A Dialética
Transcendental
Uma das faces mais
conhecidas do Pensamento kantiano é a diferenciação que ele fez entre a Essência
da coisa (ou a “coisa em si” ou
o “numeno”) e o seu Fenômeno*.
Graças a essa
diferenciação é que se pode observar que a “certeza” e a “incondicionalidade”
que a Lógica e a Ciência proclamam, na verdade, são apenas relativas porque se
limitam ao campo fenomenico, empírico, sensorial. Limitam-se àquilo que nós
captamos ou percebemos.
Segundo vários
eruditos, o mundo que conhecemos é uma construção mental que erguemos a partir
da utilização da Mente, enquanto “agente modelador”, e das Coisas enquanto
“estímulos”.
O objeto que captamos
através dos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato)
é uma “aparição”, um “fenômeno” e, provavelmente, muito diferente do que seja
“em si”.
Após tê-lo captado, a
Mente o modela segundo as suas Leis, resultando desse processo a nossa eterna
incerteza sobre “a coisa em si”, a qual pode, inclusive, ser um “Objeto do Pensamento”
existente na própria Mente. Porém, ainda assim, ela nunca poderá ser experimentada,
pois qualquer experimentação exige o concurso dos sentidos e se eles forem
utilizados a maculariam, completando, assim, o circulo das impossibilidades.
Nas palavras de Kant:
“Continua
inteiramente desconhecido para nós o que os objetos podem ser por si só e fora
da receptividade dos nossos Sentidos. Nada conhecemos, exceto a nossa maneira
de percebê-los; maneira peculiar a nós e não necessariamente partilhada por
todos, embora o seja, sem dúvidas, por todos os Seres humanos. A
Lua que conhecemos, por exemplo, é meramente um feixe de Sensações; unificado
pela nossa estrutura mental inata, através do processo de transformação dessas Sensações
em Percepções
e destas em Concepções ou Ideias.
Por isso se pode dizer, que para nós a Lua é apenas as nossas Ideias”.
Todavia, Kant sempre deixou
clara a sua crença na existência efetiva da matéria, do mundo externo, mesmo que
ele nos seja incognoscível, já que o nosso conhecimento chega apenas à aparência,
à “casca”, à superfície dos mesmos. Para ele, o Idealismo não significava a
negação peremptória e definitiva do mundo concreto, físico, de que nada existe
fora do sujeito, conforme afirmaram alguns idealistas mais radicais, como Bekerley, por exemplo.
Em sua concepção, o
Idealismo é a doutrina que afirma que boa parte do objeto captado é criada
pelas “Formas de Percepção e de Compreensão” e que, por isso, só conhecemos o
objeto da forma que ele ficou após ter sido transformado em “ideia”.
O que ele é realmente,
ou seja, antes de ter sofrido essa transformação é uma incógnita, apesar da Ciência
insistir ingenuamente no contrário, proclamando ser capaz de desvendar a sua
natureza e o seu formato original.
Jactância de que não compartilha
a Filosofia, pois os Filósofos sabem que não se consegue lidar com o “numeno”; e
por isso tem consciência de que se trabalha apenas com as Sensações, as Percepções
e as Concepções que haurem das “coisas em si”.
Essa distinção entre a
Essência e o Fenômeno foi um resgate para a Filosofia moderna do antigo ideário
platônico da “Ideia” enquanto modelo ou padrão para as “cópias” individuais e
físicas que existem no mundo concreto, ou mundo das aparências.
Pela sua importância,
tal resgate mereceu a aprovação quase unânime da comunidade filosófica. Schopenhauer, por exemplo, disse que
esse seria o maior mérito do sistema kantiano.
E nasce dessa diferenciação
o conceito da Dialética Transcendental que ao examinar as
premissas colocadas pela Ciência e pela Religião como absolutas, necessárias e
verdadeiras comprova a triste falácia das mesmas, pois a Ciência que pretende
ser “transcendental” afirmando ser capaz de ir além da sensibilidade, só
consegue perder-se em antinomias (a contradição entre duas leis, ou princípios). E
a Religião que tem pretensão igual, afunda em paralogismos (raciocínios
falsos) exarados por ingenuidade ou por má fé.
As antinomias que
surgem inevitavelmente em todas as Ciências que tentam ultrapassar ou transcender
a experiência empírica geram dúvidas insolúveis como:
“O
mundo é finito ou infinito?”.
O nosso pensamento
rebela-se contra as duas alternativas, pois de um lado somos levados a pensar
que existe “algo além”, mas não conseguimos conceber a infinidade.
“O
mundo teve um começo?”
Não conseguimos definir
a eternidade, mas também não podemos pensar em algo no passado sem “sentir” que
antes daquele algo já havia alguma coisa.
“A
cadeia de Causa e Efeito (causalidade) teve uma Causa primeira?”
Uma parte de nós diz
que sim, pois como imaginar que essa cadeia seja interminável e, portanto, não iniciada?
Contudo, outra parte da nossa Razão nega, porque também não conseguimos imaginar
uma Causa que não tivesse sido causada.
São antinomias que se
repetem em todas as ciências e para muitos esse é um problema insolúvel. Todavia,
para Kant existe uma saída para esses
impasses, bastando que se procure socorro na Filosofia, já que ela ensina que o
Tempo, o Espaço e a Causa são “modos de percepção e de concepção”, ou seja, maneiras
inatas de se assimilar, racionalizar e compreender; e não coisas que estão sujeitas às Leis antagônicas da matéria e
que por isso causam as contradições. E porque são maneiras inatas, são
onipresentes e formam a teia e a estrutura dessas mesmas experiências.
Vê-se, portanto, que as
antinomias nascem da suposição equivocada de que Espaço, Tempo e Causa são
“coisas externas”, independentes, e não “gavetas” que se usa para classificar e
processar os saberes que se adquire.
E se isso acontece com
as Ciências, processo semelhante se verifica na Religião onde os paralogismos
da chamada “Teologia Racional” tentam provar cientifica e logicamente a
existência de um “Ser Necessário (Deus)” ou, então, que a alma é uma substância
indestrutível ou que o livre-arbítrio está acima da Lei de Causa e Efeito e
tantos outros dogmas.
Esquecem, contudo, os
religiosos que a Dialética Transcendental comprovou que a Substância, a Causa, a
Necessidade são relacionadas apenas aos Fenômenos e às experiências sensoriais,
não sendo possível associar ao mundo das essências, das coisa-em-Si nenhum desses
conceitos. Confirmou, em resumo, que a Religião não pode ser comprovada
cientifica, racional e logicamente, sendo, portanto, apenas um “objeto da fé”.
Algo em que se acredita, ou não, estando muito longe de ser uma “Verdade” universal
e inquestionável, como desejam os que nela acreditam ou que dela dependem emocionalmente
ou que nela trabalham ou que nela se locupletam.
Por fim, é chegado o
momento de se verificar os resultados efetivos que Kant logrou com a sua copiosa
obra: A Crítica da Razão Pura.
Se a proposta inicial
do livro era responder às questões metafísicas e salvar o que há de genuíno e absoluto
na Ciência e na Teologia, pode-se dizer que o sucesso foi alcançado, pois ao
estabelecer a transcendência da Estética, da Analítica e da Dialética, Kant adentrou
ao campo da Metafísica para num segundo momento buscar as soluções para os
problemas da mesma.
Ademais, por destruir a
jactância da Ciência ao comprovar a sua limitação ao mundo fenomênico, do qual
ela só sai para cair em intermináveis contradições, ele a teria salvo de sua
própria ingenuidade. E de maneira similar teria salvado a Essência da Religião
ao comprovar que os seus objetos de fé (Deus, alma incorruptível etc.) nunca
poderão ser comprovados pela Razão, já que a crença não pode ser racional sob o
risco de se extinguir. Afinal, como bem disse o Mestre Eckart (sec.XIII, Alemanha):
“Creio porque é absurdo” (Se não fosse absurdo, se fosse
mensurável eu não precisaria crer, pois eu poderia compreender).
É claro que as suas
ponderações causaram muito descontentamento entre os homens da Ciência e os da
Religião, além de várias censuras de outros filósofos que diziam ser o seu
sistema apenas uma copia do de Hume, ou uma derivação de Bekerley etc.
Os homens da Ciência
ressentiram-se por verem evaporar as suas “Verdades Cientificas”. Por ver que
lidavam apenas com a superfície, com a casca das coisas e que os seus
enunciados eram tão corruptíveis quanto os seus objetos de estudo. Ressentiram-se
por ver que não obstante os seus esforços, nunca atingiriam a Coisa-em-si, a
“Verdade última” etc.
E se ressentiram os
Religiosos por ter ficado provado que a sua “Verdade” era apenas sua e de quem
lhes compartilhasse a crença, não podendo pretender-se que fosse geral e
inquestionável. E ressentiram-se porque Kant provou que os seus dogmas são
impossíveis de serem provados racionalmente, estando sujeitos, portanto, a ser
uma simples crença. Foi, é certo, um grande abalo que sofreram, pois até então
a existência de Deus não podia sequer ser colocada em dúvida sob pena de
sanções eclesiásticas, sociais e judiciais. Mas, talvez, o motivo mais
importante de seu ressentimento foi a subtração ocorrida em seus status de
“Arautos da Verdade”, pois a “Verdade” já não existia como antes.
E quanto aos Filósofos,
pouco se tem a acrescentar ao que já foi dito, somando-se apenas a inveja despertada
como é comum nos casos das inteligências superiores.
De qualquer forma,
essas reações são inevitáveis, pois toda genialidade tira os medíocres da sua
zona de conforto e em vista desse abalo, só lhes resta protestar. O fato é que
Kant, em sua grandeza, contrapôs-se ao Materialismo, mas sem cair em um
Idealismo ingênuo ou radical. Ao contrário, elevou a doutrina ao patamar das
essências, à Metafísica e com isso escreveu o seu nome de forma perene entre os
grandes sábios da humanidade.
GLOSSARIO
DE TERMOS FILOSÓFICOS
- A priori
– o que já existe antes de qualquer experiência. Inato, herdado
geneticamente.
- Categorias do Pensamento – Para Kant, as Categorias são
conceitos puros (ou definições isentas das imperfeições
empíricas) do Entendimento e referem-se a priori
aos objetos da Intuição em Geral como funções lógicas. Não são os gêneros
das coisas, conceitos gerais, formas lógicas e nem, tampouco, são ficções.
Não descrevem a realidade, embora tornem possível compreendê-la. Kant fundamenta sua tábua de categorias
na tabela das formas de Juízo, com a seguinte abrangência: Quantidade:
unidade, pluralidade, totalidade (ie. a coisa em questão
apresenta-se unificada ou é um ente entre vários semelhantes etc.);
Qualidade: realidade, negação, limitação; Relação: substância
e acidente, causalidade e dependência, comunidade ou reciprocidade entre
agente e paciente; Modalidade: possibilidade, impossibilidade,
existência, não existência, necessidade, contingência. Além destas,
existem as chamadas “Categorias Predicáveis do Entendimento Puro” opostas
aos predicamentos.
- Causalidade ou Lei de Causa e
Efeito – essa Lei prevê que certa ação
ocasionará necessariamente um mesmo resultado.
- Contingência –
aquilo que ao contrário do “necessário” pode ser de outra maneira, pode existir
ou não etc.
- Empiricamente o
conhecimento obtido através do que foi captado pelos Sentidos (tato,
visão, audição, paladar e olfato) e raciocinado logicamente.
- Experiência ou Experiência
Sensorial ou Empírica – aquilo que é captado pelos Sentidos
(tato, visão, audição, paladar e olfato). Os relacionamentos do indivíduo
com o mundo exterior.
- Fenômeno –
aquilo que as operações mentais e/ou os Sentidos (tato, visão, audição,
paladar e olfato) conseguem captar de algo ou alguém. Aquilo que é
aparente, percebido pela Mente ou Consciência.
- Necessária
– a condição de qualquer coisa, acontecimento etc. ser daquela maneira,
não podendo ser de outro modo.
- Percepções*
- além do sentido que normalmente lhe é dado, perceber algo ou alguém, o
termo adquire em Filosofia significados mais amplos. Neste Ensaio usamos a
definição que lhe deu Kant para quem é a Percepção que dá forma às
Sensações através do uso das intuições que nos são inatas sobre o Tempo e
o Espaço. Assim, temos a Percepção como “Entendimento”, “Compreensão”.
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