A Crítica da Razão
Prática
Antes de tudo será
necessário desvincular dois conceitos que vulgar e equivocadamente são associados
com frequência: a Teologia e a Religião.
A Teologia, como se
sabe, é o estudo sobre a divindade, enquanto que a Religião é o exercício da
crença irracional em algo ou em alguém.
Mas, como esse “alguém”
geralmente é relacionado a Deus, essa junção errônea acabou se consolidando e,
por isso, é assaz importante considerarmos a diferença entre ambas para um
melhor entendimento da tese de Kant.
Segundo ele, a Religião
não pode ser baseada na Ciência nem na Teologia. Na primeira, pelo natural e
inevitável confronto entre o Materialismo empírico dos estudos e conclusões
científicas contra o Idealismo religioso. Em relação à segunda, a Teologia, o
embasamento não pode ocorrer em virtude da inconsistência dos argumentos,
conceitos e conclusões teológicos, os quais, não raro, beiram à reles superstição,
ao animismo primitivo etc.
Mas, então, se a
Religião não pode se fundamentar na Teologia ou na Ciência, em que base ela
poderá se lastrear?
Segundo Kant, a fé deve
ser colocada longe dos domínios da Razão e como a racionalidade permeia a
praticamente tudo, resta-lhe apenas a Moral como fundamento. Contudo, essa
“Base Moral” deve imperiosamente ser “absoluta”, ou seja, não resultar de
experiências sensoriais duvidosas, tampouco de raciocínios ou reflexões
incorretos ou mal intencionados. Há que ser a Moral proveniente apenas da Intuição*
inata, a priori, que nos “diz” o que é bom e o que é mal. Ou, em termos
populares, da “Consciência”.
Uma Moral que tenha os
seus princípios tão absolutos, tão certos e tão necessários quanto são os princípios
da Matemática, por exemplo.
E para que esse tipo de
Moralidade possa existir de fato, é preciso que o homem encontre uma “Ética
Universal (isto
é, para todos e tudo)” e necessária*, através da qual se
chegue ao pleno exercício do “Senso Moral” inato e independente de fatores
condicionantes e à “Razão Prática Pura”; ou seja, absoluta, correta e anterior
a qualquer experiência sensorial.
É preciso que homem
estabeleça que o imperativo moral que embasa a Religião seja um Imperativo
Absoluto Categórico.
Mas o que vem a ser
exatamente esse Imperativo Categórico que se transformou numa das colunas do
pensamento kantiano?
Em toda experiência que
temos com o mundo externo um fator está sempre presente: o nosso senso moral. O
sentimento inevitável de que isto ou aquilo está errado, pois mesmo quando
cedemos à tentação e praticamos um ato que julgamos errado, o sentimento de
certo e errado está conosco.
Pois bem, o Imperativo
Categórico é justamente esse sentimento que nos é inerente e que nos
traz o remorso pelo erro cometido e a decisão de não repeti-lo. Em termos
populares: a “mão na consciência”.
Segundo Kant:
“O
Imperativo Categórico é agir como se a máxima de nossa ação fosse tornar-se,
por vontade nossa, uma lei universal da natureza”.
Sabemos que temos que
evitar o comportamento que se for adotado por todos impossibilitará o convívio
social. Sabemos, por exemplo, que uma mentira poderia nos ser útil, mas ainda
que se deseje utilizá-la, não se deseja que ela se transforme em uma Lei ou
Regra geral, pois se tal acontecesse não se poderia mais confiar em
absolutamente nada.
O exercício da autocensura
leva ao entendimento de que uma “boa ação” é boa não apenas pelos resultados
imediatos que possa trazer, mas, principalmente, porque ela não ofende ao nosso
senso moral. Permite-nos ter a “consciência tranquila”.
Colocados esses
argumentos, é preciso considerar que se podem questionar as teses de Kant, inclusive
no tocante a sua real autoria, já que lhes perpassa certo discurso religioso;
ou, então, pelo fato do mestre alemão não ter definido o que seja “Bom”, “Mal”
“Certo”, “Errado” etc.
Em relação à primeira objeção
provável, deve-se reconhecer que há, de fato, similitude entre as teses religiosas
e as que foram estabelecidas por Kant, processo acontecido tanto pelas antigas
influências Pietistas que a mãe lhe repassou, quanto pelo fato de que o Imperativo Categórico deveria ser o
ideal transcendente da Religião em oposição ao que se via (ou se vê) nas degradadas
liturgias e rotinas eclesiásticas. Assim, pode-se pensar que Kant pregava um
retorno à pureza original do sentimento religioso.
Em relação à segunda
objeção provável, deve-se atentar para o fato de que a definição de “Bom”, “Certo”
etc. é praticamente impossível haja vista a relatividade desses conceitos
conforme a época em que são colocados ou por quem são estabelecidos. É o caso,
por exemplo, da escravidão que no passado era vista como “boa” e atualmente é
justamente execrada.
Ademais, é preciso ter
em mente que o pensamento kantiano prende-se à transcendência e considerar que
ele trata de como sentimos intimamente os efeitos do que seja positivo ou
negativo, sem descer às características temporais dos qualificativos. Por isso,
aliás, ele insistiu que a Lei Moral nunca poderia vir da experiência pessoal.
Para Kant, a única
coisa “realmente boa” que existe é a vontade de seguir a Lei Moral, mesmo que
ao custo de contratempos e prejuízos pessoais. Em certos trechos ele chega a
fazer a apologia do “Dever” em detrimento dos interesses próprios, incorporando-o
ao Imperativo Categórico. Também afirma que o homem deve viver segundo esses princípios
para que consiga criar uma comunidade de seres racionais**
“Moralidade
não é propriamente a doutrina de como podemos nos fazer felizes, mas de como
podemos nos tornar dignos da felicidade”.
No geral, a obra
apresenta essas prédicas eivadas de moralidade religiosa. Também é possível observar
nessa pregação, o caráter nacional alemão, que nele se manifestou com vigor no
tocante à seriedade, eficiência e regularidade.
Contudo, esse retorno a
um tipo de Moralidade cristã não o fez simpático ao clero e ele tampouco
avalizou a religião que se praticava (ou que se pratica), escorada apenas em
dogmas vazios e numa liturgia fantasiosa.
Para ele, ao se
retornar à divindade e ao se optar por obedecer a Lei Moral, na verdade, está-se
exercendo a mais genuína liberdade frente ao império dos desejos físicos, na
medida em que ao resistir às tentações o homem se liberta dos valores e das coisas
“menores”, livra-se do “mundo dos fenômenos” e sente que essa liberdade é a sua
verdadeira essência.
Nota
do Autor – observe-se que no parágrafo acima, a tese de Kant
é quase que uma cópia integral da doutrina Budista.
O homem compreende, então,
que está além e acima das Leis que ele próprio fez apenas para entender o mundo
(sensorial) que experimenta. Sente a sua própria transcendência.
Ao exarar essas teses Kant
não estava tomado por um ingênuo fervor místico nem por um Idealismo primário,
pois sempre esteve consciente da rudeza do mundo, mas isso não lhe esmorecia o ânimo
para continuar a sua pregação em favor do homem, pois como bem disseram Rosseau e Pascal, respectivamente:
“Acima
da lógica da cabeça está o sentimento do coração”.
“O coração tem razões próprias que a cabeça jamais poderá compreender”.
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