia para atender ao desejo de Aquiles, de ser homenageado com o sacrifício de uma jovem virgem troiana. No caso, sua irmã Políxena, em pira fúnebre. Sacrifício a ser executado no mesmo dia em que daria à praia os restos mortais do narrador. Dupla e excruciante dor para Hécuba, que chorará a morte de mais dois filhos.

Hécuba, nesse momento conclama outras troianas a lhe ajudarem a erguer-se, enquanto chora a baixa condição a que foi lançada: de rainha à escrava. Lamenta-se e suplica a Zeus que afaste os pesadelos a que vem tendo com Polidoro, à derradeira esperança de um dia a Casa Real de Príamo ser restaurada. Ainda ignorando o assassinato do filho, roga que Poliméstor zele por ele. Também pede ao “Pai dos Deuses” que interceda a favor de Políxena e conta como se acelera o coração, oprimindo-a junto com a má intuição de novas desgraças. Lamenta que Cassandra e Heleno, seus filhos capazes de profetizar, esteja mortos ou inacessíveis, pois eles poderiam decifrar os maus agouros que a perseguem.

Sabe-se que Cassandra foi tomada como concubina por Agamêmnon. Sobre Heleno, sabe-se que foi aprisionado pelos gregos após ter lutado com valentia, tomando o lugar que fora de Heitor. Ambos receberam de Apolo o dom das profecias, mas as feitas por Cassandra não eram acreditadas, como castigo por ela ter-se recusado ao deus Sol.

Na seqüência o Coro, formado pelas mulheres troianas, toma a cena e conta a Hécuba o que ouviram nas tendas de seus novos Amos: depois de acirrado debate entre os mesmos, ficou decidido sacrificar uma jovem à memória de Aquiles, cujo espectro controlou os ventos impedindo que as naus zarpassem antes de cumprir o que ele exigia. Graças a Odisseu, que desempatara o pleito, convencendo a todos com sua proverbial habilidade, a escolhida foi Políxena, pois segundo ele, só uma jovem de alta estirpe estaria à altura de um herói como Aquiles. Contra o sacrifício estava Agamêmnon - talvez por influência de Cassandra – e a favor do mesmo estavam os filhos de Teseu, Acamas e Domofon.

Assim, mãe Hécuba, dizem-lhe, agarre-se aos joelhos de Agamêmnon e peça-lhe que não permita o sacrifício de sua bela filha. E implore aos deuses e até aos entes infernais, que não deixem tal horror acontecer. Vá, rainha, não demorará Odisseu vir para arrebatar-lhe a filha querida. Vá Hécuba!

Atônita, desesperada, ferida, Hécuba clama a sua impotência, seu desamparo. O horror do seu cativeiro, de sua solidão. Morto o marido, mortos os filhos, derrotados os súditos e distantes os deuses; quem a defenderá?

Trôpega, cambaleante, sob o peso de tantas desgraças, dirige-se à tenda de Políxena que a atende trêmula e temerosa. Indaga da mãe o que a traz naquele estado, por que tamanho desespero? Hécuba vê no temor da menina uma intuição sobre a desgraça porvir, mas Políxena diz que seu medo e seu pranto são motivados pela vida miserável que a mãe agora leva e não por ela mesma. E Hécuba retruca o mesmo: chora por Políxena, sua filha imaculada. Políxena, então, pede-lhe que diga a verdade sem rodeios, pois sente seu medo crescer com o silencio da mãe e Hécuba lhe fala que os gregos decidiram que a sacrificarão sobre o túmulo de Aquiles...

É deveras importante a observação de Bertolt Brecht (1898-1956) sobre o cozinheiro de Alexandre, o Grande. Tomando tal anedota é possível refletir e imaginar o tamanho de cada tragédia pessoal e familiar que se oculta sob a lápide fria das “execuções”, “sacrifícios” e quejandos. Quanta dor fica represada e escondida pelos números que fazem a História? Seria possível mensurar quantas lágrimas anônimas foram derramadas e desdenhadas?

Após ouvir os terríveis detalhes de sua execução, Políxena tenta consolar a mãe, lamentando tão duro fim de vida. Sobre sua morte, não se queixa, pois a prefere ao invés de uma vida de escravidão.

Esse tema, a Eutanásia, ultimamente veem freqüentando algumas rodas. Uma vida miserável, sofrida, dolorosa, sem expectativas de melhora é preferível à morte? É um assunto controverso que não será esmiuçado aqui, limitando-nos ao registro de sua atualidade. Há milênios é um assunto que ronda a Humanidade.

Pouco depois, o Coro alerta as duas sobre a chegada de Odisseu, que logo se dirige a Hécuba informando-a que levará Políxena para ser sacrificada no túmulo de Aquiles, por Neoptólemo, o filho do herói. Aconselha-a a não se rebelar, pois em sua mísera condição tal reação seria insensata e inútil.

Entre lamentos por ter sobrevivido aos filhos e por ser alvo de tantas desgraças, Hécuba invoca o direito dos escravos fazerem perguntas aos Amos. Após a concordância de Odisseu, indaga-lhe se ele recorda-se de quando veio espionar Tróia e ela, apesar dele ter sido reconhecido por Helena sob os andrajos do disfarce, deixou-o ir, salvando-lhe a vida? E lhe indaga-lhe se não se considera um malvado que só faz o máximo de mal. Tu, prossegue, és um Sofista e como os outros, atrás das belas palavras só a Maldade traz. Porque veja, o que haverá de útil para os gregos no assassinato de minha filha? Não seria possível sacrificar um boi? Será Aquiles quem pede o sangue de quem o matou? Mas, se é assim, por que matar essa inocente, que nem participou da guerra? Por que não sacrificar Helena, a verdadeira culpada pelo conflito? Seja justo Odisseu! Lembra-te que já tocastes minha mão pedindo clemência. Agora sou eu quem te pede indulgência, que cobra a bondade que tive contigo. Não me tires Políxena, pois ela é a alegria que me restou. É o meu consolo, o meu bastão de apoio. Convence os outros gregos da impropriedade de assassinar uma inocente.

Note-se nesse discurso de Hécuba o seu egoísmo sem recato. Ao invés de dizer que Políxena deveria ser poupada por ser jovem, por ter a vida pela frente, etc. ela só diz o quanto a filha lhe fará falta. Interessa-lhe antes de tudo o seu conforto, o seu arrimo. Pensa primeiro que perderá seu bastão, sua guia etc. E nem lhe passa pela consideração respeitar a decisão de Políxena que prefere a morte a uma vida de escravidão.

O Corifeu, representando a líder das troianas, dirige-se a ex- rainha e busca consolar-lhe dizendo que Odisseu atenderá suas súplicas.

Mas Odisseu toma a palavra e diz a Hécuba que não pode alterar o que antes já estava decidido: uma princesa troiana seria sacrificada em honra do herói incomum; e justamente por ser incomum, o maior guerreiro grego, é que a Aquiles o sacrifício não poderia ser vulgar, igual ao que é dado a qualquer medíocre. E se assim não fosse feito, como se iria, no Futuro, conseguir reunir novas tropas em caso de necessidade? Quem se disporia a morrer pela pátria, ou por seu rei, sabendo que sua valentia, que seu denodo não seria convenientemente reconhecido? Ele mesmo não se incomoda com uma vida frugal, mas deseja no seu túmulo todas as honras, pois são essas as perenes. Por fim, diz a Hécuba que dor como a sua, mães, pais e esposas gregas estão sofrendo, pois este é o verdadeiro preço da guerra.

Observe-se que a importância dada aos funerais liga-se à idéia da “vida após a morte”. Essa crença, certamente, foi o alicerce da futura teoria da transmigração das almas, colocada pelo filósofo Pitágoras e, depois, por Platão, após seus estudos na Índia donde absorveu os conceitos superiores dessa matéria no Hinduísmo. Como se sabe, a crença na vida após a morte continua nos dias atuais, mas os detalhes divergem entre as correntes religiosas. Católicos creem no Paraíso, no Inferno; espiritualista, em Karma, reencarnação, espíritos etc.

Após rápida lamentação do Coro, Hécuba diz a Políxena que seus pedidos foram inúteis e que ela deveria pedir clemência a Odisseu, pois talvez ele se condoa de sua sorte. Mas ela diz a Odisseu que sossegue, pois não lhe pedirá a salvação. Diz que deseja a morte, preferível aos horrores da servidão. Que aceita seu Destino e se livra das acusações de covardia que alguns poderiam impingir-lhe (censura à Hécuba?). Que morrerá feliz, ante a possibilidade de se tornar uma reles escrava. Ela, que já foi uma das mais desejadas princesas de Tróia e prometida a tantos Príncipes poderosos não consegue admitir que doravante seja forçada a amassar o pão, varrer um chão, deitar-se com um homem que não deseja. Não! Que lhe matem, pois já não há felicidade em sua vida.

Note-se o quão arraigado era a idéia do “Direito Divino” na Antiguidade. Talvez até mais que nos dias atuais. Para Políxena e outros, os dias felizes não ocorriam por méritos próprios, mas sim pela dádiva dos deuses. Era inerente à cultura da época essa “eleição divina” em que alguns felizardos eram premiados. Era uma crença geral e isso legitimava essas felizes condições. Atualmente esse comportamento prossegue, mas dirigido mais à fortuna que ao Poder. Herdeiros não questionam a legitimidade de uma fortuna que lhes chegou sem sacrifício.

Na seqüência, Políxena dirige-se à mãe e lhe pede que não tente demover-lhe do desejo de morrer, pois tudo que disse ao carrasco grego não poderia ser refutado por ninguém. Nem por Hécuba.

O Corifeu entendendo que ela preferia a honra a uma vida abjeta saúda sua nobreza de caráter.

Hécuba retoma a palavra e também elogia o nobre discurso da filha, mas ainda roga a Odisseu que lhe mate em lugar da menina, pois ela também seria uma vitima importante na medida em que foi de si que nasceu Páris, o matador de Aquiles. Mas Odisseu reafirma que o fantasma do herói exigia o sacrifício da filha e não o da mãe; e como Hécuba insiste para que lhe matem junto, o rei de Ítaca contra-argumenta dizendo que o derramamento de sangue seria excessivo, pois até a morte da Princesa lhe é indesejável.

Pode-se questionar a sinceridade do desejo de morrer que Hécuba demonstra, pois se tal fosse real ela poderia suicidar-se.

Hécuba, em desespero, tenta agarrar-se à filha e persiste na negativa de vê-la caminhar para a morte. Mas a própria Políxena lhe pede que cesse seu arroubo, pois é inútil e só retarda o inevitável. Que Hécuba mantenha a compostura e se despeça de modo suave, pacificador. Que não lhe dê mais esse desgosto na hora de morrer. E saem Políxena, Odisseu e os soldados. Resta Hécuba caída ao solo. Entre as lamúrias que chora, não deixa de maldizer a Helena, a quem debita a culpa exclusiva, segundo ela, de tanta dor.

Raiva compreensível, mas talvez injusta. Se Helena errou ao trair o marido, se Páris errou por tê-la levado para Tróia, também erraram todos eles que permitiram a situação. Mesmo Hécuba é grande culpada na medida em que: se foi desinteressada em defender Páris quando ele foi condenado à morte, por seu marido e pai do menino, enquanto bebê, nada justifica que ela o defendesse em adulto e em falta evidente, cujo resultado nefasto para todos os troianos inocentes poderia ser esperado. Adiante veremos que talvez Eurípedes tenta repassar essa culpa aos deuses, suavizando a dos humanos.

O Coro, agora representando todas as cativas troianas, entoa triste lamento por Políxena e pela longa viagem que farão até as casas de seus novos Senhores. Entre os tristes cantos, adentra à cena Taltíbio, o arauto grego, que pergunta por Hécuba. Espantado pela prostração da mesma, horroriza-se ainda mais com seu aspecto deplorável. Dirige-lhe um pedido enérgico para que mantenha alguma dignidade e a anciã, sem lhe conhecer, indaga-lhe quem é; por que interrompeu suas tristes lamentações. Responde-lhe Taltíbio anunciando uma nova ordem de Agamêmnon para levá-la à sua tenda. Crente que seria para executá-la, Hécuba apressa-se em ir, bendizendo aquela ordem, mas ante a tácita negativa do arauto ela lhe pede que conte como se deu o sacrifício da filha. E ele conta da altiva coragem mostrada pela menina ante a morte, o quê comoveu até aos gregos que lhe prestaram homenagens dignas dos campeões. Também Hécuba elogia a altivez da Princesa, dizendo que sua atitude chega a lhe suavizar a dor pela perda. Em seguida pede ao arauto que diga aos gregos que se afastem do corpo de Políxena, pois ela é quem fará suas exéquias. Que não a profanem e se afastem do local para que más intenções não se sobreponham à decência. Taltíbio parte para executar o pedido que lhe foi dado quase que em tom de ordem. Prossegue Hécuba seu discurso dizendo em tom imperativo a uma ex-escrava que apanhe água no mar para purificar o cadáver e fazer as libações. Diz que tudo fará para lhe dar os melhores adornos e pede às mulheres que furtem de seus Senhores gregos tudo que puderem para ornamentar Políxena. Na seqüência volta a lamentar a perda de seu Palácio e de suas riquezas.

Observe-se que Hécuba ainda usa o tom imperativo de sua condição de rainha. Hábito tão arraigado quanto o da servidão, mostrado por sua ex-escrava e até pelo arauto grego. Atualmente comportamento análogo pode ser verificado na seguinte situação: alguém que execute funções consideradas subalternas atende sem rancores as ordens dadas por quem considerem ricos, poderosos etc. Porém, revolta-se se as mesmas ordens forem dadas por quem considerem “de seu nível”.

O Coro assume a cena e chora o fato de que um julgamento fútil entre três deusas (sobre quem seria a mais bela), feito por um mero pastor (Páris antes de ser reconhecido por Príamo e agraciado com o amor da mais bela mulher do Mundo, Helena) resultasse na queda de Tróia, na matança dos troianos e na escravização das troianas. E, também, em tanto luto entre as gregas que perderam maridos, filhos, irmãos.

Talvez aqui, Eurípedes tente lançar a culpa da guerra nos deuses, ou mais precisamente naquelas três deusas, com o intuito de amenizar a culpa dos humanos. Recurso que ainda hoje é utilizado quando os atos irracionais e nefastos são debitados à “Vontade de Deus”.

Nesse momento a ex-escrava volta à cena puxando um cadáver encoberto. Titubeante, mostra o corpo de Polidoro; Hécuba se prostra ante a nova e inesperada tragédia; transtornada clama aos Céus e em seu desespero interroga ao falecido quem o matou, como se ele pudesse responder. A ex-escrava conta-lhe que retirou o corpo do mar quando buscava a água necessária para os ritos a Políxena. Informação que serve para confirmar à troiana a validade dos pesadelos a que vinha tendo com o filho mais novo. E também para lhe assegurar que o assassino fora Poliméstor que assim se apoderava do tesouro troiano.

Suas tristes lamentações são interrompidas pela chegada de Agamêmnon que lhe indaga sobre o motivo de ainda não ter sepultado o corpo de Políxena, vez que suas solicitações foram atendidas. A resposta, contudo, ele logo adivinha ao ver o corpo de Polidoro. Centrada em sua dor, Hécuba continua o monólogo sobre suas desgraças enquanto analisa a conveniência de pedir a Agamêmnon que vingue a morte de Polidoro. E quando o Atrida faz menção de se retirar, ela decide arriscar o pedido, pois ele é sua única esperança de revanche. Invocando a mão direita, o joelho e o queixo do grego (como era o hábito da época) ela faz o pedido por vingança, desdenhando até da liberdade que Agamêmnon sugere poder lhe dar. Prosseguindo, Hécuba conta-lhe a história de Polidoro e o Argivo lamenta com sinceridade os sofrimentos da anciã que reafirma suas súplicas, alegando inclusive que o concubinato dele com sua filha, fazem-no uma espécie de “cunhado” do falecido.

Nisso o Corifeu comenta que as “Leis Divinas (ou da Natureza)” reduzem os atos e as disposições dos Homens a nada. (Terremotos, Tsunamis e outros cataclismos assim o comprovam) Ante tais “Leis Superiores” inimigos se juntam para combater um terceiro, provando que o Homem não passa de mero fantoche dos deuses (ou do Destino, ou das circunstâncias).

Agamêmnon reafirma sua pena por Hécuba, mas pondera que o rei Trácio é visto como amigo pelos outros gregos, enquanto que seu filho, troiano, é visto como inimigo por seu exército. Desse modo não poderia executar a vingança sem se indispor com suas tropas. E também por temer ser acusado de tendencioso, por vingar o irmão de sua concubina. Hécuba lhe pede então que apenas se omita sobre os fatos futuros. Ela entende as suas razões, pois sabe que nenhum mortal é verdadeiramente livre; suas vontades e atitudes são sempre limitadas pela conjuntura dos fatos. Na seqüência responde à pergunta de Agamêmnon explicando-lhe como executará sua vingança contra Poliméstor, confiante que as mulheres troianas unidas terão força suficiente para tal feito. Enfim, pede-lhe que garanta a ida de uma de suas auxiliares para chamar o rei, dizendo-lhe que tem um assunto a tratar com o próprio e que será de seu interesse; e que garanta a chegada deste, ao acampamento das cativas; também lhe pede que aguarde um pouco mais para o funeral de Políxena, já que ela quer enterrar seus dois filhos juntos. O Atrida consente e autoriza seu desejo.

O Coro assume a cena e canta como foi a noite em que os gregos adentraram a cidade, através do Cavalo de Madeira, mataram os troianos e aprisionaram as troianas. Ao lamento se junta o ressentimento contra Helena e Páris, acusados de serem os culpados pela queda de Tróia.

Observe-se que esse ressentimento, novamente, é exposto e se vê que era generalizado contra o casal. Seria o caso de o Povo assumir como “Verdade” a versão dos governantes?

Nisso chega Poliméstor, com seus dois filhos e com sua escolta, conforme o chamado de Hécuba. Ignorando que o assassinato de Polidoro já era sabido pela troiana, ele saúda a ex-rainha como se ainda fossem amigos e deplora cinicamente suas tristes condições.

Hécuba mantém a farsa e diz que se sente constrangida por sua miséria, não conseguindo sequer fitá-lo. Pergunta-lhe o rei sobre o assunto que a fez chamá-lo e ela diz que é restrito a ele e aos seus filhos e lhe pede que dispense a escolta, no que é atendida prontamente. Em seguida, pergunta-lhe sobre seu filho que está aos cuidados do Trácio e ele responde hipocritamente que está em excelente condição, assim como a integridade do tesouro. Hécuba ainda prossegue a farsa aludindo a um eventual tesouro escondido em local secreto, mas que ele terá acesso, pois é de confiança. Também diz que lhe dará suas riquezas pessoais, escondidas em sua tenda, e a ganância do rei incumbe-se de levá-lo, e os filhos, para o interior da morada.

Pouco depois se escutam os gritos pavorosos de Poliméstor que se queixa de ter sido cegado, enquanto seus filhos eram assassinados. Brada o mutilado rei que lutará contra suas ofensoras com o máximo denodo possível, mas o Coro conclama as outras mulheres troianas a se juntarem às que estavam na tenda, para auxiliarem Hécuba a escapar da cega fúria do Trácio. E Hécuba sai para evitar um golpe dado ao acaso pelo rei e incita às mulheres a terminarem o que começou. Que o massacre dos Príncipes fosse completado.

Poliméstor, cego, sai tateando o caminho e Hécuba dirige-se ao Coro confirmando a mutilação no rei e a morte de seus filhos. Resta ao rei lamentar-se e com o tato buscar uma trilha que o leve às troianas e à vingança. Ao ouvir passos se prepara para saltar sobre as inimigas, mas a lembrança dos corpos dos filhos o detém, pois ele teme que se abandoná-los as troianas irão desmembrá-los e dar os restos aos cães. Tenta voltar à tenda e grita por socorro ao seu exército e ao exército grego, mas como não tem nenhuma resposta de imediato.

Na seqüência, Agamêmnon volta à cena com sua escolta, dizendo ter ouvido os gritos de Poliméstor. Tão altos que se as muralhas de Tróia já não estivessem caídas ele temeria novo ataque dos frigios. O Trácio reconhece sua voz e conta-lhe que ao entrarem na tenda foram ludibriados pelas mulheres que com falsidade seduziram seus filhos até os matarem; enquanto ele teve os olhos perfurados pelos alfinetes de suas túnicas.

Agamêmnon dirige-se à Hécuba, que estava nas proximidades, censurando-lhe a ousadia de ter cometido tais crimes. Poliméstor, ao saber de sua proximidade, tenta feri-la, mas em vão. Agamêmnon lhe pede que abandone seus bárbaros costumes de vingança e escute antes de agir, pois ele irá ouvir as duas partes para julgar corretamente a questão.

Diz-lhe Poliméstor que matou Polidoro por temer que ele se tornasse poderoso e recriasse a grandeza de Tróia. Com isso, talvez, tentasse vingar-se dos gregos, os quais, por sua vez, poderiam retornar à região exaurindo seu País novamente, através dos sucessivos saques em suas plantações e rebanhos para alimentar os exércitos, tal como fizeram nas duas expedições contra Tróia. Ou, mesmo que Polidoro não buscasse vingança, poderia ser alvo dos gregos que temeriam deixar viver um descendente de Príamo, causando os atos nefastos, que expôs acima, aos vizinhos de Tróia, com nova guerra.

Hécuba toma a palavra e se dirige a Poliméstor dizendo que sua versão é falsa, pois se ele queria prestar um serviço aos gregos, por que ele não matou o menino enquanto Príamo e Heitor ainda viviam? Sua covardia não lhe permitiu? O real motivo foi mesmo a sua cobiça pelo ouro que Polidoro guardava. E se ele fosse tão leal aos gregos, como disse, por que não dividiu ou ofertou esse ouro aos seus ditos amigos? Dirigindo-se a Agamêmnon, Hécuba continua seu arrazoado dizendo que se o Atrida apoiar o assassino será considerado malévolo, pois apoiaria quem foi infiel aos deveres dos anfitriões e desprezou a Justiça dos deuses e dos Homens.

Agamêmnon retoma a palavra dizendo da dificuldade de avaliar os erros alheios, mas que julgaria atos tão extremos. A Poliméstor diz que não acredita em sua versão e crê que seu motivo era mesmo só a ganância. Também lhe diz que faltar aos deveres dos anfitriões é um crime grave na Grécia, não podendo ser perdoado.

Poliméstor lamenta sua decisão e o fato de ter sido vencido por uma mulher reduzida à escravidão e diz que chora pelos seus olhos e por seus filhos perdidos.

Hécuba replica que também chora seus filhos mortos, mas que se alegra por sua vingança ter atingido quem lhe fez tamanho ultraje.

A altercação entre ambos prossegue e Poliméstor profetiza que ela nem chegará à Grécia, pois antes, o deus Dionísio a transformará em cadela. Também profetiza que Cassandra morrerá em breve, como predisse o Oráculo do deus citado. A Agamêmnon, o Oráculo diz que ele morrerá tão logo chegue à casa pelas mãos da própria esposa. Agamêmnon invoca a proteção dos deuses, enquanto o Trácio continua com seus vaticínios irritando o chefe grego. Ultrajado, o Aqueu manda seus soldados levarem-no para algum lugar deserto. E ordena que Hécuba sepulte seus filhos e se apronte, pois como o Coro, ela deverá se apresentar ao seu Amo, já que o vento favorece a partida rumo à Grécia. Tróia deixou de existir.

Em 1870, Henrich Schiemann dirigiu-se à Turquia atual e através dos relatos de Homero, na Ilíada, iniciou uma escavação que resultou na descoberta das ruínas de Ilion e do tesouro de Príamo. Por ter cometido erros metodológicos, a descoberta de Schiemann recebe criticas de vários eruditos, mas é inegável que a cidade de Tróia não é uma fantasia do poeta grego. Em relação à Guerra, acredita-se numa licença poética de Homero.

Rio, 17/03/2011

quarta-feira, 16 de março de 2011

Lixo

O homem da reciclagem
recolhe a placa de Homenagem
e pragueja alguma malandragem
enquando segue a dura viagem,
pois se tal não fizesse
seria preso por vadiagem
na próxima abordagem
do Capitão coragem.

Puxa a carroça,
responde à troça
e assobia assustado
pela estranha voragem
deitada no lixo da burguesia,
que renova sua compulsão
a cada novo dia.

Talvez sonhe com outra vida,
mas teme ser apenas uma Miragem.
Um vacilo, mano,
na força e na coragem.
O resto é bobagem...

terça-feira, 15 de março de 2011

Gregas

Trágicas mulheres gregas,
dizei-me quando chega
o mito da felicidade.
Em qual página
dorme escondida
a paz quase esquecida?
Em quais piras
arderam todas as iras?
Onde estarão os heróis
e o ouro que nada corrói?

Digam-me, gregas mulheres,
após qual travessia
o monstro da agonia
será ceifado
por Ares alado?

Quando, mulheres trágicas,
serão reais as mágicas,
as poções, os elixires
e a nobreza de Aquiles,
nesse tempo de deslizes?

E por fim, Helenas,
digam-me
em qual bosque se despe
a deusa mulher,
musa e música
do poeta qualquer.

domingo, 13 de março de 2011

Terror

O grito na noite
verbaliza o terror.
Frágeis estamos
na toca dos cêntimanos.

É noite das maldições lançadas,
das bestas-feras aladas
e das almas apenadas
pelas culpas passadas.

Confabulam duendes e gnomos,
nesse livro de tantos tomos,

a eterna questão de quem somos:

talvez bruxas e demônios,
ou só avessos anônimos.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Jarro

Cai o cigarro
sobre o tapete.
Ainda o levanto
por temer as chamas de Dante.
Até quando esse levante?

Em que ponto
vencerá a angústia
esse fim,
que tudo apagaria,
nas cinzas do próximo dia?

Repito o café
e o cigarro,
na esperança
de ser o último jarro.
Na espera
da quebra do jarro,
que lavará em barro
essa inconsistência
que chamam de existência.

Um lápis e um papel
dão-me algum alívio.
E a incerteza
de um alvo delírio.
Poema de quem não morreu,
do semi extinto eu,
que olha o correr do carvão,
nesse imenso não.

POESIA DISTINGUIDA COM "MENÇÃO HONROSA" COM XV CONCURSO INTERNACIONAL DE LITERATURA DA ALPAS XXI - PORTO ALEGRE RS. 30/04/2011