A Razão e a Religião
Crítica
da Faculdade de Julgar e A Religião dentro dos limites da Razão Pura
Quando Kant proclamou a
sua teoria acerca da Lei Moral ele se opôs de modo direto, mas talvez não
intencional ao clero ortodoxo e aos adeptos da chamada “Teologia Racional” que buscavam (inutilmente, diga-se) vincular a
crença com a racionalidade.
Para esses “doutores”
da igreja, a religiosidade que Kant havia endossado e que se baseava apenas na
fé e na esperança, parecia um reles animismo primitivo, indigno da civilização
de que eles se julgavam o ápice por serem os representantes de Deus (sic).
Ademais essa posição de “representantes” conferia-lhes poder, status e fortuna
e ao ver que a ameaçavam, reagiram com virulência.
Por outro lado, os
Governantes que tinham na Religião um poderoso instrumento de controle social
também se sentiram incomodados com o discurso kantiano, pois lhe viam como uma
semente para futuros questionamentos sobre a legitimidade de seu poder e de
seus atos.
O leitor (a) pode
perceber, então, a magnitude das forças opositoras com que Kant teve que se confrontar.
Todavia, não obstante os seus sessenta e seis de idade, a sua frágil compleição
física, a sua pequena fortuna e a sua personalidade tímida, ele não se
intimidou e nem recuou em suas opiniões.
Ao contrário do que
imaginavam aqueles que tentaram intimidá-lo, ele escreveu mais dois livros
sobre o assunto e com isso criou, ou reforçou, as bases para o futuro laicismo
do Estado e para a relativização dos dogmas religiosos. Na sequência analisaremos
brevemente esses textos.
O primeiro livro
recebeu o nome de Crítica da Faculdade de Julgar (Crítica do Juízo) e nele o
autor retoma a discussão sobre a chamada “Prova Teleológica*” da existência de
Deus, que ele já havia rejeitado na Crítica
da Razão Pura por julgá-la insuficiente.
Nesta, ele relaciona
“Planejamento” e “Beleza”, pois, segundo a sua ótica, o “Belo” revelaria através
de sua simetria e unidade que teria sido “planejado” por alguma inteligência.
No curso do texto, ele
afirma que muitos dos objetos da natureza exibem, com efeito, essa “beleza (utilidade,
propriedade)” e isso cria a sensação de haver um
verdadeiro projeto (divino) na construção do mundo. Porém, também existem na
natureza várias anomalias, desperdícios, casos de repetições, de multiplicações
inúteis, deformidades, caos etc. E com isso se percebe que o projeto (divino)
que se imaginou, não existe, tratando-se, antes, de uma simples aparência
falsa.
A partir dessa
constatação, ele conclui que aquele “simulacro de um projeto**” não serve,
pois, como prova inquestionável da existência do divino.
** Nota do Autor – embora Kant julgasse que o
“planejamento perfeito divino” fosse uma falácia, ele acreditava existir algum
planejamento que propiciava o ordenamento da natureza, apesar das irregularidades
que a mesma ostenta. E que se tal planejamento não servia para provar a
existência de Deus, serviria ao menos para que os cientistas pudessem chegar a
algumas respostas através de seu estudo. Para ele, tal projeto seria “interno”
e associado apenas às partes, mas ainda assim, seria importante estudar-lhe,
pois ao se desvendar os mistérios parciais, poder-se-ia desvendar num segundo
momento, os mistérios do todo.
A continuidade dessa
negação, iniciada na primeira Crítica, custou-lhe algum constrangimento, pois
ele já não vivia sob a proteção do Imperador Frederico, o Grande, que, enquanto
viveu, assegurou-lhe o direito de expor livremente as suas discordâncias da
“Verdade” proclamada pela Religião oficial.
E, Frederico Guilherme
II, o sucessor do magnânimo imperador, por ter franca aversão às políticas e
ideias liberais, taxando-as de impatrióticas e eivadas do Iluminismo francês,
não tardou em aplicar-lhe algumas sanções governamentais. Nada, porém, que o
fizesse desistir e após três anos, já então com sessenta e nove de idade, ele
escreveu o que alguns consideram o seu livro mais ousado: A Religião dentro dos limites da
Razão Pura.
Prosseguindo em sua
censura contra a ortodoxia funesta e má intencionada, ele destaca nesse livro
que como a religião não pode ter como embasamento a Razão Teórica, mas apenas a
Razão Prática do senso moral, qualquer Bíblia ou revelação deve ser julgada
pela sua moralidade, sem que ela se arrogue o direito de ser ela mesma o Juiz
dos homens, pois os dogmas e as igrejas só tem valor enquanto auxiliam a
desenvolver a ética humana.
Para ele, quanto mais
liturgias e cerimônias usurpam a prioridade da excelência moral, menos sincera
é a crença, pois a igreja verdadeira deve ser uma comunidade em que as pessoas
se unem pela devoção à Lei Moral.
Foi, aliás, para criar
esse tipo de comunidade que Jesus Cristo teria vindo ao mundo. Foi essa a
igreja que ele planejou contra eclesiasticismo dos fariseus, mas outro
eclesiasticismo soterrou essa nobre intenção e nas palavras de Kant: “Cristo trouxe o reino de Deus para mais
perto da Terra; mas foi mal interpretado, e em lugar do reino de Deus estabeleceu-se
entre nós o reino do padre”.
Credo e ritual
substituíram a “boa nova” e em vez dos homens ficarem unidos pela religião,
dividiram-se em mil seitas. Ademais, não se tem o menor pejo em se “exigir”
milagres, como se Deus fosse um mero doador de benesses e de nada servissem as
Leis da Natureza, as quais estariam sujeitas ao poder das orações e dos
interesses individuais. Contudo, o nadir (o ponto mais baixo)
da Religião acontece quando ela se vende ao Poder político e se torna um
instrumento de repressão e de controle nas mãos de um governo corrupto,
maléfico, ilegítimo etc.
Como se vê, foram
censuras pesadas não só aos religiosos, mas também aos Governantes que se utilizam
do sentimento religioso para dominar e reprimir os legítimos anseios do povo.
E por conta dessas
críticas, o Ministro da Educação** não tardou em iniciar a perseguição contra
Kant, que, por sua vez, novamente não se intimidou e ante a impossibilidade de
o jornal Berliner Nonatsschrift fazer
a publicação prevista devido à interdição ministerial, ele remeteu o manuscrito
para amigos em Jena (cidade e universidade na Prússia)
e, através deles, publicou-o na imprensa daquela universidade, ao abrigo do
liberal duque de Weimar, que à época
também protegia a Goethe.
Nota do Autor - Wollner**, um fanático pietista mal
intencionado, que subiu ao posto em 1788 e logo em seguida proibiu todos os
colégios e universidades de ministrarem qualquer ensinamento que pudesse
confrontar as “Sagradas Escrituras”.
A publicação acirrou os
ânimos do governo e em 1794, Kant recebeu a seguinte reprimenda:
“Nossa
altíssima pessoa ficou muitíssimo contrariada ao observar que fazeis mau*** uso
de vossa filosofia para solapar e destruir muitas das mais importantes e fundamentais
doutrinas das Sagradas Escrituras e do Cristianismo. Ordenamos uma imediata
explicação correta e esperamos que, no futuro, não mais provoqueis uma ofensa
dessas, mas, isso sim, de acordo com o vosso dever, que empregueis vossos
talentos e autoridade a fim de que o nosso propósito paternal possa ser alcançado
cada vez mais. Se continuardes a vos opor a esta ordem, podereis esperar
consequências desagradáveis”.
Kant nada respondeu.
Era desnecessário.
Nota
do Autor – mau ***,mantida a ortografia original
Para
Miucha Adena.
São
Paulo, 27 de Maio de 2014.
GLOSSÁRIO
DE TERMOS FILOSÓFICOS
- A priori
– o que já existe antes de qualquer experiência. Inato, herdado
geneticamente.
- Categorias do Pensamento – Para Kant, as Categorias são
conceitos puros (ou definições isentas das imperfeições
empíricas) do Entendimento e referem-se a priori
aos objetos da Intuição em Geral como funções lógicas. Não são os gêneros
das coisas, conceitos gerais, formas lógicas e nem, tampouco, são ficções.
Não descrevem a realidade, embora tornem possível compreendê-la. Kant fundamenta sua tábua de categorias
na tabela das formas de Juízo, com a seguinte abrangência: Quantidade:
unidade, pluralidade, totalidade (ie. a coisa em questão
apresenta-se unificada ou é um ente entre vários semelhantes etc.);
Qualidade: realidade, negação, limitação; Relação: substância
e acidente, causalidade e dependência, comunidade ou reciprocidade entre
agente e paciente; Modalidade: possibilidade, impossibilidade,
existência, não existência, necessidade, contingência. Além destas,
existem as chamadas “Categorias Predicáveis do Entendimento Puro” opostas
aos predicamentos.
- Causalidade ou Lei de Causa e
Efeito – essa Lei prevê que certa ação
ocasionará necessariamente um mesmo resultado.
- Contingência –
aquilo que ao contrário do “necessário” pode ser de outra maneira, pode
existir ou não etc.
- Empiricamente o
conhecimento obtido através do que foi captado pelos Sentidos (tato,
visão, audição, paladar e olfato) e raciocinado logicamente.
- Experiência ou Experiência
Sensorial ou Empírica – aquilo que é captado pelos Sentidos
(tato, visão, audição, paladar e olfato). Os relacionamentos do indivíduo
com o mundo exterior.
- Fenômeno –
aquilo que as operações mentais e/ou os Sentidos (tato, visão, audição,
paladar e olfato) conseguem captar de algo ou alguém. Aquilo que é
aparente, percebido pela Mente ou Consciência.
- Intuição –
ou Percepção Direta – é o modo
de conhecimento direto que coloca a Mente em contato com o objeto de modo
automático e sem intermediação de análises e conclusões racionais. A “Intuição Pura”, segundo Kant, é a
intuição inata sobre o Tempo e o Espaço, elementos indispensáveis no processo
de transformação das Sensações em Percepções e Concepções.
- Necessária
– a condição de qualquer coisa, acontecimento etc. ser daquela maneira,
não podendo ser de outro modo.
- Percepções*
- além do sentido que normalmente lhe é dado, perceber algo ou alguém, o
termo adquire em Filosofia significados mais amplos. Neste Ensaio usamos a
definição que lhe deu Kant para quem é a Percepção que dá forma às
Sensações através do uso das intuições que nos são inatas sobre o Tempo e
o Espaço. Assim, temos a Percepção como “Entendimento”, “Compreensão”.
- Razão Pura*
– o raciocínio feito a partir de elementos a priori, a partir de dados
relativos à essência das coisas. O raciocínio feito a partir das “verdades
primeiras” e fundamentais.
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