Pode-se afirmar
que o Livro “um” de Dom Quixote foi o primeiro “Best Seller” havido no mundo. Publicado
em Madri no ano de 1605, tão rapidamente conquistou o público que logo nos
bailes e festas às fantasias seguintes, as mascaras de Sancho Pança e do
Cavaleiro da Triste Figura eram as mais usadas por conta das boas graças que as
duas personagens conquistaram nos corações dos leitores independentemente de
suas classes sociais ou intelectuais. Outro dado que também aponta para o
enorme sucesso da obra está no fato de ter havido dez reedições em espanhol da
mesma até 1613 e uma em inglês no ano de 1612 e outra, em francês, no ano de
1614. Dados robustos que falam por si e não
deixam dúvidas sobre o encanto que a composição de Cervantes espalhou por todos
os cantos em que chegou. Dela, algumas passagens se tornaram de tal forma
difundidas que até quem não leu o livro, as conhece, como é o caso, por
exemplo, do duelo contra os moinhos de vento. E para aumentar o fascínio que o esplêndido
estilo do autor oferta, existe a possibilidade de haverem várias leituras para
o texto, o qual, de inicio, era tido como uma deliciosa comédia que arrancava
sonoras gargalhadas graças às trapalhadas do Cavaleiro e à figura simplória de
Sancho. Posteriormente, a obra passou a ser lida como um libelo contra a
mesquinhez de uma realidade pobre, tacanha e cruel; digna apenas de ser
esquecida e trocada pelas fantasias e pelos sonhos, sem temer as censuras e as
cobranças de uma sociedade carcomida pela busca desenfreada por valores
duvidosos e pelo continuo abandono da generosidade, lealdade, honra e outros
valores éticos. Sociedade regida pelo mais baixo interesse material e constrangedora
da liberdade, da criatividade e de outras expressões tão caras ao gênio humano.
Sociedade que não hesita em tratar como demente todo aquele que tenha coragem
suficiente e se disponha a resgatar aquilo que a vida deveria ser. Sociedade que
não titubeia em trancar nos manicômios e nos presídios todos aqueles que rezam
suas próprias cartilhas e não se sujeitam ao bárbaro domínio exercido por
figuras mitológicas e ou religiosas e tampouco se submetem à caduquice de
valores e conceitos que só se sustentam em convenções criadas pelos mais poderosos
em seu próprio beneficio. E simbolizando esses “santos loucos e heroicos”, Dom
Quixote chegou aos nossos dias e foi em nosso tempo que recebeu a justíssima homenagem
de ter sido eleito o “Melhor livro de Ficção de todos os Tempos”. Assim, por tudo
isso, não é difícil imaginar o quanto Cervantes foi pressionado pelos Editores
e leitores para continuar com a saga do de Dom Quixote e Sancho Pança, mesmo ele
nunca tendo dado a entender de forma explicita se tinha em mente prosseguir com
a obra-prima. De todo modo, por volta de 1611 ele retomou o trabalho e após três
anos de labuta foi surpreendido com o aparecimento de uma versão apócrifa de
seu livro. Escrito por um tal Alonso Fernandes Avellaneda (vide nota) o “Quixote”
falso tenta fazer uma continuação das aventuras do Cavaleiro Errante, mas como costuma
acontecer com as cópias, a péssima qualidade do mesmo indica a sua má origem e
o quanto falhou em sua tentativa. Ademais, o autor usa de sórdida grosseria
para atacar Cervantes chamando-o de “velho” e “maneta” em alusão à sua avançada
idade e ao fato dele ter perdido a mão esquerda na famosa batalha de “Lepanto”.
Embora desgostoso com a falcatrua e por ter sido vituperado covardemente,
Cervantes mostrou-se novamente superior e não partiu para o revide brutal, que
talvez fosse desejado pelo plagiador, vez que essa celeuma poderia trazer-lhe a
fama que buscava, mas que não merecia. Ao contrário do vulgar, ele respondeu em
forma de zombaria citando o livro falso nesse Segundo Livro, sempre destacando
as suas incoerências, mentiras e mediocridades. Assim, quando em 1915 veio à
luz essa segunda parte, já no prólogo ele avisa que não partiria para a agressão,
mas em compensação, durante o transcorrer do texto, ele não deixa de citar de
forma pejorativa o embuste de foi vitima. Foi, deveras, um lance genial. Um livro
dentro de outro. Como, aliás, de certa forma, já ocorrera no Primeiro Livro quando
o suposto primeiro narrador avisa estar apenas recontando uma história escrita
em árabe e que chegou ao castelhano através da tradução de Cide Hamete Benengeli
(o também suposto segundo narrador). Mas se no primeiro volume, o cerne era voltado
apenas para cantar o heroísmo de Quixote, no segundo é usado, também, para
punir o fraudador. Por isso, logo nas primeiras páginas, Quixote e Sancho ficam
sabendo que as suas façanhas foram escritas e ao longo do romance a dupla encontra
supostos leitores daquela farsa, a qual, em todas as ocasiões, eles
desautorizam e ridicularizam. Em termos literários, Cervantes repete seu brilho
e nas várias aventuras em que a dupla se mete, nota-se o estilo fluente e delicioso
do autor. O fato de terem se tornado conhecidos graças ao livro apócrifo granjeia-lhes
vários admiradores que entre a sádica satisfação de rirem das suas sandices e
ingenuidades, submetendo-os às diversas burlas e variados estratagemas,
espantam-se com o descortino da aguda inteligência de Quixote e com a profunda,
embora simples, sabedoria de Sancho Pança. No final do livro, após viverem
tantas aventuras e após terem sido vitimas de um engodo final, os heróis voltam
para as respectivas casas e após alguns dias, Dom Quixote morre, não sem antes
recuperar a sanidade. Ou o que dizem ser a sanidade.
Um clássico! Talvez
o maior!
Nota – o pseudônimo de Avellaneda nunca foi cabalmente
identificado, mas é quase consenso a tese do estudioso Martin de Riquer que em
1988 publicou “Cervantes, Passamonte y Avellaneda” onde sustenta que o Quixote apócrifo
é a reposta dada por um soldado que lutou ao lado de Cervantes em “Lepanto”,
1571, de nome Gerónimo de Pasamonte, natural de Aragão. Como Cervantes, ele também
foi condenado ao cativeiro na dura posição de remador de galeras (Sancho, aliás,
em certo trecho, censura o horror da situação daqueles condenados a quem o
chicote do feitor não dava trégua) e também se aventurou nas letras, sendo
autor de uma autobiografia. Para Riquer, seu motivo foi o fato de Cervantes tê-lo
usado como modelo da desairosa personagem, Ginés de Pasamonte, um facínora que
foge de sua escolta graças a uma estapafúrdia ação do Cavaleiro da Triste
Figura.
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