Notas à Edição
A obra "Adaptação de OS LUSÍADAS para o Português Atual", cujos trechos são publicados neste Blog, está devidamente registrada na BN/EDA e protegida pela Lei 9.610 de 19-02-1998 que protege os Direitos Autorais. Abaixo os dados de Registro da obra. Respeite os Direitos Autorais.
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É PROIBIDA QUALQUER CÓPIA OU EDIÇÃO SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DO AUTOR DA ADAPTAÇÃO.
1. Correções ortográficas foram feitas apenas nas Estrofes Adaptadas, por motivos óbvios.
2. No texto original, provavelmente escrito em 1556 e publicado pela primeira vez em 1572 (pouco depois do descobrimento do Brasil), Camões emite conceitos e Juízos (ou Julgamentos) que eram apropriados à sua época, mas que atualmente são considerados ofensivos. Por fidelidade ao texto, o autor da Adaptação conta com a compreensão dos (as) leitores (as) por ter transposto alguns desses Conceitos, os quais não são, obviamente, endossados pelo mesmo.
3. Os deuses gregos são chamados pelos seus nomes em latim. Embora incorreto, o autor da adaptação optou por tal modo em vista de estarem mais popularizados dessa maneira.
4. Sugere-se que a Estrofe Adaptada (as numeradas) seja lida em primeiro lugar, para que ao se ler a Estrofe Original toda a genialidade de Camões possa ser desfrutada integralmente, quer no tocante ao esquema rimático, quer à perfeição de sua métrica e a todos os outros elementos que o bardo expôs com maestria singular.
5. Por último, o autor dessa Adaptação coloca-se ao inteiro dispor para fazer eventuais e fundamentadas correções, acréscimos ou subtrações, pois o Monumento erguido por Camões merece cuidados que nunca serão excessivos.
Dedicado aos Poetas portugueses:
Filipi Campos Melo (Giraldoff) e Inês Dupas (Libris Scripta)
Canto III
AGORA tu, Calíope, me ensina
O que contou ao Rei o ilustre Gama;
Inspira imortal canto e voz divina
Neste peito mortal, que tanto te ama.
Assi o claro inventor da Medicina,
De quem Orfeu pariste, ó linda Dama,
Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe,
Te negue o amor devido, como soe.
1o Agora tu, Calíope (1), me ensina
A dizer o que contou ao rei, o ilustre da Gama;
Inspira um canto imortal e uma voz divina
Neste meu coração mortal, que tanto te ama.
E então farei com que Apolo, o deus da medicina,
E com quem gerastes Orfeu (2), ó linda dama.
Jamais te troque por Clicie (3), Leucotoe (4) ou Dane (5)
E nem te negue o amor devido ou lhe engane.
1) Calíope: Musa da poesia épica e da eloqüência, mãe de Orfeu.
2) Orfeu: Poeta e músico da antiguidade, natural da Trácia.
3) Clicie: Ninfa apaixonada por Apolo que, para acompanhá-lo sempre, transformou-se em girassol.
4) Leucotoe: Ninfa amada por Apolo.
5) Dane: Ninfa que ao ser assediada por Apolo pediu socorro à mãe Terra e foi metamorfoseada em Loureiro.
Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo,
Como merece a gente Lusitana;
Que veja e saiba o mundo que do Tejo
O licor de Aganipe corre e mana.
Deixa as flores de Pindo, que já vejo
Banhar-me Apolo na água soberana;
Senão direi que tens algum receio
Que se escureça o teu querido Orfeio.
2o Ponha Ninfa, arte em meu desejo
De louvar como merece a gente lusitana;
Que todo mundo saiba e veja que às margens do rio Tejo
A água da fonte de Aganipe (1) corre e emana.
Afaste-te das flores do monte Pindo (2) que eu já vejo
Os raios de Apolo banharem-me em sua luz soberana;
Senão direi que tens receio
Que o meu canto obscureça o do teu querido Orfeio (3).
1) Fonte de Aganipe: Situada no monte Helicon, na Grécia, suas águas inspiravam os poetas.
2) Monte Pindo: situado na Grécia, consagrado a Apolo e às musas.
3) Orfeio: ou Orfeu, vide nota 2 da estrofe 1. Aqui, Camões altera sua pronúncia para efeito de rima.
Prontos estavam todos escuitando
O que o sublime Gama contaria,
Quando, despois de um pouco estar cuidando
Alevantando o rosto, assi dizia:
- «Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De minha gente a grão genealogia;
Não me mandas contar estranha história,
Mas mandas-me louvar dos meus a glória.
3o Estavam todos prontos, escutando
O que o sublime Vasco da Gama contaria;
Ele, após algum tempo pensando,
Levantou o rosto e assim dizia:
- Ordenas, ó rei, que eu vá falando
Sobre a minha gente e sobre a nossa genealogia;
Não me ordenas contar dos estrangeiros a história,
Mas manda-me louvar de meus patrícios a glória.
«Que outrem possa louvar esforço alheio,
Cousa é que se costuma e se deseja;
Mas louvar os meus próprios, arreceio
Que louvor tão suspeito mal me esteja;
E, pera dizer tudo, temo e creio
Que qualquer longo tempo curto seja;
Mas, pois o mandas, tudo se te deve;
Irei contra o que devo, e serei breve.
4o Que se conte e se louve o êxito alheio,
É o que se costuma e é o adequado;
Mas falar sobre as pátrias glórias, eu receio
Que seja suspeito e inadequado;
E, para dizer tudo o que devo, eu creio
Que o tempo será curto por maior que seja;
Mas se o nobre rei ordena, obedecer se deve;
Mesmo contrário ao auto-elogio falarei de modo breve.
«Além disso, o que a tudo enfim me obriga
É não poder mentir no que disser,
Porque de feitos tais, por mais que diga,
Mais me há-de ficar inda por dizer.
Mas, porque nisto a ordem leve e siga,
Segundo o que desejas de saber,
Primeiro tratarei da larga terra,
Despois direi da sanguinosa guerra.
5o Ademais, atendendo ao que me obriga,
Asseguro nada omitir naquilo que disser,
Mesmo que de tais feitos, por mais que se diga,
Sempre falte algo por dizer.
E para que haja coerência na narrativa,
Daquilo que desejas saber,
Primeiro, falarei da vasta terra,
E depois, relatarei a sangrenta guerra.
«Entre a Zona que o Cancro senhoreia,
Meta Setentrional do Sol luzente,
E aquela que por fria se arreceia
Tanto, como a do meio por ardente,
Jaz a soberba Europa, a quem rodeia,
Pela parte do Arcturo e do Ocidente.
Com suas salsas ondas o Oceano,
E pela Austral, o Mar Mediterrano.
6o Entre a área que o Trópico de Câncer senhoreia,
E que é o ponto, ao norte, a que anseia o sol ardente,
E aquela terra (o Ártico) que de tão fria se receia,
Tanto quanto a do meio (1) por ser muito quente,
Fica a altiva Europa, a quem rodeia
No norte, sob a estrela de Arcturo (2) e no ocidente,
As ondas salgadas do Atlântico Oceano,
E, no sul, as águas do mar Mediterrâneo.
1) Meio – referência à região Equatorial.
2) Arcturo, estrela da constelação do Boiadeiro, na cauda da Ursa Maior.
Da parte donde o dia vem nascendo,
Com Asia se avizinha; mas o rio
Que dos Montes Rifeios vai correndo
Na alagoa Meótis, curvo e frio,
As divide, e o mar que, fero e horrendo,
Viu dos Gregos o irado senhorio,
Onde agora de Tróia triunfante
Não vê mais que a memória o navegante.
7o No lado do Oriente, onde se vê o dia nascendo,
Faz fronteira com a Ásia; mas o rio (1)
Que dos montes Rifeios (2) desce correndo,
Na lagoa Meótis (3), curvo e frio,
As separa, assim como o mar feroz e horrendo
Que viu dos gregos o brutal domínio,
E onde, agora, do que foi a Tróia triunfante
Nada além de uma recordação vislumbra o navegante.
1) Rio Don, na Citia.
2) Rifeios: Montanha na Citia, região da Ásia, de clima muito frio.
3) Meótis: Mar de Azot, sul da Rússia.
«Lá onde mais debaxo está do Pólo
Os Montes Hiperbóreos aparecem
E aqueles onde sempre sopra Eolo,
E co nome dos sopros se ennobrecem
Aqui tão pouca força têm de Apolo
Os raios que no mundo resplandecem,
que a nEve está contino pelos montes,
Gelado o mar, geladas sempre as fontes.
8o Logo abaixo do Ártico Pólo,
Os montes Hiperbóreos (1) aparecem
E os montes fustigados pelos ventos de Eolo (2),
Os quais, com os nomes desses ventos se enobrecem.
Ali são tão fracos os raios de Apolo (3)
Que no mundo resplandecem,
Que a neve é eterna nos Montes
Gelado é o mar e congeladas são as fontes.
1) Hiperbóreos: Montes que existiriam no norte da Europa e da Ásia.
2) Eolo: o deus dos ventos
3) Apolo: deus do sol. O Sol.
«Aqui dos Citas grande quantidade
Vivem, que antigamente grande guerra
Tiveram, sobre a humana antiguidade,
Cos que tinham antão a Egípcia terra;
Mas quem tão fora estava da verdade
(Já que o juízo humano tanto erra),
Pera que do mais certo se informara,
Ao campo Damasceno o perguntara.
9o Ali vivem os Citas em grande quantidade,
Os quais tiveram uma grande guerra,
No principio do Mundo, na antiguidade,
Contra aqueles que habitavam a egípcia terra.
Saber quem estava com a razão e a verdade
(Já que o juízo humano tanto erra)
E com mais certeza se informar
Só indo ao Campo Damasceno (1) perguntar.
1) Campo Damasceno: o paraíso terrestre, onde Deus responderia a questão.
«Agora nestas partes se nomeia
A Lápia fria, a inculta Noruega,
Escandinávia Ilha, que se arreia
Das vitórias que Itália não lhe nega.
Aqui, enquanto as águas não refreia
O congelado Inverno, se navega
Um braço do Sarmático Oceano
Pelo Brús[s]io, Suécio e frio Dano.
10o Mais abaixo a região é formada
Pela Lápia (1) fria, pela rude Noruega,
Pela Escandinávia Ilha (2), que é celebrada
Por vitórias que a Itália não lhe nega.
Ali, enquanto a água não fica congelada
Durante o rigoroso inverno, se navega
Por um braço do Sarmático Oceano (3)
Pelo Brússio (4), Suécio (5) e a fria Dano (6).
1) Lápia: Lapônia, vasta região situada no norte da Europa.
2) Escandinava Ilha: na verdade, uma península. A atual Suécia
3) O mar Báltico.
4) Natural da Brússia ou Prússia.
5) Natural da Suécia.
6) Nome antigo da Dinamarca.
«Entre este Mar e o Tánais vive estranha
Gente, Rutenos, Moscos e Livónios,
Sármatas outro tempo; e na montanha
Hircínia os Marcomanos são Polónios.
Sujeitos ao Império de Alemanha
São Saxones, Boémios e Panónios
E outras várias nações, que o Reno frio
Lava, e o Danúbio, Amásis e Álbis rio.
11o Entre o mar Báltico e o rio Don vivem uma estranha
Gente – Rutenos (1), Moscos (2) e Livônios,
Sarmátas (4) em outros tempos; e, na montanha
Hircina (5) vivem os Marcomanos chamados de Polônios (6)
Que são súditos do Império da Alemanha,
Sáxones (7), Boêmios (8) e Panonios (9)
Outros povos vivem na região do frio rio Reno,
E na dos rios Danúbio, Amasis (10) e o Albis (11), tão sereno.
1) Rutenos: eslavos, do sul da Rússia, da Hungria e da Lituânia.
2) Moscos: natural da Moscóvia, Rússia.
3) Livôneos: natural da Livônia, norte da Europa.
4) Sarmátas: natural da Sarmácia, Europa central.
5) Hircina: cordilheira na Europa central.
6) Marcomanos/Polônios: antigo povo germânico que invadiu a Itália e foi rechaçado por Marco Aurélio. Camões os identifica com poloneses.
7) Sáxones: natural da Saxônia, atual Alemanha.
8) Boêmios: natural da Boêmia, atual região na Eslováquia.
9) Panonios: natural da Panonia, região ao sul do Danúbio, aproximadamente onde ficava a Iugoslávia pré separação em Repúblicas independentes.
10) Rio Amasis: na Alemanha, atualmente chamado de Ems.
11) Albis: o rio Elba.
«Entre o remoto Istro e o claro Estreito
Aonde Hele deixou, co nome, a vida,
Estão os Traces de robusto peito,
Do fero Marte pátria tão querida,
Onde, co Hemo, o Ródope sujeito
Ao Otomano está, que sometida
Bizâncio tem a seu serviço indino:
- Boa injúria do grande Costantino!
12o Entre o longínquo rio Danúbio e o claro Estreito (1),
Onde Hele (2) deixou o nome e perdeu a vida,
Estão os Traces (3) de valente peito,
Cuja pátria que pelo feroz Marte (4) é muito querida;
Ali, junto com o Hemo (5) o Ródope (6) tudo está sujeito
Ao otomano (7), que tem até submetida
A ilustre Bizâncio (8), ao seu serviço indigno.
Uma grande infâmia ao ilustre Constantino (9).
1) Estreito: que separa Tróia do Quersoneso.
2) Hele: filha de Atamante, rei da Beócia, que para escapar do ódio de sua sogra fugiu num carneiro com pelos de ouro que devia levá-la a Cólquida, mas ao atravessar o Estreito caiu no mar e naquele ponto o local passou a ser chamado de Helesponto.
3) Traces: naturais de uma região da Grécia antiga.
4) Marte: deus da guerra que amava a Trácia.
5) Hemo: antigo nome da região do Bálcãs, na Europa.
6) Ródope: montanha na Trácia, onde vivia Orfeu, que segundo a lenda, tocava uma música tão bela que as árvores se reuniam para ouvi-la.
7) Otomano: Turco, mouro.
8) Bizâncio: antigo nome de Constantinopla.
9) Constantino: Constantino Magno, imperador romano, que estabeleceu definitivamente o cristianismo como a religião oficial do império. Seu nome associa-se à defesa zelosa do cristianismo.
«Logo de Macedónia estão as gentes,
A quem lava do Áxio a água fria;
E vós também, ó terras excelentes
Nos costumes, engenhos e ousadia,
Que criastes os peitos eloquentes
E os juízos de alta fantasia,
Com quem tu, clara Grécia, o Céu penetras,
E não menos por armas, que por letras.
13o Na Macedônia (1) vivem as gentes,
Que o rio Axio (2) banha com a sua água fria;
Mais no sul estão a terra e o povo excelentes
Que brilham por seus costumes, artes e valentia,
Terra que gerou os grandes poetas e oradores
E os grandes mestres da alta filosofia
Com os quais, Grécia, tu no céu penetras
(Tanto pelas proezas militares quanto pelas letras).
1) Macedônia: região localizada no norte da Grécia antiga.
2) Rio Axio: atualmente chamado de Vardar.
«Logo os Dálmatas vivem; e no seio
Onde Antenor já muros levantou,
A soberba Veneza está no meio
Das águas, - que tão baxa começou.
Da terra um braço vem ao mar, que, cheio
De esforço, nações várias sujeitou;
Braço forte, de gente sublimada
Não menos nos engenhos que na espada.
14o Perto dali, vivem os Dálmatas (1); e no seio
De onde Antenor (2) as muralhas levantou,
A majestosa Veneza está bem no meio
Das rasas águas, onde a cidade começou.
Dela uma faixa de terra chega ao mar, que quando cheio,
Com violência, a muitos povos já arruinou;
Mas tem o braço forte aquela gente elevada
Tanto na engenhosidade quanto no manejo da espada.
1) Dálmatas, natural da Dalmácia, região da península balcânica, ao longo do mar Adriático.
2) Antenor, nobre troiano que escondeu Ulisses, traindo a pátria e que depois atravessando a Trácia e a Iliria chegou ao mar Adriático. Posteriormente fundou a cidade de Pádua.
«Em torno o cerca o Reino Neptunino,
Cos muros naturais por outra parte;
Pelo meio o divide o Apenino,
Que tão ilustre fez o pátrio Marte;
Mas, despois que o Porteiro tem divino,
Perdendo o esforço veio e bélica arte;
Pobre está já de antiga potestade.
Tanto Deus se contenta de humildade!
15o A região cercada pelos oceanos netuninos (1),
E por fronteiras naturais, em sua outra parte;
Sendo ao meio é dividida pelos montes Apeninos,
Outrora se engrandeceu como a pátria de Marte;
Mas depois que o Papa, porteiro divino,
Foi se perdendo na força e na guerreira arte,
Diminuída está a sua antiga prosperidade,
Vez que Deus se contenta com a humildade!
1) Oceanos netuninos: referência ao deus Netuno, dos mares.
«Gália ali se verá, que nomeada
Cos Cesáreos triunfos foi no mundo;
Que do Séquana e Ródano é regada
E do Garuna frio e Reno fundo.
Logo os montes da Ninfa sepultada,
Pirene, se alevantam, que, segundo
Antiguidades contam, quando arderam,
Rios de ouro e de prata antão correram.
16o A noroeste está a Gália (1), assim chamada
Desde os triunfos dos Césares romanos no mundo;
Pelos rios Séquana (1) e Ródono (2) é banhada,
Assim como pelo frio Garone (3) e pelo Reno profundo,
Lá, os montes da Ninfa Sepultada (4),
Pirene se erguem; dos quais, segundo
Lendas da Antiguidade, quando se inflamaram,
Rios de ouro e de prata jorraram.
1) Gália – antigo nome da França atual.
2) Séquana: nome latino do rio francês Sena.
3) Ródono: rio da França
4) Garone: rio francês que nasce dos Pirineus.
5) Pirene, filha do rei Bébrice, foi seduzida por Hércules e deu à luz uma serpente. Horrorizada fugiu para a montanha onde foi morta pelas feras. Hércules prestou-lhe as honras fúnebres e enterrou-a na serra que passou a ser chamada de Pirineus.
«Eis aqui se descobre a nobre Espanha,
Como cabeça ali de Europa toda,
Em cujo senhorio e glória estranha
Muitas voltas tem dado a fatal roda;
Mas nunca poderá, com força ou manha,
A Fortuna inquieta por-lhe noda
Que lha não tire o esforço e ousadia
Dos belicosos peitos que em si cria.
17o A sudoeste da França fica a nobre Espanha,
Como se fosse a cabeça da Europa toda.
Seu poder e glória na terra estranha (1),
Muita volta tem dado na fatal roda;
Porém, nunca poderá com força ou artimanha,
A sorte colocar-lhe obstáculos ou nódoa,
Que não superem com força e valentia
Os nobres corações que ela cria.
1) Terra estranha – os outros países.
«Com Tingitânia entesta; e ali parece
Que quer fechar o Mar Mediterrano
Onde o sabido Estreito se ennobrece
Co extremo trabalho do Tebano.
Com nações diferentes se engrandece,
Cercadas com as ondas do Oceano;
Todas de tal nobreza e tal valor
Que qualquer delas cuida que é milhor.
18o No sul fica perto da Tingitânia (1); e ali parece
Querer fechar o mar Mediterrâneo
Onde o conhecido Estreito (2) se enobrece
Com o extraordinário trabalho do Tebano (3).
Terra de diferentes regiões, as quais a engrandece;
É cercada pelas águas do Oceano;
E cada região tem tanto valor
Que se imagina a melhor e de mais vigor.
1) Tingitânia: a África do Norte, onde fica o Tanger. Atual Marrocos.
2) Referência ao Estreito de Gibraltar.
3) Tebano: referência as colunas de Hércules, no Estreito de Gibraltar.
«Tem o Tarragonês, que se fez claro
Sujeitando Parténope inquieta;
O Navarro, as Astúrias, que reparo
Já foram contra a gente Mahometa;
Tem o Galego cauto e o grande e raro
Castelhano, a quem fez o seu Planeta
Restituidor de Espanha e senhor dela;
Bétis, Lião, Granada, com Castela.
19o Há o Tarragônes (1), ilustre e preclaro
Dominando a Parténope (2) inquieta;
E o Navarro (3), e as Astúrias (4) que merecem reparo
Por terem combatido os seguidores de Mahometa (5);
Existe o cauteloso Galego (6) e o grande e raro
Castelhano (7) cujo destino neste planeta
Foi restituir a grande Espanha, tornando-se o esteio dela.
E os reinos de Bétis (8), Leão (9), Granada (10) e Castela (11).
1) Tarragônes: Natural da Tarragona, nordeste da Espanha.
2) Parténope: Nome poético da cidade de Nápoles. Cidade e porto situado no sul da Itália. Depois de ter sido dominada por normando, alemães e franceses, Nápoles pertencia aos aragoneses, quando Camões escreveu a presente obra.
3) Navarro: Natural de Navarra, norte da Espanha.
4) Astúrias: Região situada no norte da Espanha.
5) Mahometa: islamita, o seguidor da religião de Maomé.
6) Galego: Natural da Galizia, norte da Espanha.
7) Castelhano: Natural de Castela, centro da Espanha. O principal reino ou província na época.
8) Bétis: região que aproximadamente situa-se na atual Andaluzia.
9) Leão: uma das mais poderosas províncias da Espanha, na época.
10) Granada: cidade da Espanha, na Andaluzia, que até 1492 foi a capital de um pequeno estado árabe.
11) Castela: No contexto de “Os Lusíadas” é o principal reino da Espanha e tradicional adversário de Portugal.
«Eis aqui, quási cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floreça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora; e lá na ardente
África estar quieto o não consente.
20o Por fim, quase no cume da cabeça
De toda a Europa, eis o reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
E onde Febo (1) repousa no Oceano.
Quis o céu justo, que este país floresça
Nas lutas contra o sórdido Mauritano (2),
Expulsando-o da pátria e seguindo-o até a ardente
África, onde ter paz a força lusitana não consente.
1) Febo: outro nome de Apolo, o deus do sol. Neste caso, o próprio sol.
2) Mauritano: o mouro.
«Esta é a ditosa pátria minha amada,
À qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela antão os íncolas primeiros.
21o Esta é a minha pátria, tão generosa e amada,
Na qual, se o céu permitir que eu escape do perigo
E retorne, com esta expedição terminada,
Ficarei até que a morte me leve consigo.
O nome de Lusitânia é derivado
De Luso ou Lisa, que de Baco (1), deus antigo,
Foram filhos ou companheiros.
Conta-se que foram seus moradores primeiros.
1) Baco: o deus do vinho.
«Desta o pastor nasceu que no seu nome
Se vê que de homem forte os feitos teve;
Cuja fama ninguém virá que dome,
Pois a grande de Roma não se atreve.
Esta, o Velho que os filhos próprios come,
Por decreto do Céu, ligeiro e leve,
Veio a fazer no mundo tanta parte,
Criando-a Reino ilustre; e foi destarte:
22o Dos ancestrais descendeu o pastor (1) cujo nome,
Já indica as viris e valorosas proezas que ele teve;
E de quem a reputação não há quem tome
Pois nem mesmo a grande Roma, a isso se atreve.
Essa reputação, o tempo que devora os próprios filhos (2),
Por ordem do céu, levou leve e ligeiro
Para todas as nações do estrangeiro,
Inaugurando assim o povo altaneiro.
1) Pastor: Viriato, nascido entre o rio Tejo e o Douro foi pastor, bandoleiro e depois chefe militar que aterrorizou os exércitos romanos. Do seu nome é que derivaria o adjetivo “viril” para as proezas.
2) Camões alude à marcha do Tempo. O "Velho" é uma referência ao Tempo que ao passar vai consumindo as horas, que sendo geradas por ele, seriam suas filhas.
«Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha,
Que fez aos Sarracenos tanta guerra,
Que, por armas sanguinas, força e manha,
A muitos fez perder a vida e a terra.
Voando deste Rei a fama estranha
Do Herculano Calpe à Cáspia Serra,
Muitos, pera na guerra esclarecer-se,
Vinham a ele e à morte oferecer-se.
23o Depois, um rei chamado Afonso (1), da Espanha (2),
Fez contra os povos mouros tanta guerra,
Que suas sangrentas batalhas, força e artimanha,
De muitos sarracenos tomou a vida e conquistou a terra.
A fama desse rei ficou tamanha,
Desde o Herculano Calpe (3) até a Cáspia serra (4),
Muitos guerreiros estrangeiros, para glorificar-se
Na guerra, a ele se uniram para até à morte oferecer-se.
1) Afonso: rei da península Ibérica.
2) Espanha: neste contexto, toda a península Ibérica, incluindo Portugal.
3) Herculano Calpe: antigo nome do promontório de Gibraltar.
4) Cáspia Serra: as montanhas do Cáucaso.
«E com um amor intrínseco acendidos
Da Fé, mais que das honras populares,
Eram de várias terras conduzidos
Deixando a pátria amada e próprios lares.
Despois que em feitos altos e subidos
Se mostraram nas armas singulares,
Quis o famoso Afonso que obras tais
Levassem prémio dino e dões iguais.
24o Com grande amor interior; e mais movidos
Pelo cristianismo do que pelas honras populares,
De várias terras eram trazidos,
Deixando as amadas pátrias e os próprios lares.
Após terem realizado atos corajosos e elevados
E terem se mostrados guerreiros invulgares,
O famoso rei Afonso quis que proezas tais
Fossem retribuídas com recompensas iguais.
«Destes Anrique (dizem que segundo
Filho de um Rei de Hungria exprimentado)
Portugal houve em sorte, que no mundo
Então não era ilustre nem prezado;
E, pera mais sinal de amor profundo,
Quis o Rei Castelhano que casado
Com Teresa, sua filha, o Conde fosse;
E com ela das terras tomou posse.
25o Dentre estes, Anrique (que dizem ser o segundo
Filho de um rei da Hungria, muito experimentado)
Foi recompensado com Portugal, que no mundo de então
Não era ilustre e nem estimado;
E para demonstrar mais amizade e gratidão
Quis o rei Afonso, que Anrique, o fundador celebrado,
Com a sua filha Teresa, casado fosse;
Assim, com ela, ele das terras tomou posse.
«Este, despois que contra os descendentes
Da escrava Agar vitórias grandes teve,
Ganhando muitas terras adjacentes,
Fazendo o que a seu forte peito deve,
Em prémio destes feitos excelentes
Deu-lhe o supremo Deus, em tempo breve,
Um filho que ilustrasse o nome ufano
Do belicoso Reino Lusitano.
26o Ele, depois que contra os descendentes
Da escrava Agar (1), grande vitória obteve,
Conquistando muitas terras adjacentes,
Fazendo aquilo que ao seu ânimo forte deve,
Foi recompensado por estes atos valentes
Pelo supremo Deus que lhe deu, num tempo breve,
Um filho que abrilhantasse o nome valoroso
Do reino lusitano, guerreiro e poderoso.
1) Os árabes, descendentes de Ismael, filho de Abrão e de sua escrava Agar, a qual, após longo sofrimento encontrou um local propício para criar o seu filho que constituiu família, da qual, surgiram Maomé e toda a raça árabe.
«Já tinha vindo Anrique da conquista
Da cidade Hierosólima sagrada,
E do Jordão a areia tinha vista,
Que viu de Deus a carne em si lavada
(Que, não tendo Gotfredo a quem resista,
Despois de ter Judeia sojugada,
Muitos que nestas guerras o ajudaram
Pera seus senhorios se tornaram);
27o Já tinha voltado Anrique da conquista
De Jerusalém, a cidade sagrada.
Do rio Jordão, a areia já tinha sido vista.
Logo ali, onde a carne de Deus (1) foi batizada.
(Gotfredo (2) não tem mais quem lhe resista,
Após a Judéia ter sido dominada,
E assim, muitos que o ajudaram
Para os respectivos reinos regressaram);
1) Referência ao batismo de Jesus, efetuado por João Batista, no rio Jordão.
2) Gotfredo ou Godofredo de Bulhões, que organizou e dirigiu a primeira Cruzada.
«Quando, chegado ao fim de sua idade,
O forte e famoso Húngaro estremado,
Forçado da fatal necessidade,
O esprito deu a Quem lho tinha dado.
Ficava o filho em tenra mocidade,
Em quem o pai deixava seu traslado,
Que do mundo os mais fortes igualava:
Que de tal pai tal filho se esperava.
28o Quando já estava em avançada idade,
O forte e ilustre Húngaro consagrado,
Seguiu para o reino da Eternidade,
Devolvendo a alma para Quem a tinha criado.
Deixava o filho em tenra mocidade,
O qual faria jus ao seu legado,
Pois aos melhores do mundo se igualava;
Posto que de tal pai, tal filho se esperava.
«Mas o velho rumor - não sei se errado,
Que em tanta antiguidade não há certeza -
Conta que a mãe, tomando todo o estado,
Do segundo himeneu não se despreza.
O filho órfão deixava deserdado,
Dizendo que nas terras a grandeza
Do senhorio todo só sua era,
Porque, pera casar, seu pai lhas dera.
29o Mas o que se conta (não sei se é errado,
Pois é tão antigo que não se tem certeza),
É que a mãe, tomando todo o Estado,
Casou-se novamente com suspeita ligeireza.
O filho órfão ficou deserdado,
Pois sua mãe, com sórdida esperteza,
Alegava que o domínio das terras só seu era,
Pois ao casar-se com Anrique, seu pai a si as dera.
«Mas o Príncipe Afonso (que destarte
Se chamava, do avô tomando o nome),
Vendo-se em suas terras não ter parte,
Que a mãe com seu marido as manda e come,
Fervendo-lhe no peito o duro Marte,
Imagina consigo como as tome:
Revolvidas as causas no conceito,
Ao propósito firme segue o efeito.
30o Mas o príncipe (1) Afonso (que destarte
Chamava-se, herdando do avô o nome),
Vendo que de suas terras não tinha parte,
(Pois a mãe e o novo marido a governa e consome),
Sente ferver o peito, instigado pelo duro Marte
E a sós, planeja estratégias para que as retome.
Remexidos o ódio, a mágoa e o filial sentimento,
Segue firme na execução do seu intento.
1) Príncipe: Dom Afonso Henrique, 1o rei de Portugal de 1128 a 1165
«De Guimarães o campo se tingia
Co sangue proprio da intestina guerra,
Onde a mãe, que tão pouco o parecia,
A seu filho negava o amor e a terra.
Co ele posta em campo já se via;
E não vê a soberba o muito que erra
Contra Deus, contra o maternal amor;
Mas nela o sensual era maior.
31o O campo de Guimarães (1) se tingia
Com o sangue da familiar guerra,
Onde a genitora, que nem mãe parecia,
Ao seu filho negava o amor e a terra.
Combatendo contra ele, conforme já se via;
E não via a arrogante mulher o quanto erra
Contra Deus e contra o maternal amor;
Pois nela a sexualidade imperava com ardor.
1) Guimarães: Cidade portuguesa, chamada de berço da nacionalidade.
«Ó Progne crua, ó mágica Medeia!
Se em vossos próprios filhos vos vingais
Da maldade dos pais, da culpa alheia,
Olhai que inda Teresa peca mais!
Incontinência má, cobiça feia,
São as causas deste erro principais:
Cila, por üa mata o velho pai;
Esta, por ambas, contra o filho vai.
32o Ó Progne (1) cruel, ó feiticeira Medeia (2),
Se em vossos filhos vós se vingais
Das maldades dos pais e da culpa alheia,
Vejam que a rainha Teresa peca ainda mais!
Imoderação sexual e cobiça feia,
Deste erro, são as causas principais:
Cila (3), por um destes motivos mata o próprio pai;
Teresa (4), pelos dois motivos, contra o próprio filho vai.
1) Progne: filha de Pandion, rei de Atenas, irmã de Filomela e mulher de Teseu, que se apaixonou pela cunhada. Progne para puni-lo, matou o próprio filho, cozinhou-o e o serviu ao marido como se fosse um almoço comum.
2) Medeia: lendária feiticeira que degolou os próprios filhos para vingar-se de Jasão que a abandonou.
3) Filha de Niso, rei de Mégara, que para agradar ao amante contribuiu para a morte do próprio pai.
4) Tereza: a rainha, mãe de Afonso Henrique.
«Mas já o Príncipe claro o vencimento
Do padrasto e da inica mãe levava;
Já lhe obedece a terra, num momento,
Que primeiro contra ele pelejava;
Porém, vencido de ira o entendimento,
A mãe em ferros ásperos atava;
Mas de Deus foi vingada em tempo breve.
Tanta veneração aos pais se deve!
33o Mas, logo o príncipe Afonso já tinha o vencimento
E ao padrasto injusto e a mãe cruel à derrota levava;
Já lhe obedecia a terra, que num primeiro momento,
Contra ele, ferozmente, lutava;
Porém excitado pela ira e sem qualquer comedimento,
A própria mãe, em duras condições, ele aprisionava;
Todavia, ela foi vingada por Deus num tempo breve.
Pois aos pais, veneração e respeito sempre se deve!
«Eis se ajunta o soberbo Castelhano
Pera vingar a injúria de Teresa,
Contra o, tão raro em gente, Lusitano,
A quem nenhum trabalho agrava ou pesa.
Em batalha cruel, o peito humano,
Ajudado da Angélica defesa,
Não só contra tal fúria se sustenta,
Mas o inimigo aspérrimo afugenta.
34o Pouco depois, chega o soberbo Castelhano (1)
Para vingar a derrota sofrida por Teresa,
E se põe a combater o filho, aquele singular lusitano,
Que nada esmorece e que nenhuma luta despreza.
Por isso, em batalha feroz, o coração humano,
É ajudado pelos anjos que reforçam sua defesa;
Então, não só contra a fúria se sustenta
Como o duro inimigo afugenta.
1) Castelhano: Afonso VII, sobrinho da rainha Teresa e primo do Afonso.
«Não passa muito tempo, quando o forte
Príncipe em Guimarães está cercado
De infinito poder, que desta sorte
Foi refazer-se o imigo magoado;
Mas, com se oferecer à dura morte
O fiel Egas amo, foi livrado;
Que, de outra arte, pudera ser perdido,
Segundo estava mal apercebido.
35o Porém, após um curto tempo, o forte
Afonso, em Guimarães, é novamente cercado
Por poderosas forças do inimigo; pois de tal sorte,
Fortaleceu-se o adversário para voltar mais irado,
Que apenas a coragem de Egas (1), que se ofereceu à morte,
Livrou o príncipe Afonso de ser derrotado,
Pois se não fosse aquele gesto extremado,
O fragilizado Príncipe seria esmagado.
1) Egas Moniz – súdito de Dom Afonso.
«Mas o leal vassalo, conhecendo
Que seu senhor não tinha resistência,
Se vai ao Castelhano, prometendo
Que ele faria dar-lhe obediência.
Levanta o inimigo o cerco horrendo,
Fiado na promessa e consciência
De Egas Moniz; mas não consente o peito
Do moço ilustre a outrem ser sujeito.
36o O súdito fiel (1) e valente, sabendo
Que o seu senhor não teria resistência,
Vai ao Rei Castelhano prometendo,
Que convenceria Afonso a lhe prestar obediência.
O inimigo então suspende o cerco horrendo,
Confiando na promessa e na influência
De Egas Moniz, sobre Afonso; mas este não aceita
Submeter-se ao Castelhano e a trégua rejeita.
1) Quando Afonso VII, de Castela, cercou Guimarães, Egas Moniz conseguiu que a luta fosse interrompida, comprometendo-se sob palavra de honra, a fazer que o seu Senhor aceitasse as condições do Castelhano, porém Afonso não aceitou cumprir o prometido.
«Chegado tinha o prazo prometido,
Em que o Rei Castelhano já aguardava
Que o Príncipe, a seu mando sometido.
Lhe desse a obediência que esperava.
Vendo Egas que ficava fementido,
O que dele Castela não cuidava,
Determina de dar a doce vida
A troco da palavra mal cumprida.
37o Estava esgotado o prazo concedido,
E o rei Castelhano já aguardava
Que o luso ao seu governo fosse submetido
E lhe prestasse a obediência que esperava.
Egas, vendo-se em falta com o prometido,
Traindo a confiança que o Rei lhe depositava,
Decide sacrificar-se e dar a própria vida
Em troca da promessa não cumprida.
«E com seus filhos e mulher se parte
A alevantar co eles a fiança,
Descalços e despidos, de tal arte
Que mais move a piedade que a vingança.
- «Se pretendes, Rei alto, de vingar-te
De minha temerária confiança
(Dizia) eis aqui venho oferecido
A te pagar co a vida o prometido
38o Junto com seus filhos e mulher, parte (1)
Para com eles resgatar a confiança.
Seguem descalços e maltrapilhos, de tal sorte
Que provocam mais piedade que desejo de vingança;
- Se pretendes Rei Sublime, vingar-te
Por Afonso não aceitar a sua liderança,
Dizia Egas, eis me aqui disposto
A pagar com a vida, o teu desgosto.
1) Egas, não conseguiu que Dom Afonso aceitasse os termos da rendição e, por isso, apresentou-se ao rei Castelhano, já com a corda no pescoço, disposto a pagar com a vida o descumprimento da palavra dada.
«Vés aqui trago as vidas inocentes
Dos filhos sem pecado e da consorte;
Se a peitos generosos e excelentes
Dos fracos satisfaz a fera morte
Vês aqui as mãos e a língua delinquentes:
Nelas sós exprimenta toda sorte
De tormentos, de mortes, pelo estilo
De Sínis e do touro de Perilo.»
39o Veja que trago as vidas inocentes
Dos meus filhos, sem pecados e a de minha consorte;
Se para os vossos corações, boníssimos e excelentes
Matar-me for suficiente para impedir outra morte,
Vejam só em mim, as mãos e a língua delinqüentes:
Apenas nelas, aplica toda sorte
De torturas e de mortes, no estilo
De Sinis (1) e do “Touro” de Perilo (2).
1) Sinis: bandido que matava suas vitimas pendurando-as em árvores.
2) Touro de Perilo: Perilo inventou um touro, oco e feito em bronze, onde assava as suas vitimas.
«Qual diante do algoz o condenado,
Que já na vida a morte tem bebido,
Põe no cepo a garganta e já entregado
Espera pelo golpe tão temido:
Tal diante do Príncipe indinado
Egas estava, a tudo oferecido.
Mas o Rei vendo a estranha lealdade,
Mais pôde, enfim, que a ira, a piedade.
40o Igual fica diante do carrasco, o condenado,
Que mesmo em vida, a morte já tem sentido,
E coloca com docilidade o pescoço no cepo, já resignado
Esperando pelo golpe tão temido:
Assim estava, diante do rei indignado,
O valente Egas, para tudo preparado.
Mas o rei vendo aquela extrema lealdade,
Comovido transformou sua ira em piedade.
«Ó grão fidelidade Portuguesa
De vassalo, que a tanto se obrigava!
Que mais o Persa fez naquela empresa
Onde rosto e narizes se cortava?
Do que ao grande Dario tanto pesa,
Que mil vezes dizendo suspirava
Que mais o seu Zopiro são prezara
Que vinte Babilónias que tomara.
41o Ó grande fidelidade portuguesa
Daquele súdito, que a tudo isso se obrigava!
Fez mais o Persa (1), em sua aclamada proeza,
Quando as próprias orelhas e o nariz cortava?
Ato de lealdade, que ao grande Dário tanto amargurava
Que mil vezes repetindo, suspirava
Que muito mais, ter Zópiro sadio desejara,
Que as “vinte” Babilônias que tomara.
1- Zópiro, persa célebre pela fidelidade a Dário. Segundo a tradição, cortou o próprio nariz e as orelhas e convenceu os babilônios que fora Dario quem lhe infligira este cruel castigo e com isso ganhou-lhes a confiança. Posteriormente abriu as portas da cidade para a invasão das tropas persas.
«Mas já o Príncipe Afonso aparelhava
O Lusitano exército ditoso,
Contra o Mouro que as terras habitava
De além do claro Tejo deleitoso;
Já no campo de Ourique se assentava
O arraial soberbo e belicoso,
Defronte do inimigo Sarraceno,
Posto que em força e gente tão pequeno,
42o Enquanto isto (1), Afonso já preparava
O exército lusitano, tão glorioso,
Para combater o mouro, que tudo dominava
Além do claro rio Tejo, tão precioso;
Já no campo de Ourique (2) se instalava
O acampamento altivo e belicoso,
Em frente ao inimigo Sarraceno (3),
Mas em número muito pequeno;
1) Em 1140, Afonso VII, de Castela, estava pressionado pela guerra contra a província de Navarra (também na Espanha) e Afonso Henrique, de Portugal, era atacado pelos mouros no sul.
1) Alentejo, região de Portugal
2) Sarraceno: mouro.
«Em nenhüa outra cousa confiado,
senão no sumo Deus que o Céu regia,
Que tão pouco era o povo bautizado,
Que, pera um só, cem Mouros haveria.
Julga qualquer juízo sossegado
Por mais temeridade que ousadia
Cometer um tamanho ajuntamento,
Que pera um cavaleiro houvesse cento.
43o Em nenhum trunfo (1) estava apoiado,
Senão em Deus, que o céu regia,
Pois eram tão poucos os cristãos batizados,
Que para cada um, cem mouros haveria.
Qualquer juízo mais equilibrado
Julgaria haver mais temeridade que valentia
Por se confiar em tal agrupamento,
Em que cada um, enfrentaria um cento.
1)Trunfo: ousadas estratégias, novas armas, reforços escondidos etc.
«Cinco Reis Mouros são os inimigos,
Dos quais o principal Ismar se chama;
Todos exprimentados nos perigos
Da guerra, onde se alcança a ilustre fama.
Seguem guerreiras damas seus amigos,
Imitando a fermosa e forte Dama
De quem tanto os Troianos se ajudaram,
E as que o Termodonte já gostaram.
44o Cinco reis mouros eram os inimigos,
Sendo líder aquele que Ismar se chama;
Todos são experientes nos perigos
Da guerra, onde se alcança a ilustre fama.
Seguem-nos guerreiras mulheres, da classe plebéia,
Imitando a bela e forte rainha Pentesiléia (1)
De quem tantos os troianos se valeram,
E as Amazonas (2) que no Termodonte (3) habitaram.
1) Pentesiléia: Rainha das Amazonas, que socorreu Príamo, rei de Tróia.
2) Amazonas: célebre tribo de mulheres guerreiras.
3) Termodonte: Rio em cujas margens as Amazonas viviam.
«A matutina luz, serena e fria,
As Estrelas do Pólo já apartava,
Quando na Cruz o Filho de Maria,
Amostrando-se a Afonso, o animava.
Ele, adorando Quem lhe aparecia,
Na Fé todo inflamado assi gritava:
- «Aos Infiéis, Senhor, aos Infiéis,
E não a mi, que creio o que podeis!»
45o A luz matutina, serena e fria,
As estrelas e o Mundo já separava,
Quando na cruz, o Filho de Maria,
Aparecendo a Afonso (1), o animava.
Ele, venerando Àquele que lhe aparecia,
Entusiasmado pela fé, assim gritava:
Apareça aos infiéis (2), Senhor, aos infiéis,
E não a mim, que creio em ti e no que podeis.
1)Segundo a lenda, Cristo crucificado apareceu para Dom Afonso, em Ourique, no Alentejo, elevando o moral das tropas e do próprio.
2)Infiéis: os Mouros. Curiosamente, na atualidade, são os muçulmanos que chamam de “infiéis” os que não creem no Corão.
«Com tal milagre os ânimos da gente
Portuguesa inflamados, levantavam
Por seu Rei natural este excelente
Príncipe, que do peito tanto amavam;
E diante do exército potente
Dos imigos, gritando, o céu tocavam,
Dizendo em alta voz: - «Real, real,
Por Afonso, alto Rei de Portugal!»
46o Com este milagre o ânimo da brava gente
Lusa, já inflamados, mais se levantavam.
Por obra do seu legítimo rei, este valente
Príncipe, que sinceramente amavam;
E diante do exército inimigo, grande e potente
Tão alto gritaram, que parecia que no céu tocavam,
Dizendo em possante voz: - Real, real,
Lutemos por Afonso, sublime rei de Portugal!
«Qual cos gritos e vozes incitado,
Pela montanha, o rábido moloso
Contra o touro remete, que fiado
Na força está do corno temeroso;
Ora pega na orelha, ora no lado,
Latindo mais ligeiro que forçoso,
Até que enfim, rompendo-lhe a garganta,
Do bravo a força horrenda se quebranta:
47o E foi igual quando por gritos é excitado,
Na montanha, o cão raivoso
Que se lança contra o touro, confiado
na força de seu chifre poderoso;
E o cão ora morde a orelha, ora morde no lado
Ferindo com golpes mais ligeiros que perigosos,
Até que por fim, rasgando-lhe a garganta,
A força terrível do bravo touro, ele quebranta:
«Tal do Rei novo o estâmago acendido
Por Deus e polo povo juntamente,
O Bárbaro comete, apercebido
Co animoso exército rompente.
Levantam nisto os Perros o alarido
Dos gritos; tocam a arma, ferve a gente,
As lanças e arcos tomam, tubas soam,
Instrumentos de guerra tudo atroam!
48o O ânimo do rei estava tão inflamado,
Graças a Deus ao entusiasmo de sua valente
Tropa, que ataca o mouro e é acompanhado
Por seu exército rompedor e excelente.
Nisto, os cães mouros (1) levantam um grande alarido;
Pegam em armas e se inflama a sórdida gente,
Arremessam lanças e flechas, as cornetas soam,
Instrumentos da guerra que tudo atordoam!
1) Em diversas ocasiões, Camões chama aos mouros de “cães”. Deve-se atentar para o clima de hostilidade entre cristãos e mouros naquela época.
«Bem como quando a flama, que ateada
Foi nos áridos campos (assoprando
O sibilante Bóreas), animada
Co vento, o seco mato vai queimando;
A pastoral companha, que deitada
Co doce sono estava, despertando
Ao estridor do fogo que se ateia,
Recolhe o fato e foge pera a aldeia:
49o Como quando a chama que foi ateada
Nos áridos campos (e soprando
O sibilante Bóreas [1]) avança mais inflamada
Pelo vento, e tudo vai queimando;
Ou quando a camponesa pastora, deitada
Em doce sono, despertando
Com o barulho do fogo que tudo incendeia,
Recolhe suas coisas e foge para a aldeia:
1) Bóreas, de “Boreal” – o vento do norte.
«Destarte o Mouro, atónito e Torvado,
Toma sem tento as armas mui depressa;
Não foge, mas espera confiado,
E o ginete belígero arremessa.
O Português o encontra denodado,
Pelos peitos as lanças lhe atravessa;
Uns caem meios mortos e outros vão
A ajuda convocando do Alcorão.
50o Desse modo, o mouro atônito e perturbado,
Toma suas armas com muita pressa;
Não foge, espera ousado,
E então o cavalheiro luso se arremessa.
E o encontra determinado,
Mas com a lança o peito lhe atravessa.
Alguns caem quase mortos e outros vão
Suplicar pela ajuda do Corão (1).
1) Alcorão: o livro sagrado dos maometanos. O sufixo “al” equivale ao “o”; tendo-se, portanto, “o Corão”
«Ali se vêm encontros temerosos,
Pera se desfazer üa alta serra,
E os animais correndo furiosos
Que Neptuno amostrou, ferindo a terra;
Golpes se dão medonhos e forçosos;
Por toda a parte andava acesa a guerra;
Mas o de Luso arnês, couraça e malha,
Rompe, corta desfaz abola e talha.
51o Ali são travados conflitos horrorosos,
Capazes de desmanchar uma alta serra,
E os cavalos correndo furiosos
Iguais aos que Netuno (1) gerou, ferem a terra.
Golpes são trocados, terríveis e poderosos;
Em toda parte andava acesa a guerra.
Mas o luso, trajando armadura, couraça e malha,
Rompe, corta, destrói, amassa e retalha.
1) Netuno, deus do mar, foi o pai do cavalo alado Pégaso. A ele eram dedicados os cavalos.
«Cabeças pelo campo vão saltando,
Braços, pernas, sem dono e sem sentido,
E doutros as entranhas palpitando,
Pálida a cor, o gesto amortecido.
Já perde o campo o exército nefando;
Correm rios do sangue desparzido,
Com que também do campo a cor se perde,
Tornado carmesi, de branco e verde.
52o Cabeças, pelo campo, vão saltando,
Braços, pernas, sem dono e sem sentido,
Doutros são as entranhas que estão palpitando,
Pálidos, sem cor e com o rosto amortecido.
Já perde terreno o mouro, a quem o luso vai derrotando;
Correm rios do sangue espalhado e perdido,
Colorindo a própria campina arrasada;
O vermelho substitui o verde, na terra ultrajada.
«Já fica vencedor o Lusitano,
Recolhendo os troféus e presa rica;
Desbaratado e roto o Mauro Hispano
Três dias o grão Rei no campo fica.
Aqui pinta no branco escudo ufano,
Que agora esta vitória certifica,
Cinco escudos azuis esclarecidos,
Em sinal destes cinco Reis vencidos.
53o Por fim, como vencedor fica o lusitano,
Que recolhe os troféus e a presa rica;
Derrotado e roto fica o mouro Hispano (1);
Por mais três dias o rei luso, naquele campo fica.
E pinta no seu brasão altaneiro e ufano,
Que esta vitória atesta e certifica,
Cinco escudos em azul brilhante e bem coloridos,
Representando os cinco reis que foram vencidos.
1) Os mouros que dominavam parte da península Ibérica.
«E nestes cinco escudos pinta os trinta
Dinheiros por que Deus fora vendido,
Escrevendo a memória, em vária tinta,
Daquele de Quem foi favorecido.
Em cada um dos cinco, cinco pinta,
Porque assi fica o número cumprido,
Contando duas vezes o do meio,
Dos cinco azuis que em cruz pintando veio.
54o No interior dos escudos pinta as trinta
Moedas pelas quais Jesus fora traído,
Escreve assim, em cores de variadas tintas,
A história Daquele que sempre o tinha favorecido.
Em cada um dos cinco escudos, outros cinco ele pinta
Para que assim o numero fique completo e instruído,
Considerando-se duas vezes o escudo do meio (1),
Dentre aqueles que, em forma de cruz, pintando ele veio.
1) 5 escudos X 5 escudos internos = 25 + 5 = 30 (duas vezes o escudo do meio). As “trinta moedas” de prata que Judas teria recebido pela delação.
«Passado já algum tempo que passada
Era esta grão vitória, o Rei subido
A tomar vai Leiria, que tomada
Fora, mui pouco havia, do vencido.
Com esta a forte Arronches sojugada
Foi juntamente; e o sempre ennobrecido
Scabelicastro, cujo campo ameno
Tu, claro Tejo, regas tão sereno.
55o Passado algum tempo da celebrada
Grande vitória, o rei elevado e erguido
Vai se apossar da Leiria (1), que fora retomada
Há pouco tempo do mouro vencido.
Perto desta, a poderosa Arronches (2) foi subjugada
Simultaneamente; assim como a sempre enobrecida
Santarém (3), cujo campo ameno
Tu, claro rio Tejo, banha sereno.
1) Leiria: cidade no centro oeste de Portugal.
2) Arronches: idem.
3) Santarém: cidade na região do Ribatejo em Portugal.
«A estas nobres vilas sometidas
Ajunta também Mafra, em pouco espaço,
E, nas serras da Lüa conhecidas,
Sojuga a fria Sintra o duro braço;
Sintra, onde as Naiades, escondidas
Nas fontes, vão fugindo ao doce laço
Onde Amor as enreda brandamente,
Nas águas acendendo fogo ardente.
56o A estas nobres vilas retomadas
Se junta Mafra (1), em curto espaço
E nas serras, que da Lua são conhecidas,
Subjuga a fria Sintra (2) o lusitano braço;
Sintra, onde as Naiades (3) escondidas
Nas fontes, vão fugindo do doce laço
Em que o Cupido as cativa brandamente,
Nas águas acendendo a paixão ardente.
1) Mafra: cidade portuguesa, situada na região da Estremadura.
2) Sintra: cidade serrana, próxima a Lisboa. No Brasil tornou-se conhecida graças à literatura de Jorge Amado que faz referências aos seus famosos doces.
3) Naiades: ninfas dos rios e das fontes.
«E tu, nobre Lisboa, que no mundo
Fàcilmente das outras és princesa,
Que edificada foste do facundo
Por cujo engano foi Dardânia acesa;
Tu a quem obedece o Mar profundo
Obedeceste à força Portuguesa,
Ajudada também da forte armada
Que das Boreais partes foi mandada.
57o E tu nobre Lisboa, que no mundo
Facilmente, dentre todas é a princesa,
Fundada (1) pelo eloqüente Ulisses (2), tão facundo,
E que enganando os de Tróia, a fez rica presa.
Tu, a quem obedece o mar profundo,
Curvou-se perante a força portuguesa,
Ajudada por forte armada
Que da região norte fora enviada.
1) Reza a lenda que Lisboa foi fundada por Odisseu (vulgo Ulisses).
2) Odisseu: herói grego, protagonista da Odisséia de Homero. Foi quem idealizou o famoso “Cavalo de Tróia”.
3) Tróia, nome mais conhecido da Dardânia. Nome relacionado ao do “Estreito de Dardanelos”
«Lá do Germânico Álbis e do Reno
E da fria Bretanha conduzidos,
A destruir o povo Sarraceno
Muitos com tenção santa eram partidos.
Entrando a boca já do Tejo ameno,
Co arraial do grande Afonso unidos,
Cuja alta fama antão subia aos céus,
Foi posto cerco aos muros Ulisseus.
58o Da região alemã dos rios Elba e Reno
E da fria Bretanha (1) foram enviados,
Para auxiliar na destruição do povo Sarraceno (2).
Bravos soldados, que com Santa Intenção eram chegados.
Entrando pela foz do rio Tejo ameno,
Ao luso exército foram agregados.
Afonso, cuja quem a fama já subia ao céu
Comandou o cerco à cidade que Ulisses ergueu.
1) Bretanha: a Inglaterra.
2) Sarraceno: mouro.
«Cinco vezes a Lüa se escondera
E outras tantas mostrara cheio o rosto,
Quando a cidade, entrada, se rendera
Ao duro cerco que lhe estava posto
Foi a batalha tão sanguina e fera
Quanto obrigava o firme pros[s]uposto
De vencedores ásperos e ousados
E de vencidos já desesperados.
59o Cinco vezes a Lua mudou para a fase escondida (1)
E em outras tantas se mostrou com o cheio rosto,
Para que a cidade fosse adentrada e rendida
Ao duro cerco que lhe fora imposto.
Foi uma batalha tão sangrenta e acendida
Quanto se podia prever para a luta daquele oposto.
De um lado os vencedores, firmes e determinados
E do outro, os vencidos já desesperados.
1) Fase escondida: quando a lua não se mostra em sua plenitude.
«Destarte, enfim, tomada se rendeu
Aquela que, nos tempos já passados,
À grande força nunca obedeceu
Dos frios povos Cíticos ousados,
Cujo poder a tanto se estendeu
Que o Ibero o viu e o Tejo amedrontados;
E, enfim, co Bétis tanto alguns puderam
Que à terra, de Vandália nome deram.
60o Desse modo, por fim tomada, se rendeu
A cidade que nos tempos passados,
Ao grande poder, nunca obedeceu.
Poder dos que de Citicos (1) eram chamados,
Cuja potência imensa tanto se estendeu
Que os rios Ibero (2) e Tejo viram-nos amedrontados;
E em Bétis (3), alguns deles tanto puderam,
Que àquela região, o nome de Vandália (4) deram.
1) Citicos: Povos nômades e bárbaros do norte da Europa.
2) Ibero: rio da Espanha, atualmente chamado de Ebro.
3) Bétis: região da Espanha.
4) Derivado de Vândalos, povo germânico que devastou o sul da Europa e o norte da África.
«Que cidade tão forte porventura
Haverá que resista, se Lisboa
Não pôde resistir à força dura
Da gente cuja fama tanto voa?
Já lhe obedece toda a Estremadura,
Óbidos, Alanquer, por onde soa
O tom das frescas águas entre as pedras,
Que murmurando lava, e Torres Vedras.
61o Qual cidade, que seja tão forte, porventura
Haverá de resistir, se Lisboa
Não pôde repelir a força dura
Daquele povo, cuja fama para tão longe voa?
Já dominavam toda a Estremadura (1),
Óbidos (2), Alanquer (3) (por onde ecoa
O som das águas frescas nas pedras,
Que murmurando as lava) e Torre Vedras (4).
1) Estremadura: região do litoral sul de Portugal.
2) Óbidos: cidade na Estremadura, litoral sul de Portugal.
3) Alanquer: vila portuguesa, situada na região da Estremadura.
4) Torre Vedras: Cidade na Estremadura, litoral sul de Portugal.
«E vós também, ó terras Transtaganas,
Afamadas co dom da flava Ceres,
Obedeceis às forças mais que humanas,
Entregando-lhe os muros e os poderes;
E tu, lavrador Mouro, que te enganas,
Se sustentar a fértil terra queres:
Que Elvas e Moura e Serpa, conhecidas,
E Alcáçare do Sal estão rendidas.
62o E também vós, ó terras Transtaganas (1)
Famosas pelas dádivas de Ceres (2).
Obedeçam ao poder e a força sobre-humana,
Rendendo-se em paz, ante tais poderes;
E você, lavrador mouro, que se engana
Cobiçando a terra fértil, que tanto queres;
Veja que Elvas (3), Moura (4) e Serpa (5), tão conhecidas
E também Alcácere do Sal (6), já estão rendidas.
1) Transtaganas: as terras situadas além do rio Tejo.
2) Ceres: deusa da agricultura. Alusão aos cereais produzidos na região.
3) Elvas: cidade portuguesa, situada no Alentejo.
4) Moura: idem.
5) Serpa: idem.
6) Alcácere do Sal: idem.
«Eis a nobre cidade, certo assento
Do rebelde Sertório antigamente,
Onde ora as águas nítidas de argento
Vêm sustentar de longo a terra e a gente
Pelos arcos reais, que, cento e cento,
Nos ares se alevantam nobremente,
Obedeceu por meio e ousadia
De Giraldo, que medos não temia.
63o Ali a nobre Elvas, base e acampamento
Do romano Sertório (1), rebelde de antigamente;
Onde agora, as límpidas águas de argento (2),
Vêm de longe para servir a terra e sua gente,
Pelos aquedutos reais, que são mais de cento
E que nos ares se levantam nobremente.
Cidade conquistada com muita valentia
Pelo bravo Giraldo (2), que nada temia.
1) Sertório: general romano que após a morte de Mario, organizou na península Ibérica um movimento contra Roma.
2) Argento: prateado.
3) Giraldo: Giraldo Sem Pavor, que em 1166 tomou a cidade de Elvas.
«Já na cidade Beja vai tomar
Vingança de Trancoso destruída
Afonso, que não sabe sossegar,
Por estender co a fama a curta vida.
Não se lhe pode muito sustentar
A cidade; mas, sendo já rendida,
Em toda a cousa viva a gente irada
Provando os fios vai da dura espada.
64o E a cidade de Beja (1) logo vai retomar,
Como vingança por Trancoso (2) destruída,
O rei Afonso, que não sabia sossegar;
E queria estender com a fama a curta vida.
Por pouco tempo a cidade pôde se sustentar
E mesmo já estando rendida,
A todos os seres vivos, a tropa irada
Fere e mata com a afiada espada.
1) Beja: cidade situada no sul do Alentejo.
2) Trancoso: cidade situada no norte de Portugal. Fora destruída por puro vandalismo, o que despertou grande fúria nos lusos.
«Com estas sojugada foi Palmela
E a piscosa Sesimbra e, juntamente,
Sendo ajudado mais de sua estrela
Desbarata um exército potente
(Sentiu-o a vila e viu-o a serra dela),
Que a socorrê-la vinha diligente
Pela fralda da serra, descuidado
Do temeroso encontro inopinado.
65o Com estas, caíram a cidade de Palmela (1)
E a piscosa Sezimbra (2) simultaneamente.
Ajudado pela sua boa estrela,
Afonso derrota um exército muito potente
(A vila o sentiu, assim como a Serra ao lado dela)
Que para defender a vila vinha diligente
Pela encosta da serra, mas estava despreparado
Para aquele combate inesperado.
1) Palmela: cidade situada no centro de Portugal.
2) Sezimbra: cidade situada no litoral, próxima a Lisboa.
«O Rei de Badajoz era, alto Mouro,
Com quatro mil cavalos furiosos,
Inúmeros peões, de armas e de ouro
Guarnecidos, guerreiros e lustrosos;
Mas, qual no mês de Maio o bravo touro,
Cos ciúmes da vaca, arreceosos,
Sentindo gente, o bruto e cego amante
Salteia o descuidado caminhante:
66o O rei de Badajoz (1) era um importante mouro,
Tinha quatro mil cavalos furiosos,
Inúmeros soldados, com armas e ouro
Equipados, guerreiros e raivosos.
Mas, como em Maio (2) quando o feroz touro
Com ciúme da vaca torna-se muito perigoso,
E bruto e cego amante,
Ataca de súbito o desavisado caminhante.
1) Badajoz: reino situado no sudoeste da Espanha.
2) Maio: o inicio da primavera no hemisfério norte. O mês do cio.
«Destarte Afonso, súbito mostrado,
Na gente dá, que passa bem segura;
Fere, mata, derriba, denodado;
Foge o Rei Mouro e só da vida cura;
Dum pânico terror todo assombrado,
Só de segui-lo o exército procura;
Sendo estes que fizeram tanto abalo
Nô mais que só sessenta de cavalo.
67o Assim fez Afonso, como se do nada surgido,
E ataca aquela gente, que se julgava muito segura;
Fere, mata e destrói, a tudo determinado;
Foge o rei mouro, pois salvar-se é só o que procura.
Tomado de pânico, de terror e muito assombrado;
O restante segue o rei, em fuga ignóbil e obscura;
Sendo que estes lusos que causaram tantos abalos
Não tinham mais que sessenta cavalos (1).
1) é consenso que aqui há certo exagero de Camões, mas validado pela licença poética.
«Logo segue a vitória, sem tardança,
O grão Rei incansábil, ajuntando
Gentes de todo o Reino, cuja usança
Era andar sempre terras conquistando.
Cercar vai Badajoz e logo alcança
O fim de seu desejo, pelejando
Com tanto esforço e arte e valentia,
Que a fez fazer às outras companhia.
68o Depois Afonso segue a vitória e sem demorar
O grande rei, incansavelmente, vai agrupando
Soldados em todo reino, que já se habituara a olhar
As vitórias e as terras que ele ia conquistando.
Assim, vai cercar Badajoz e após alcançar
Êxito nesse projeto segue lutando;
E com talento, determinação e valentia,
Junta outras conquistas à companhia.
«Mas o alto Deus, que pera longe guarda
O castigo daquele que o merece,
Ou pera que se emende, às vezes tarda,
Ou por segredos que homem não conhece
Se até qui sempre o forte Rei resguarda
Dos perigos a que ele se oferece,
Agora lhe não deixa ter defesa
Da maldição da mãe que estava presa:
69o Porém Deus, que para o futuro guarda
O castigo para aquele que o merece,
Espera o remorso e por isso às vezes o retarda,
Ou por motivos que o Homem desconhece;
Julgou que se até ali, Afonso tinha a Divina guarda
Para enfrentar os perigos que se lhe oferece,
Doravante não teria mais a sua defesa
Como castigo por manter a própria mãe presa.
«Que, estando na cidade que cercara,
Cercado nela foi dos Lioneses,
Porque a conquista dela lhe tomara,
De Lião sendo, e não dos Portugueses.
A pertinácia aqui lhe custa cara,
Assi como acontece muitas vezes,
Que em ferros quebra as pernas, indo aceso
À batalha, onde foi vencido e preso.
70o Estando Afonso em Badajoz, que cercara,
Nela, foi cercado pelos Leoneses (1),
Porque nessa conquista ele tomara
O que era de Leão e não dos portugueses.
Sua teimosia lhe sai muito cara,
Como acontece tantas vezes,
E em ferros quebra a perna, indo muito aceso
Para a batalha (2), onde foi vencido e preso.
1) Leoneses: naturais de Leão, um dos reinos da Espanha.
2) Na primavera de 1169, Afonso atacou Badajoz (sudoeste da Espanha) que estava dominada pelos mouros, mas cuja conquista devia pertencer ao seu genro Fernando II, de Leão. Os mouros apresentaram alguma resistência e quando as tropas de Fernando II chegaram o rei Luso ficou na posição de sitiador e de sitiado. Por fim Dom Afonso quebrou uma perna nos ferros de uma porta.
«Ó famoso Pompeio, não te pene
De teus feitos ilustres a ruína,
Nem ver que a justa Némesis ordene
Ter teu sogro de ti vitória dina,
Posto que o frio Fásis ou Siene,
Que pera nenhum cabo a sombra inclina,
O Bootes gelado e a linha ardente
Temessem o teu nome geralmente.
71o Ó famoso Pompeio (1), não te lamentes da tua pena,
Por tuas proezas ilustres terem ficado em ruína,
Nem por ver que a justa Nêmeses (2) ordena
Que sobre vós, teu sogro tivesse uma vitória tão plena,
Ainda que o rio Fásis (3) ou a cidade de Siene (4)
Onde a sombra do sol para nenhum lado se inclina,
Ou que a fria região de Bootes (5) e a ardente (6)
Temessem o teu nome igualmente.
1) Pompeio ou Pompeu: genro de César, militar e político romano derrotado pelo seu sogro na batalha de Farsália.
2) Nêmeses: deusa da vingança e da justiça divina
3) Rio Fásis: atual Rion, na Cólquida
4) Siene: atual Assuã, no Egito, situada sob o Trópico de Câncer, onde o sol do meio-dia não projeta sombras.
5) Bootes: Constelação do Boiadeiro.
6) Região ardente: aquela por onde passa a Linha do Equador.
«Posto que a rica Arábia e que os feroces
Heníocos e Colcos, cuja fama
O Véu dourado estende, e os Capadoces
E Judeia, que um Deus adora e ama,
E que os moles Sofenos e os atroces
Cilícios, com a Arménia, que derrama
As águas dos dous rios cuja fonte
Está noutro mais alto e santo monte,
72o Ainda que a rica Arábia e que os ferozes
Heníocos (1) e Colcos (2), cuja imensa fama
A tão longe se estende, e os Capadoces (3)
E a Judéia (4), que apenas um Deus ama,
E que os suaves Sofenos (5) e os atrozes
Cilícios (6), com a Armênia (7), a quem banha
As águas dos dois rios cuja fonte
Está no mais alto e santo Monte (8).
1) Heníocos: naturais do norte do Cáucaso.
2) Colcos: naturais da Cólquida, Ásia.
3 Capadoces: naturais da Capadócia, Ásia Menor.
4) Judéia: região do Oriente Médio. Israel atual.
5) Sofenos: naturais de Sofene.
6) Cilícios: naturais da Cilicia, Ásia Menor.
7) Armênia: país da Ásia, onde se localiza o Monte Ararat.
8) Santo Monte: o monte Ararat, onde parou a Arca de Noé.
«E posto, enfim, que desd'o mar de Atlante
Até o Cítico Tauro, monte erguido,
Já vencedor te vissem, não te espante
Se o campo Emátio só te viu vencido;
Porque Afonso verás, soberbo e ovante,
Tudo render e ser despois rendido.
Assi o quis o Conselho alto, celeste,
Que vença o sogro a ti e o genro a este!
73o E, finalmente, ainda que desde o Mar de Atlante (1)
Até o Citico Tauro (2), monte elevado,
Apenas como vencedor te vissem, não te espante
Se o campo Ematio (3) te viu como derrotado;
Verás que também Afonso, soberbo e triunfante,
Tudo conquistou e depois foi dominado.
Assim quis o sublime Conselho Celeste:
Teu sogro o venceu, e o genro a este!
1) Mar de Atlante: Oceano Atlântico.
2) Citico Tauro: Montanhas na Citia, Ásia.
3) Ematio: Província da antiga Macedônia, onde Pompeio foi derrotado por César.
4) Fernando II, rei de Leão (região da Espanha) que se casou com Dona Urraca, filha do rei Afonso, de Portugal.
«Tornado o Rei sublime, finalmente,
Do divino Juízo castigado;
Despois que em Santarém soberbamente,
Em vão, dos Sarracenos foi cercado,
E despois que do mártire Vicente
O santíssimo corpo venerado
Do Sacro Promontório conhecido
À cidade Ulisseia foi trazido;
74o O sublime rei foi libertado (1) finalmente,
Após ter sido, pelo Juízo Divino, castigado,
E depois que em Santarém (2) ativamente
Rechaçou os mouros, que o tinham cercado,
E depois que do Mártir Vicente (3)
O santíssimo corpo adorado
Do Sacro Promontório (4), como era conhecido,
Para a cidade de Lisboa ter trazido;
1) Confessando que fora desleal com o genro, Dom Afonso oferece-lhe seus territórios em troca de sua liberdade, mas Dom Fernando, que tinha fama de ser generoso, não aceita. Confessando que fora desleal com o genro, Dom Afonso oferece-lhe seus territórios em troca de sua liberdade, mas Dom Fernando, que tinha fama de generoso, não aceita essa oferta e lhe pede que apenas restitua o que era seu, ou seja, a província de Badajoz e o liberta. O cativeiro de Afonso durou dois meses e ele voltou para Portugal.
2) Santarém: cidade na região da Estremadura, em Portugal.
3) São Vicente nasceu em Saragoza (Espanha) e morreu martirizado em Valença em 304 dC. As suas relíquias estiveram no Cabo de São Vicente, no extremo ocidental da Europa e foram trazidas para Lisboa no século doze.
4) Cabo de São Vicente.
«Por que levasse avante seu desejo,
Ao forte filho manda o lasso velho
Que às terras se passasse d'Alentejo,
Com gente e co belígero aparelho.
Sancho, d'esforço e d'ânimo sobejo,
Avante passa e faz correr vermelho
O rio que Sevilha vai regando,
Co sangue Mauro, bárbaro e nefando.
75o E para que levasse adiante o seu desejo,
Ordena ao forte filho, pois já estava cansado e velho,
Que atacasse os mouros no Alentejo (1),
Com soldados, armas e todo o bélico aparelho.
Sancho (2), de ânimo e destemor sobejo,
Ataca, segue avante e faz correr vermelho
O rio que a Sevilha (3) vai banhando,
Com o sangue mouro, bárbaro e nefando.
1) Alentejo: região centro-sul de Portugal.
2) Sancho: Dom Sancho I, filho de Dom Afonso Henrique e 2o rei de Portugal.
3) Sevilha: cidade na Espanha.
«E, com esta vitória cobiçoso,
Já não descansa o moço, até que veja
Outro estrago como este, temeroso,
No Bárbaro que tem cercado Beja.
Não tarda muito o Príncipe ditoso
Sem ver o fim daquilo que deseja.
Assi estragado, o Mouro na vingança
De tantas perdas põe sua esperança.
76o E com esta vitória, ambicioso,
Não descansa o moço, até que veja
Outro abalo como este, tão horroroso,
Contra o mouro que fez o cerco a Beja (1).
Não demora para que o príncipe poderoso
Tenha a vitória final, como deseja.
Destroçado, apenas na vingança
O mouro deposita sua esperança.
1) Beja: cidade ao sul de Portugal.
«Já se ajuntam do monte a quem Medusa
O corpo fez perder que teve o Céu;
Já vêm do promontório de Ampelusa
E do Tinge, que assento foi de Anteu.
O morador de Abila não se escusa,
Que também com suas armas se moveu,
Ao som da Mauritana e ronca tuba,
Todo o Reino que foi do nobre Juba.
77o Cheios da pretensão que fez Medusa (1)
Perder a beleza que era admirada até pelo céu;
Vêm do monte de Ampelusa (2)
E do Tinge (3), que foi a morada de Anteu (4).
O habitante de Abila (5) não se recusa,
E com suas armas também se moveu,
E ao som da moura e rouca tuba (6),
Preparam-se no reino que foi do nobre Juba (7).
1) Medusa: divindade marinha. Era bela e tinha lindos cabelos e Posídon dela se enamorou e transformando-se em pássaro levou-a a um templo de Atenas, que indignada pela outra achar-se tão linda como ela, transformou seus cabelos em serpentes e fez com que o seu olhar transformasse em pedras tudo que mirassem.
2) Monte Ampelusa: Cabo Espartel, norte de Marrocos.
3) Tanger: atual Marrocos
4) Anteu: um dos gigantes, filho de Netuno e da Terra. Era invencível enquanto pisasse o chão, então, Hércules o suspendeu e sufocou.
5) Abila: região perto de Ceuta.
6) Tuba: instrumento musical de sopro.
7) Juba: Rei da Numidia, atual Mauritânia.
«Entrava, com toda esta companhia,
O Miralmomini em Portugal;
Treze Reis mouros leva de valia,
Entre os quais tem o ceptro Imperial.
E assi, fazendo quanto mal podia,
O que em partes podia fazer mal,
Dom Sancho vai cercar em Santarém;
Porém não lhe sucede muito bem.
78o Entrava, com toda essa companhia,
O Califa de Marrocos (1) em Portugal;
Treze reis mouros, com ele seguiam
E lhe obedeciam, pois era dele o Poder Imperial.
E assim foi fazendo todo mal que podia,
Nas regiões onde podia fazer o mal,
Ao Dom Sancho vai cercar, em Santarém (2);
Mas ali não se saiu muito bem.
1) Califa de Marrocos: Abu Yacub
2) Santarém: cidade na região central de Portugal.
«Dá-lhe combates ásperos, fazendo
Ardis de guerra mil, o Mouro iroso;
Não lhe aproveita já trabuco horrendo,
Mina secreta, aríete forçoso;
Porque o filho de Afonso, não perdendo
Nada do esforço e acordo generoso,
Tudo provê com ânimo e prudência,
Que em toda a parte há esforço e resistência.
79o Fustiga com duros combates, fazendo
Milhares de ardis de guerra, o mouro furioso;
Contudo, não lhe é suficiente o trabuco (1) horrendo,
Ou a mina secreta (2) ou o aríete (3) poderoso;
Porque Sancho, o filho de Afonso, não perdendo
Nada da determinação e do raciocínio precioso,
Tudo providencia, com animação e prudência,
Para que haja determinação e resistência,
1) Trabuco: Antiga máquina de guerra, para lançar grandes pedras.
2) Mina secreta: bombas camufladas.
3) Aríete: antiga arma usada para abalar as muralhas
«Mas o velho, a quem tinham já obrigado
Os trabalhosos anos ao sossego,
Estando na cidade cujo prado
Enverdecem as águas do Mondego,
Sabendo como o filho está cercado,
Em Santarém, do Mauro povo cego,
Se parte diligente da cidade;
Que não perde a presteza co a idade.
80o Mas o velho Afonso, já alquebrado
Pelos anos e danos, e forçado ao sossego
Na doce Coimbra, onde o verdejante prado
Torna verde a água do Mondego (1),
Sabendo que o seu filho está cercado
Em Santarém, pelo mouro alucinado,
Parte rapidamente para aquela localidade;
Pois não perdeu vigor com a idade.
1- Mondego: rio que nasce na serra da Estrela e banha Coimbra.
«E co a famosa gente, à guerra usada,
Vai socorrer o filho; e assi ajuntados,
A Portuguesa fúria costumada
Em breve os Mouros tem desbaratados.
A campina, que toda está coalhada
De marlotas, capuzes variados,
De cavalos, jaezes, presa rica,
De seus senhores mortos cheia fica. Lotada de mouros mortos, também fica.
81o E com a famosa tropa, à guerra habituada,
Vai socorrer o filho; e assim reunidos,
A costumeira fúria portuguesa é desencadeada
E em pouco tempo os mouros foram vencidos.
A campina ficou abarrotada
De marlotas (1), capuzes variados,
Cavalos, jaezes (2) e tanta presa rica,
1- Marlotas: capote curto com capuz, usado pelos mouros.
2 - Jaezes: arreios e enfeites para cavalos.
«Logo todo o restante se partiu
De Lusitânia, postos em fugida;
O Miralmomini só não fugiu,
Porque, antes de fugir, lhe foge a vida.
A Quem lhe esta vitória permitiu
Dão louvores e graças sem medida;
Que, em casos tão estranhos, claramente
Mais peleja o favor de Deus que a gente.
82o Logo depois o restante dos mouros partiu
Da Lusitânia, afugentados em louca corrida;
O Califa de Marrocos só não fugiu,
Porque antes de conseguir, fugiu-lhe a vida.
Ao Deus, que aos lusos esta vitória permitiu,
Levantaram louvores e graças sem medida;
Pois nessas situações vê-se claramente
Que mais vale o socorro divino que a luta da gente.
«De tamanhas vitórias triunfava
O velho Afonso, Príncipe subido,
Quando quem tudo enfim vencendo andava,
Da larga e muita idade foi vencido.
A pálida doença lhe tocava,
Com fria mão, o corpo enfraquecido;
E pagaram seus anos, deste jeito,
À triste Libitina seu direito.
83o Com tamanhas vitórias triunfava
O velho Afonso, rei elevado,
Quando ele, que a tudo vencendo andava,
Cedeu à idade e pela morte foi levado (1).
A pálida doença há muito que já tocava,
Com a fria mão, o seu corpo esgotado;
E entregou os seus longos anos, desse jeito,
À triste Libitina (2) como era de direito.
1-Dom Afonso I morreu em 06 de Dezembro de 1.185
2- Libitina: deusa da morte, que presidia os funerais.
«Os altos promontórios o choraram,
E dos rios as águas saüdosas
Os semeados campos alagaram,
Com lágrimas correndo piadosas;
Mas tanto pelo mundo se alargaram,
Com fama suas obras valerosas,
Que sempre no seu reino chamarão
«Afonso! Afonso!» os ecos; mas em vão.
84o Os altos promontórios o choraram,
E as águas dos rios, saudosas,
Os férteis campos alagaram,
Como se fossem lágrimas correndo piedosas;
Sua fama e glória, pelo mundo se estenderam;
E por suas obras valorosas,
Sempre no reino o invocarão
Chamarão: Afonso, Afonso; mas em vão.
«Sancho, forte mancebo, que ficara
Imitando seu pai na valentia,
E que em sua vida já se exprimentara
Quando o Bétis de sangue se tingia
E o bárbaro poder desbaratara
Do Ismaelita Rei de Andaluzia,
E mais quando os que Beja em vão cercaram
Os golpes de seu braço em si provaram;
85o Sancho, forte mancebo, que ficara
Igual ao pai na determinação e na valentia,
E que tinha valor, como já provara,
Quando o Bétis (1) de sangue se tingia.
E quando os mouros ele derrotara,
Acabando-lhes com a insolência na Andaluzia;
E também quando Beja (2) inutilmente cercaram,
E os seus golpes os expulsaram.
1-Rio Bétis: rio da Andaluzia, Espanha.
2- Beja: cidade no Alentejo, Portugal.
«Despois que foi por Rei alevantado,
Havendo poucos anos que reinava,
A cidade de Silves tem cercado,
Cujos campos o Bárbaro lavrava.
Foi das valentes gentes ajudado
Da Germânica armada que passava,
De armas fortes e gente apercebida,
A recobrar Judeia já perdida.
86o Depois, como rei proclamado,
E após pouco tempo que reinava,
O campo de Silves (1) foi por ele é cercado,
Pois ali o sórdido mouro lavrava.
Nesta empreitada foi ajudado pelo determinado
Exército alemão, que por ali passava,
Com um armamento forte e poderoso
Para retomar a Judéia do mouro rancoroso.
1- Silves: cidade situada no sul de Portugal.
«Passavam a ajudar na santa empresa
O roxo Federico, que moveu
O poderoso exército, em defesa
Da cidade onde Cristo padeceu,
Quando Guido, co a gente em sede acesa,
Ao grande Saladino se rendeu,
No lugar onde aos Mouros sobejavam
As águas que os de Guido desejavam.
87o Os alemães seguiam para a Santa Cruzada (1),
Comandados por Frederico Barba Roxa (2), que mobilizou
Um poderoso exército para a retomada
Da cidade que a Cristo martirizou;
E que Guido (3) e as tropas com sede desvairada,
Ao grande Saladino (4) entregou.
Ali, os mouros sarcasticamente desperdiçavam,
A água que as tropas tanto necessitavam.
1- Santa Cruzada: as lutas religiosas entre mouros e cristãos.
2- Frederico Barba Roxa: imperador da Alemanha entre 1152 e 1190.
3- Guido: Guido de Lusignan, rei de Jerusalém e posteriormente de Chipre. Em 1187 foi aprisionado por Saladino na batalha de Tiberíade e sendo atormentado pela sede acabou se rendendo.
4- Saladino: sultão do Egito e da Síria, herói muçulmano da 3a Cruzada.
«Mas a Mas Mas fermosa armada, que viera
Por contraste de vento àquela parte,
Sancho quis ajudar na guerra fera,
Já que em serviço vai do santo Marte.
Assi como a seu pai acontecera
Quando tomou Lisboa, da mesma arte
Do Germano ajudado, Silves toma
E o bravo morador destrui e doma.
88o A frota alemã poderosa e veloz,
Ali chegara graças a maus ventos na região
Lusitana e decidiu ajudar ao rei
Sancho naquela guerra atroz,
Já que por Marte (1) seguia com determinação.
Como acontecera com ao pai, que em feroz
Luta toma Lisboa, Sancho é ajudado pelo exército alemão.
As tropas estrangeiras ajudam-no e ele retoma
Silves (2) e derrota os mouros, a quem doma.
1- Marte: o deus da guerra. Neste contexto leia-se “a serviço da guerra”.
2- Silves: cidade situada no sul de Portugal.
«E se tantos troféus do Mahometa
Alevantando vai, também do forte
Lionês não consente estar quieta
A terra, usada aos casos de Mavorte,
Até que na cerviz seu jugo meta
Da soberba Tuí, que a mesma sorte
Viu ter a muitas vilas suas vizinhas,
Que por armas tu, Sancho, humildes tinhas.
89o Além das vitórias sobre os de Mahometa (1)
Que vai conquistando, ao destemido e forte
Leonês (2) não permite estar em paz e quieta
A sua terra, usada nas guerras de Mavorte (3),
Até que ao seu domínio submeta
A orgulhosa Tuí (4), que tem a mesma sorte
Que as vilas e as cidades vizinhas,
As quais, pelas armas, Sancho já detinha.
1- Mahometa: ismaelita, seguidor da doutrina de Maomé. Os mouros.
2- Leonês: o natural de Leão, um dos reinos da Espanha.
3- Mavorte: o outro nome de Marte, deus da guerra.
4- Tuí: cidade espanhola, na região da Galizia.
«Mas, entre tantas palmas salteado
Da temerosa morte, fica herdeiro
Um filho seu, de todos estimado,
Que foi segundo Afonso e Rei terceiro.
No tempo deste, aos Mauros foi tomado
Alcáçare do Sal, por derradeiro;
Porque dantes os Mouros o tomaram,
Mas agora estruídos o pagaram.
90o Mas entre tanto triunfo celebrado
A morte o levou e fica como herdeiro
Seu filho, que por todos era muito estimado.
Chamado Afonso II, como rei foi o terceiro.
Durante o seu reinado, dos mouros foi tomado
Alcácere do Sal (1), conquistada por derradeiro;
E os mouros que insolentemente a tomaram,
Agora, destruídos, por essa insolência pagaram.
1- Alcácere do Sal: cidade portuguesa, situada no Alentejo.
Morto despois Afonso, lhe sucede
Sancho segundo, manso e descuidado;
Que tanto em seus descuidos se desmede
Que de outrem quem mandava era mandado.
De governar o Reino, que outro pede,
Por causa dos privados foi privado,
Porque, como por eles se regia,
Em todos os seus vícios consentia.
91o Após a morte de Afonso lhe sucede
Sancho II (1), inerte e relaxado,
Tão inepto que até concede
Que estranhos governem o reinado.
E por atender aos maus que tudo lhe pede,
Da chefia do governo foi exonerado,
E também pelos maus vícios que a ele regia
E pelos desmandos que ele consentia.
1- Sancho II: quarto rei de Portugal, filho de Dom Afonso II.
«Não era Sancho, não, tão desonesto
Como Nero, que um moço recebia
Por mulher e, despois, horrendo incesto
Com a mãe Agripina cometia;
Nem tão cruel às gentes e molesto
Que a cidade queimasse onde vivia;
Nem tão mau como foi Heliogabalo,
Nem como o mole Rei Sardanapalo.
92o Não era Sancho II tão devasso e desonesto
Como Nero (1), que um rapaz recebia
Como se fosse mulher; e, depois, incesto
Horroroso com Agripina (2) cometia;
Nem era tão cruel e nem tão funesto
Que queimasse (3) a cidade onde vivia;
Nem era tão mau como foi Heliogabalo (4)
Nem tão pervertido como o rei Sardanapalo (5).
1- Nero: imperador romano famoso pelas perversões.
2- Agripina: mãe de Nero.
3- Nero mandou incendiar Roma, para inspirar-se e compor.
4- Heliogabalo: imperador romano celebre pela crueldade e devassidão.
5- Sardanapalo: rei lendário da Assíria, último descendente de Semíramis e célebre pela devassidão.
«Nem era o povo seu tiranizado,
Como Sicília foi de seus tiranos;
Nem tinha, como Fálaris, achado
Género de tormentos inumanos;
Mas o Reino, de altivo e costumado
A senhores em tudo soberanos,
A Rei não obedece nem consente
Que não for mais que todos excelente.
93O Nem era o seu povo tiranizado,
Como o da Sicília (1) foi por seus tiranos;
Nem tinha como Fálaris (2), achado
Torturas e tormentos desumanos;
Mas Portugal, altivo e acostumado
Aos reis que eram ótimos soberanos,
Não obedece aos maus e nem lhes consente
Se não forem, dentre todos, os mais excelente.
1- Sicília: região no sul da Itália.
2- Fálaris: Tirano de Agrigento, na Sicília, famoso por sua crueldade. Mandou construir um touro oco, de bronze, onde as suas vítimas eram colocadas e assadas.Os lamentos dos supliciados saiam pela boca do animal com se fossem os seus mugidos.
«Por esta causa, o Reino governou
O Conde Bolonhês, despois alçado
Por Rei, quando da vida se apartou
Seu irmão Sancho, sempre ao ócio dado.
Este, que Afonso o Bravo se chamou,
Despois de ter o Reino segurado,
Em dilatá-lo cuida, que em terreno
Não cabe o altivo peito, tão pequeno.
94o Destituído Sancho, o reino governou
O conde Bolonhês (1), depois proclamado
Rei, quando a Sancho II a morte levou,
O qual, apenas ao ócio continuava dedicado.
Este conde, coroado, Afonso “O Bravo” se chamou,
Pois após ter o reino forte e consolidado,
Cuidou de ampliá-lo, pois em terreno estreito,
Não cabe o altivo e corajoso lusitano peito.
1- Conde Bolonhês: Dom Afonso III, que viveu na França e era casado com D. Matilde de Bolonha.
«Da terra dos Algarves, que lhe fora
Em casamento dada, grande parte
Recupera co braço, e deita fora
O Mouro, mal querido já de Marte.
Este de todo fez livre e senhora
Lusitânia, com força e bélica arte,
E acabou de oprimir a nação forte,
Na terra que aos de Luso coube em sorte.
95o Das terras do Algarve (1), que lhe fora
Dada no seu casamento, uma grande parte
Ele recupera com o braço forte, e põe para fora
O mouro, que já era malvisto pelo deus Marte.
E libertou toda a terra lusitana, sem demora,
Com força e talento na guerreira arte;
E acabou por oprimir o mouro forte,
Na terra que aos lusos coube pela sorte.
1- Algarve: a região sul de Portugal.
«Eis despois vem Dinis, que bem parece
Do bravo Afonso estirpe nobre e dina,
Com quem a fama grande se escurece
Da liberalidade Alexandrina.
Co este o Reino próspero florece
(Alcançada já a paz áurea divina)
Em constituições, leis e costumes,
Na terra já tranquila claros lumes.
96o É sucedido por Dom Dinis que muito se parece
Com o bravo Afonso, de linhagem nobre e digna.
Sua reputação só se obscurece
Pela libertinagem com suas concubinas.
Com ele o reino prospera e floresce
(Já tendo sido conquistada a paz Divina)
Com melhores leis, usos e costumes,
Na terra, surgem da Cultura os claros lumes.
«Fez primeiro em Coimbra exercitar-se
O valeroso ofício de Minerva;
E de Helicona as Musas fez passar-se
A pisar de Mondego a fértil erva.
Quanto pode de Atenas desejar-se
Tudo o soberbo Apolo aqui reserva.
Aqui as capelas dá tecidas de ouro,
Do bácaro e do sempre verde louro.
97o Primeiro fez em Coimbra (1) exercitarem-se
Os valorosos trabalhos de Minerva (2);
E de Helicona (3) fez as Musas (4) para cá se mudar
Para as margens do Mondego (5), de fértil erva.
Tudo aquilo que de Atenas se pode desejar
Aqui o altivo Apolo (5) já reserva.
Aqui ele oferece as coroas feitas com ouro,
Do bácaro e do sempre viçoso louro.
1- Alusão à instalação nesta cidade dos “Estudos Gerais”, base da futura Universidade.
2- Minerva: filha de Júpiter, deusa da inteligência, da sabedoria e das artes.
3- Helicona: monte da Beócia, onde existia um santuário das Musas. Os poetas o celebravam como ao Pindo e ao Parnaso.
4- Musas: divindades filhas de Zeus e Mnemosina, criadas para cantar as proezas dos deuses. Habitavam o Helicona, o Parnaso e o Pindo. Presidem o pensamento em todas as suas formas: eloqüência, persuasão, sabedoria, história matemática e astronomia.
5- Mondego: rio que nasce na serra das Estrelas, banha Coimbra e deságua no Atlântico.
6- Apolo, deus do Sol e da Poesia.
«Nobres vilas de novo edificou,
Fortalezas, castelos mui seguros,
E quási o Reino todo reformou
Com edifícios grandes e altos muros;
Mas despois que a dura Átropos cortou
O fio de seus dias já maduros,
Ficou-lhe o filho, um pouco desobediente,
Afonso IV, mas forte e excelente.
98o Nobres cidades ele restaurou,
Fortalezas, castelos muitos seguros,
E quase todo o Reino reformou
Com grandes edifícios e altos muros:
Mas depois que Átropos (1) lhe cortou
O fio da vida, já em anos maduros,
O filho, Afonso IV, um pouco desobediente,
Bem lhe sucede, pois era forte e excelente.
1- Átropos: uma das Parcas, entidades que tecem os fios da vida.
«Este sempre as soberbas Castelhanas
Co peito desprezou firme e sereno,
Porque não é das forças Lusitanas
Temer poder maior, por mais pequeno;
Mas porém, quando as gentes Mauritanas,
A possuir o Hespérico terreno,
Entraram pelas terras de Castela,
Foi o soberbo Afonso a socorrê-la.
99o As ofensas e as injúrias Castelhanas
Ele desprezou firme e sereno;
Pois não é próprio da gente lusitana
Acovardar-se, mesmo sendo pequeno;
Porém quando a tropa Mauritana,
Para conquistar o espanhol terreno,
Entrou pelas terras de Castela (1)
O altivo Afonso correu para socorrê-la.
1- Castela: um dos reinos da Espanha.
«Nunca com Semirâmis gente tanta
Veio os campos Idáspicos enchendo,
Nem Átila, que Itália toda espanta,
Chamando-se de Deus açoute horrendo,
Gótica gente trouxe tanta, quanta
Do Sarraceno bárbaro, estupendo,
Co poder excessivo de Granada,
Foi nos campos Tartés[s]ios ajuntada.
100o Nunca com Semíramis (1) tanta gente
Foi para os campos idáspicos (2) o enchendo,
Nem Átila (3), que toda a Itália deixou temente,
O “açoite de Deus”, de tão horrendo,
Trouxe tantos soldados e sua a gótica gente,
Quanto o bárbaro Sarraceno foi trazendo,
Com armas poderosas, para a cidade Granada (5);
E que nos campos Tartéssio (6) foi agrupada.
1- Semíramis: rainha da Assíria e da Babilônia, que após ter enviuvado do rei Nino, conquistou a Pérsia, a Arábia, a Armênia, o Egito e a Líbia.
2- Campos idáspicos: campos banhados pelo rio Idaspe, na Índia.
3- Átila: rei dos Hunos. Chamado de “flagelo de Deus”.
4- Góticos: bárbaros germânicos.
5- Granada, cidade espanhola, na Andaluzia, que foi capital de um pequeno Estado árabe até 1492.
6- Tartéssio: os campos perto de Tarifa, na Andaluzia, Espanha.
«E, vendo o Rei sublime Castelhano
A força inexpugnábil, grande e forte,
Temendo mais o fim do povo Hispano,
Já perdido üa vez, que a própria morte,
Pedindo ajuda ao forte Lusitano
Lhe mandava a caríssima consorte,
Mulher de quem a manda e filha amada
Daquele a cujo Reino foi mandada.
101o Vendo o sublime rei Castelhano
Que a força do mouro era grande e forte
E temendo mais o fim do povo hispano
(Como noutra vez) que a própria morte,
Decidiu pedir ajuda ao forte lusitano
E mandou a sua amada consorte,
Sua esposa e filha adorada
Daquele rei, a cujo reino fora enviada.
«Entrava a fermosíssima Maria
Polos paternais paços sublimados,
Lindo o gesto, mas fora de alegria,
E os seus olhos em lágrimas banhados;
Os cabelos angélicos trazia
Pelos ebúrneos ombros espalhados.
Diante do pai ledo, que a agasalha,
Estas palavras tais, chorando, espalha:
102o Entrava a belíssima Maria
Nos paternos pátios sublimados,
Mas seu lindo rosto, não era de alegria,
E os olhos, por lágrimas, eram banhados.
Os angelicais cabelos, ela trazia
Pelos ombros soltos e espalhados.
Diante do pai que feliz a agasalha,
Estas palavras, chorando, ela fala:
- «Quantos povos a terra produziu
De Africa toda, gente fera e estranha,
O grão Rei de Marrocos conduziu
Pera vir possuir a nobre Espanha:
Poder tamanho junto não se viu
Despois que o salso mar a terra banha
Trazem ferocidade e furor tanto
Que a vivos medo e a mortos faz espanto!
103o Todos os povos que a Terra produziu
Na África, gente feroz e estranha,
O grande rei de Marrocos conduziu
Para conquistar a nobre Espanha;
Tal poderio militar nunca se viu,
Desde que o salgado mar a terra banha (1).
São tão ferozes e vem com tanto furor
Que põe medo aos vivos; e aos mortos estupor.
1) Ou seja, desde que o Mundo existe.
«Aquele que me deste por marido,
Por defender sua terra amedrontada,
Co pequeno poder, oferecido
Ao duro golpe está da Maura espada;
E, se não for contigo socorrido,
Ver-me-ás dele e do Reino ser privada;
Viúva e triste e posta em vida escura,
Sem marido, sem Reino e sem ventura.
104o Aquele que tu me deste como marido,
Por defender a sua terra apavorada,
Com poucos recursos, está exposto e caído
Ao duro golpe dos mouros, gente desalmada,
E se não for por ti socorrido,
Tu me verás, do reino e do marido privada;
Viúva e triste, numa vida obscura,
Sem alegrias e coberta de amargura.
«Portanto, ó Rei, de quem com puro medo
O corrente Muluca se congela,
Rompe toda a tardança, acude cedo
À miseranda gente de Castela.
Se esse gesto, que mostras claro e ledo,
De pai o verdadeiro amor assela,
Acude e corre, pai, que, se não corres,
Pode ser que não aches quem socorres.»
105o Assim meu rei, de tanto poder e influência
Que até o Muluca (1), de tanto temor, se congela,
Acabe com qualquer demora e socorre com urgência
A pobre gente do reino de Castela (2).
Se o teu semblante que vejo claro e feliz,
Atesta-lhe o amor paternal, como se diz;
Acuda com rapidez, ó pai, porque se não corres,
Não encontrarás àquele que socorres.
1- Rio Muluca: situado em Marrocos.
2- Castela, região da Espanha.
«Não de outra sorte a tímida Maria
Falando está que a triste Vénus, quando
A Júpiter, seu pai, favor pedia
Pera Eneias, seu filho, navegando;
Que a tanta piedade o comovia
Que, caído das mãos o raio infando,
Tudo o clemente Padre lhe concede,
Pesando-lhe do pouco que lhe pede.
106o Não era diferente a súplica da tímida Maria
Daquela que Vênus (1) fez, quando
Para Júpiter (2), seu pai, a intervenção pedia
Em favor de Enéas (3) que fugia navegando;
Tão tocante que a Júpiter comovia
E ele, do rigor se despojando,
Tudo, prontamente lhe concedia,
Pouco se importando com o que ela pedia.
1- Vênus: deusa do amor e do Oceano
2- Júpiter: o pai dos deuses.
3- Enéas: príncipe troiano, que fugiu após a queda de Troia. Segundo alguns autores, seria filho de Vênus.
«Mas já cos esquadrões da gente armada
Os Eborenses campos vão coalhados;
Lustra co Sol o arnês, a lança, a espada;
Vão rinchando os cavalos jaezados;
A canora trombeta embandeirada
Os corações, à paz acostumados
Vai às fulgentes armas incitando,
Polas concavidades retumbando
107o Rapidamente, com esquadrões de gente armada,
Os campos Eborenses (1) estão lotados;
Brilham ao sol o arnês (2), a lança e a espada;
Relincham os cavalos ornamentados.
A sonora trombeta embandeirada
Toca os corações que à paz estavam habituados,
E que peguem em armas a todos vai incitando,
E por todas suas conchas vai ecoando.
1- Eborenses: Campos ao redor da cidade de Évora, no Alentejo, Portugal.
2- Arnês: armaduras completas.
«Entre todos no meio se sublima,
Das insígnias Reais acompanhado,
O valeroso Afonso, que por cima
De todos leva o colo alevantado,
E sòmente co gesto esforça e anima
A qualquer coração amedrontado.
Assi entra nas terras de Castela
Com a filha gentil, Rainha dela.
108o Destacando-se dos demais se sublima,
Com as insígnias reais, todo paramentado,
O valoroso Afonso, que bem acima
De todos tem o porte levantado,
E só com o rosto impávido anima
A qualquer coração amedrontado.
Assim, entra nas terras de Castela
Onde a sua filha é a rainha dela.
«Juntos os dous Afonsos, finalmente
Nos campos de Tarifa estão defronte
Da grande multidão da cega gente,
Pera quem são pequenas campo e monte.
Não há peito tão alto e tão potente
Que de desconfiança não se afronte,
Enquanto não conheça e claro veja
Que co braço dos seus Cristo peleja.
109o Juntos, os dois Afonsos finalmente,
Nos campos de Tarifa (1), estão de frente
Da grande tropa da infiel gente,
Que transborda do campo e do monte.
Não há coração tão valente
Que amedrontado, não se torne vacilante,
Até que claramente veja
Que é por seu braço que o Cristo peleja.
1- Tarifa: cidade ao sul da Espanha.
«Estão de Agar os netos quási rindo
Do poder dos Cristãos, fraco e pequeno,
As terras como suas repartindo,
Antemão, entre o exército Agareno,
Que, com título falso, possuindo
Está o famoso nome Sarraceno.
Assi também, com falsa conta e nua,
À nobre terra alheia chamam sua.
110o Os netos de Agar (1) desdenhavam sorrindo
Do poderio dos cristãos, fraco e pequeno,
E como se já fossem suas, as terras vão repartindo,
Entre todo o malévolo exército Agareno (2).
Com falsa legitimidade, a está possuindo,
O infernal e mal afamado Sarraceno.
E com essa ilegitimidade crua e nua,
Chamam aquela nobre terra de sua.
1-Agar: escrava de Abrão que dele gerou Ismael de quem descenderam os árabes (mouros).
2- Agareno: derivado de Agar, os mouros.
«Qual o membrudo e bárbaro Gigante,
Do Rei Saul, com causa tão temido
Vendo o Pastor inerme estar diante,
Só de pedras e esforço apercebido,
Com palavras soberbas, o arrogante,
Despreza o fraco moço mal vestido,
Que, rodeando a funda, o desengana
(Quanto mais pode a Fé que a força humana!)
111o Zombavam como fez o gigante (1)
Com o rei Saul (2), pois ele, poderoso e temido,
Via que apenas um pastor se colocara adiante,
E só com pedras e coragem munido.
Com palavras insolentes, o arrogante,
Despreza o frágil pastor mal armado,
Até que uma pedra o derruba e desengana
(Pois mais poder tem a Fé, que a força humana!)
1- Gigante: Golias, citado na Bíblia e que foi morto por Davi, súdito de Saul.
2- Saul, o primeiro rei dos hebreus.
«Destarte o Mouro pérfido despreza
O poder dos Cristãos, e não entende
Que está ajudado da alta Fortaleza
A quem o Inferno horrífico se rende.
Co ela o Castelhano, e com destreza,
De Marrocos o Rei comete e ofende;
O Português, que tudo estima em nada,
Se faz temer ao Reino de Granada.
112o Assim, o pérfido mouro despreza
O poder dos cristãos, pois não entende
Que eles têm a ajuda da Divina Fortaleza
A quem o próprio Inferno se rende.
E com tal ajuda o Castelhano, com destreza,
Ataca o rei de Marrocos, em grande proeza;
O português, para quem os obstáculos são nada,
Faz-se temido no reino de Granada (1).
1- Granada: cidade na Espanha que até 1492 foi capital de um pequeno reino mouro.
«Eis as lanças e espadas retiniam
Por cima dos arneses - bravo estrago! -;
Chamam (segundo as Leis que ali seguiam),
Uns Mafamede e os outros Santiago.
Os feridos com grita o céu feriam,
Fazendo de seu sangue bruto lago,
Onde outros, meios mortos, se afogavam,
Quando do ferro as vidas escapavam.
113o As lanças e as espadas tiniam
Sobre os arneses (causando um grande estrago);
Invocam, segundo as religiões que seguiam,
Por Mafamede (1) e outros por Santiago (2).
Os gritos dos feridos até ao céu subiam,
O sangue ali derramado fazia um triste lago,
Onde alguns, semimortos, se afogavam
Quando das armas, com vida escapavam.
1- Os mouros invocavam a Maomé.
2- Os cristãos invocavam Santiago de Compostela, padroeiro da Espanha.
«Com esforço tamanho estrui e mata
O Luso ao Granadil, que em pouco espaço
Totalmente o poder lhe desbarata,
Sem lhe valer defesa ou peito de aço.
De alcançar tal vitória tão barata
Índa não bem contente o forte braço,
Vai ajudar ao bravo Castelhano,
Que pelejando está co Mauritano.
114o Esforçado, o luso destrói e mata
O granadil (1) e em tempo escasso
A turba moura desbarata,
Mesmo com suas defesas e armas de aço.
Mas esta vitória não lhe saiu barata
E não lhe contenta. Com o forte braço,
Vai ajudar ao genro Castelhano
Que lutava contra outro Mauritano.
1- Granadil: mouros da cidade de Granada.
«Já se ia o Sol ardente recolhendo
Pera a casa de Tétis, e inclinado
Pera o Ponente, o véspero trazendo,
Estava o claro dia memorado,
Quando o poder do Mauro, grande e horrendo,
Foi pelos fortes Reis desbaratado,
Com tanta mortindade que a memória
Nunca no mundo viu tão grão vitória.
115o O ardente Sol já ia se recolhendo
Para a casa de Téthis (1) e inclinado
Para o poente o Véspero (2) ia trazendo
Para iluminar o fim do dia, que sempre será lembrado.
Só então o mouro exército, imenso e horrendo,
Pelos fortes reis foi totalmente destroçado,
Com tanta mortandade que a história
Mundial nunca registrou tão grande vitória.
1- Téthis: Deusa do mar
2- Véspero: a estrela Vésper, da tarde.
«Não matou a quarta parte o forte Mário
Dos que morreram neste vencimento,
Quando as águas co sangue do adversário
Fez beber ao exército sedento;
Nem o Peno, asperíssimo contrário
Do Romano poder, de nascimento,
Quando tantos matou da ilustre Roma,
Que alqueires três de anéis dos mortos toma.
116o Nem um quarto matou o forte Mario (1)
Se comparado ao que houve neste enfrentamento,
Como se fosse água, o sangue do mouro adversário
Foi bebido pelo exército sedento;
Nem o Peno (2), general contrário
Ao poder romano desde o nascimento,
Tanto matou na ilustre Roma,
Cujo cemitério circular, três alqueires toma.
1- Mario: cônsul e general romano que venceu os teutões em Aix, quando morreram mais de cem mil homens, segundo relata Plutarco.
2- Peno: o general cartaginês Aníbal.
«E se tu tantas almas só pudeste
Mandar ao Reino escuro de Cocito,
Quando a santa Cidade desfizeste
Do povo pertinaz no antigo rito,
Permissão e vingança foi celeste,
E não força de braço, ó nobre Tito,
Que assi dos Vates foi profetizado
E despois por JESU certificado.
117o E vós, se tanta alma pôde
Mandar para o reino escuro de Cocito (1),
Quando Jerusalém, a Santa Cidade, destruiu
Juntamente com seu povo, apegado ao antigo rito,
Saiba que a permissão e a vingança foram celestes
E não por obra do teu braço, ó nobre Tito (2);
Conforme os adivinhos tinham profetizado,
E que depois, por Jesus, foi confirmado.
1- Cocito: um dos rios do Inferno. O inferno.
2- Tito: imperador romano. Essa destruição, na verdade, aconteceu durante o governo de Vespasiano, pai de Tito.
«Passada esta tão prospera vitória,
Tornado Afonso à Lusitana terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste, e dino da memória
Que do sepulcro os homens desenterra.
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.
118o Após esta magnífica vitória,
Afonso voltou para a lusa terra,
Para ali gozar, na paz, da grande glória
Que soube ganhar na dura guerra.
Mas um caso triste e digno de memória (1)
Ocorreu quando da sepultura se desenterra,
Aquela infeliz mulher, de sorte mesquinha,
Que depois de morta, foi coroada como rainha.
1-O filho de Afonso IV, Dom Pedro, foi casado aos dezenove anos com a princesa de Castela, D. Constança, num casamento de conveniência política. Na comitiva de D. Constança veio a jovem INÊS DE CASTRO por quem Dom Pedro apaixonou-se e com quem teve três filhos. Dom Afonso IV, pai de Dom Pedro foi muito pressionado pelos conselheiros do Reino devido à inconveniência daquela relação e cedendo à pressão mandou matar D. Inês, o que gerou uma guerra civil entre pai e filho, a qual só terminou com a intervenção da rainha, Dona Beatriz, e do Bispo de Braga. Após a morte de Dom Afonso, Dom Pedro foi coroado rei e embora tivesse prometido ao pai que não se vingaria daqueles que mataram D. Inês, não cumpriu a promessa e fez com que o corpo de Dona Inês fosse desenterrado e que a corte a saudasse como a rainha proclamada. Ver notas seguintes
«Tu só, tu, poro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.
119o Apenas tu, puro Amor, com a força crua,
Que aos pobres corações humanos tanto castiga,
Teve culpa na desgraça de Inês (1) e pela morte sua,
Assassinada como se fosse uma pérfida inimiga.
Dizem feroz Amor que a sede tua
Nem com tristes lágrimas se mitiga,
Pois és um cruel e duro tirano,
A banhar teus altares com o sacrifício humano.
1- Inês de Castro era uma dama galega, filha de Dom Pedro Fernandes de Castro. Para alguns era uma figura antipática, que manipulava a Dom Pedro. Para outros, como Camões, era uma vitima inocente e infeliz. Vide notas da estrofe 118.
«Estavas, linda lnês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saüdosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
120o A bela Inês estava em completo sossego,
Colhendo de sua juventude, os doces frutos,
Naquele engano da alma, feliz e cego,
Pois a sorte não deixa que sejam muitos.
Nos saudosos campos de Mondego (1),
Com os formosos olhos nunca enxutos,
Falava com os montes e para as flores repetia
O nome Pedro, que no coração trazia.
1- Mondego: rio que banha Coimbra, onde Dom Pedro montou uma casa para Dona. Inês.
«Do teu Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.
121o Do seu amado príncipe ali surgiam
As recordações que deixavam o seu coração magoado,
E que sempre aos seus olhos traziam,
A figura do amado, quando estavam separados;
Durante a noite, doces sonhos a iludiam,
Durante o dia seus pensamentos eram apaixonados.
Lembrança constante, terna e que refletia
A felicidade em que viviam e o amor que ela sentia.
«De outras belas senhoras e Princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,
122o De outras belas senhoras e de uma Princesa
Os convenientes casamentos, Pedro rejeita.
Pois tudo, puro Amor, despreza
Quem a ti se entrega com a alma satisfeita.
Por tais atitudes e pressionado pela nobreza,
O velho e sisudo pai (1), que muito respeita
As razões de Estado; e diante da teimosia
Do filho, que se casar com outra não queria,
1- O pai: Dom Afonso “O Bravo”.
«Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo co sangue só da morte indina
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra üa fraca dama delicada?
123o Tirar Inês desse mundo é o que determina,
Pois imagina que livrará o filho que ela mantém preso.
Crê que só com o sangue de uma morte ferina
Conseguirá acabar com amor tão aceso.
Que fúria foi essa em que a espada fina,
Que pôde suportar o enorme peso
Dos ataques mouros, fosse agora levantada,
Contra uma mulher frágil e delicada?
«Traziam-a os horríficos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saüdade
Do seu Príncipe e filhos, que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava,
124o Traziam-na ao Rei os terríveis algozes
Mas ele já lhe tinha piedade;
Porém os Conselheiros com intrigas atrozes
Exigem uma dura morte e o rei se persuade.
Ela, com triste e melancólica voz,
Carregada apenas de mágoa e de saudade
Do seu príncipe e dos filhos que deixava,
Fato, que mais que a própria morte, a amedrontava,
«Pera o céu cristalino alevantando,
Com lágrimas, os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos);
E despois nos mininos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfindade como mãe temia,
Pera o avô cruel assi dizia:
125o Para o límpido céu levantando,
Cobertos de lágrimas, os olhos piedosos
(Apenas os olhos, pois as mãos estavam presas
Por um dos Ministros rigorosos);
E depois, baixando-os, aos filhos ficou fitando.
Tinha-lhes tanto amor e eram tão formosos,
Que sua orfandade era o que mais temia,
E por isso ao cruel avô deles, assim dizia:
«Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas têm o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piadoso sentimento
Como co a mãe de Nino já mostraram,
E cos irmãos que Roma edificaram:
126o Se até as brutas feras, cuja mente
A natureza fez cruel desde o nascimento,
E se até as aves agrestes, que somente
Nas caçadas aéreas tem contentamento,
Com as crianças pequenas, como sabe toda gente
Demonstram carinho e um nobre sentimento
Como quando com a mãe de Nino (1) já mostraram,
E com os irmãos (2) que Roma fundaram:
1- Nino: rei lendário da Assíria, cuja esposa (e não a mãe, como diz Camões), quando criança teria sido abandonada na floresta, sendo criada por pombas.
2- Rômulo e Remo, que foram amamentados por uma loba, conforme a lenda.
«Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar üa donzela,
Fraca e sem força, só por ter subjeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.
127o Ó tu, de humano rosto e nobre coração
(Se é que seja humano matar uma donzela,
Fraca e sem forças, apenas por ela ter devoção
Por quem soube conquistá-la),
Tenha dessas crianças compaixão.
Mesmo que a mim digas não,
Aja com a piedade que espero de ti,
E não as castigue por um crime que não cometi.
«E se, vencendo a Maura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida com clemência
A quem pera perdê-la não fez erro.
Mas, se to assi merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.
128o Se vencendo a moura resistência,
Soube dar a morte com fogo e com ferro,
Também saberá dar a vida, com clemência,
A quem morrerá sem ter tido qualquer erro.
Mas se queres me castigar, apesar da minha inocência,
Coloca-me em perpétuo e miserável desterro,
Na Citia (1) fria ou na Líbia ardente,
Onde viverei chorando eternamente.
1-Citia: região na Ásia, caracterizada pelos longos e duros invernos.
«Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre liões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei.
Ali, co amor intrínseco e vontade
Naquele por quem mouro, criarei
Estas relíquias suas, que aqui viste,
Que refrigério sejam da mãe triste.»
129o Coloca-me onde reina a ferocidade,
Entre leões e tigres, e então verei
Se nas feras eu encontro a piedade
Que nos humanos não achei.
Lá, com o amor abafado e muita saudade
Daquele por quem morro, eu criarei
Os teus netos, estas tuas relíquias que aqui viste,
E que me serão a recordação do pai e consolo da mãe triste.
Queria perdoar-lhe o Rei benino,
Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra üa dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais - e cavaleiros?
130o Queria lhe perdoar o rei benigno,
Comovido pelas palavras que lhe magoam;
Mas o clamor popular e o próprio Destino
(Que assim quis) não lhe perdoam.
Sacam as espadas de aço fino
Os que aceitam o assassinato, conforme apregoam,
Contra uma frágil dama; ó corações carniceiros,
Ferozes se mostraram, mas isso os torna cavalheiros?
«Qual contra a linda moça Policena,
Consolação extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
Co ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela, os olhos com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha)
Na mísera mãe postos, que endoudece,
Ao duro sacrifício se oferece:
131o Igual quando contra a linda Policena (1),
Último consolo da velha mãe esgotada,
Instigado pelo fantasma de Aquiles (2) que a condena,
O brutal Pirro (3) se arma com dura espada;
E ela, com os olhos que até ao Céu serena
(Como uma mansa ovelha amedrontada)
Fita a mãe, que de tanta dor enlouquece,
E resignada, ao sacrifício se oferece.
1- Policena, filha de Príamo e Hécuba. Casou-se secretamente com Aquiles e foi morta por Pirro, filho de Aquiles em outro casamento.
2- Aquiles, herói grego, filho do humano Peleu e da deusa Tétis.
3- Pirro, filho de Aquiles, era inimigo dos romanos. Era o rei de Épiro.
«Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que despois a fez Rainha,
As espadas banhando, e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos
No futuro castigo não cuidosos.
132o Assim avançaram contra Inês os cruéis matadores,
No alvíssimo pescoço, que sustinha
As obras de arte com que o Cupido matou de amores
Àquele que depois de morta, a tornou rainha,
As espadas enfiaram e nas pálidas faces,
Rolaram as lágrimas que ela ainda tinha.
Atacaram irados e furiosos;
Sem pensarem nos futuros castigos rigorosos.
«Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes!
133o Poderias, ó Sol, em razão destes
Fatos, teus raios apagar naquele dia,
Como fizestes quando na mesa de Tiestes (1),
Os seus próprios filhos, Atreu lhes servia.
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
Escutar as últimas palavras da boca já fria;
O nome de Pedro, que ouvistes
E no tempo, com os seus ecos, repetistes.
1- Tiestes: irmão de Atreu, rei de Micenas, que para vingar-se do adultério que sua mulher, Erope, cometeu com Tiestes matou os filhos do casal e os serviu como comida para Tiestes. Neste dia o Sol se apagou para não iluminar a trágica cena.
«Assi como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lacivas maltratada
Da minina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está, morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas e perdida
A branca e viva cor, co a doce vida.
134o Igual à margarida que foi cortada
Antes do tempo e mesmo pura e bela,
Por ter sido maltratada
Pela criança que a usa na lapela,
Perdeu o perfume e ficou desbotada:
Assim está morta, a pálida donzela.
Sumiu a rósea cor do seu rosto e perdida
A suavidade, junto com a doce vida.
«As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram.
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome Amores!
135o As ninfas do rio Mondego a morte escura
Choraram e por longo tempo a relembraram.
E para eternizar tal lembrança, em fonte pura
As suas lágrimas transformaram.
O nome que deram a fonte, e que ainda perdura:
“Dos Amores de Inês” lembra os que ali aconteceram.
Vejam que fresca fonte rega as flores,
Suas águas são lágrimas e seu nome: “Amores”.
«Não correu muito tempo que a vingança
Não visse Pedro das mortais feridas,
Que, em tomando do Reino a governança,
A tomou dos fugidos homicidas;
Do outro Pedro cruíssimo os alcança,
Que ambos, imigos das humanas vidas,
O concerto fizeram, duro e injusto,
Que com Lépido e António fez Augusto.
136o Pouco tempo passou para que a vingança
De Pedro acontecesse, pelas mortes havidas.
Pois tão logo assumiu a Governança
Do reino, decretou-a contra os fugidos homicidas.
A outro Pedro (1) e a outro assassino, a vingança alcança,
Pois ambos, inimigos das humanas vidas,
Planejaram o horrendo plano injusto,
Como fizeram Lépido, Antonio e Augusto (2).
1- Pedro Coelho, Diogo Lopes Pacheco e Álvaro Gonçalves foram os que aconselharam Dom Afonso IV a mandar executar Dona Inês.
2- Lépido, Antonio e Augusto: a citação de Camões é uma referência ao pacto feito pelos triúnviros romanos para efetivar a grande conspiração contra a República e uma feroz perseguição política.
«Este, castigador foi rigoroso
De latrocínios, mortes e adultérios;
Fazer nos maus cruezas, fero e iroso,
Eram os seus mais certos refrigérios.
As cidades guardando, justiçoso,
De todos os soberbos vitupérios,
Mais ladrões, castigando, à morte deu,
Que o vagabundo Alcides ou Teseu.
137o Dom Pedro I (1) foi um juiz rigoroso
Contra latrocínios, assassinatos e adultérios;
Aplicar nos delinqüentes um castigo furioso,
Era sentença certa, mas justa e com critérios.
As cidades guardando, atento e zeloso,
Contra os crimes, foi um de seus méritos.
Mais ladrões, castigando, à morte cedeu
Que o nômade Alcides (2) ou Teseu (3).
1- Dom Pedro I, chamado de “O Justiceiro”. Embora ele próprio fosse adúltero fez leis severas para punir o adultério.
2- Alcides ou Hércules, que por ser neto de Alceu, era chamado de Alcides.
3- Teseu, herói grego que limpou as estradas gregas dos bandidos e matou Sinis, o salteador de Corinto.
«Do justo e duro Pedro nasce o brando
(Vede da natureza o desconcerto!),
Remisso e sem cuidado algum, Fernando,
Que todo o Reino pôs em muito aperto;
Que, vindo o Castelhano devastando
Às terras sem defesa, esteve perto
De destruir-se o Reino totalmente;
Que um fraco Rei faz fraca a forte gente.
138o Dele, que era justo e duro, nasceu o brando
(Note-se qua até a Natureza tem seu desacerto)
Inerte e bisonho chamado Fernando,
O qual pôs todo Reino em muito aperto;
Pois vindo o Castelhano devastando
As terras sem defesa esteve bem perto
De destruir o reino completamente;
Pois um fraco rei debilita até a forte gente.
«Ou foi castigo claro do pecado
De tirar Lianor a seu marido
E casar-se com ela, de enlevado
Num falso parecer mal entendido,
Ou foi que o coração, sujeito e dado
Ao vício vil, de quem se viu rendido,
Mole se fez e fraco; e bem parece
Que um baxo amor os fortes enfraquece.
139o A sua inaptidão, ou foi castigo pelo pecado
De tirar Lianor (1) do seu marido
E com ela se casar, apenas amparado
Por um falso certificado, mal entendido;
Ou por ter o coração, vacilante e inclinado
Para o sórdido vício, ser por ele rendido.
Amoleceu e se fez fraco; pois bem parece
Que o amor inconveniente, aos fortes enfraquece.
1- Quando o seu pai, Dom Pedro, morreu Dom Fernando teve que combater os Castelhanos até que um tratado de paz fosse alcançado em 1.371. Para reforçar a paz, o rei de Castela deu a mão de sua filha, Leonor, e as terras que tinha conquistado. Porém, Dom Fernando não aceitou, pois pretendia casar-se com outra Leonor, que raptara da casa de João Lourenço da Cunha, mas não conseguiu convencer à Igreja de que tinha laços de sangue com a filha do Castelhano, como alegava, nem ao seu próprio povo, o qual, vendo-se prejudicado revoltou-se justamente.
«Do pecado tiveram sempre a pena
Muitos, que Deus o quis e permitiu:
Os que foram roubar a bela Helena,
E com Ápio também Tarquino o viu.
Pois por quem David Santo se condena?
Ou quem o Tribo ilustre destruiu
De Benjamim? Bem claro no-lo ensina
Por Sarra Faraó, Siquém por Dina.
140o Por esse pecado, muitos pagaram justa pena.
Pois isso Deus não quis e nem permitiu:
Como os que foram raptar a bela Helena (1),
E Ápio (2), que igual a Tarquínio (3), assim o sentiu.
E por quem é que o santo Davi (4) se condena?
E por quem a ilustre tribo de Benjamim se destruiu?
O exemplo de Sarra (6) e o Faraó claro nos ensina,
Bem como o de Siquém com Dina (7).
1- Princesa grega, casada com Menelau, que foi raptada por Páris (também chamado de Alexandre), fato que provocou a guerra de Tróia.
2- Ápio Cláudio: romano, que raptou Virginia, morta pelo próprio pai para evitar a desonra da filha. Ápio, posteriormente, foi preso numa revolta popular e suicidou-se na prisão.
3- Sexto Traquino: que violentou Lucrécia, mulher de Tarquino Colatino, provocando um movimento popular que acabou com a realeza em Roma.
4- Davi: o 2º Rei de Israel e profeta, vencedor de Golias, e que cometeu adultério com Betsabé, mulher de Urias. Para ficar com ela, Davi mandou o marido para o ponto mais perigoso na zona de combate, praticamente condenando-o à morte.
5- Benjamin: último filho de Jacó e chefe de uma das doze tribos de Israel. Membros de sua tribo violaram uma mulher da tribo de Levi o que levou as outras tribos a unirem-se e chacinarem os Benjaminitas.
6- Sarra: ou Sara, mulher de Abrão, o Patriarca Bíblico, que a ofereceu ao Faraó em troca de favores, de terra, dinheiro, segurança etc. Comportamento que na atualidade é taxado como “cafetinagem” ou “ato de cafetão”.
7- Siquém, filho de Hemor, raptou e violentou Dina, filha de Jacó. Os irmãos de Dina mataram Siquém e o seu pai e destruíram os seus campos.
«E pois, se os peitos fortes enfraquece
Um inconcesso amor desatinado,
Bem no filho de Almena se parece
Quando em Ônfale andava transformado.
De Marco António a fama se escurece
Com ser tanto a Cleópatra afeiçoado.
Tu também, Peno próspero, o sentiste
Despois que üa moça vil na Apúlia viste.
141o É fato que aos fortes corações enfraquece
Um inconveniente amor desatinado,
Como se vê no filho de Alcmena (1) que parece
Uma mulher, quando por Ôrfale (2) era apaixonado;
Ou, com Marco Antonio (3) cuja fama escurece
Por ser à Cleópatra (4) muito afeiçoado.
Também tu, ilustre Peno (5), assim o sentiste
Depois que uma moça vulgar, na Apúlia (6) viste.
1- Alcmena, mãe de Hércules.
2- Ôrfale: rainha da Lídia, que se casou com Hércules só após ele concordar em fazer tarefas femininas, enquanto ela vestia a pele do Leão da Neméia, em clara provocação.
3- Marco Antonio: Triúnviro de Roma célebre por seus amores com Cleópatra.
4- Cleópatra: Rainha do Egito célebre pela beleza e inteligência. Foi amante de César e, depois, de Marco Antonio.
5- Peno: Aníbal, general Cartaginês.
6- Apúlia: região do sul da Itália. Ali, Aníbal apaixonou-se por uma mulher que não pertencia à nobreza.
«Mas quem pode livrar-se, porventura,
Dos laços que Amor arma brandamente
Entre as rosas e a neve humana pura,
O ouro e o alabastro transparente?
Quem, de üa peregrina fermosura,
De um vulto de Medusa propriamente,
Que o coração converte, que tem preso,
Em pedra, não, mas em desejo aceso?
142o Mas quem pode se livrar, porventura,
Dos laços que o Cupido arma brandamente
Entre rosadas e alvas faces humanas, belas e puras,
Com os louros cabelos e olhos de cor transparente?
Quem conseguiu escapar de formosuras,
Como a que Medusa (1) tinha e que sabiamente,
O coração conquista, converte e mantém preso,
Não em pedra, mas em desejo aceso?
1-Medusa: divindade marinha, belíssima e com lindos cabelos. Poseidon apaixonou-se por ela e transformado em pássaro levou-a a um templo de Atená (Atenas), que se indignou com a pretensão de Medusa em comparar-se a ela e transformou os seus cabelos em serpentes e fez com que os seus olhos transmutassem em pedra tudo o que mirassem.
«Quem viu um olhar seguro, um gesto brando,
üa suave e angélica excelência,
Que em si está sempre as almas transformando,
Que tivesse contra ela resistência?
Desculpado por certo está Fernando,
Pera quem tem de amor experiência;
Mas antes, tendo livre a fantasia,
Por muito mais culpado o julgaria.
143o Quem é que ante um rosto brando,
Uma suave e angelical aparência,
Que por si as almas vai cativando,
Pôde oferecer resistência?
Certamente será desculpado Fernando,
Por aqueles que do amor tem experiência;
Porém, aquele que não viveu tal magia,
Muito mais culpado o julgaria.
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