O Idealismo – visão geral
Geralmente,
cita-se Platão como o primeiro “Idealista”,
pois foi ele quem fez a transposição para o Ocidente dos princípios filosóficos
hinduístas,
dentre os quais, a concepção de que a “Ideia” é o protótipo, o modelo das
coisas físicas, concretas.
A
“Ideia” seria, portanto, a “verdadeira realidade”, enquanto o restante não passaria
de uma mera cópia da mesma.
O
Idealismo
Platônico (também chamado
de “realismo” ou “realista”), normalmente, é dividido em:
- O aspecto Gnosiológico1.
- O
aspecto Metafísico2.
Sendo que o primeiro se
refere às questões atinentes à maneira como ocorre o Conhecimento; enquanto que
o segundo relaciona-se com aquilo que está “atrás” ou “na base” das “coisas
físicas”.
Outro conceito comum,
mas não oriundo apenas de Platão, é o do “Idealismo”
referente “aos Ideais”; isto é, aos objetivos a serem conquistados ou aos modos
de comportamento a serem seguidos etc. Nesse sentido, o Idealismo atrela-se, geralmente, às questões éticas e/ou políticas,
tais como “manter a honestidade”, “construir uma democracia” e símiles.
Posteriormente, o
conceito foi sendo modificado e desse modo o Idealismo apresentou-se de várias maneiras ao longo da história e,
especialmente, na Era Moderna, quando surgiram vários títulos complementares
para diferenciá-los, tais como:
- Idealismo
subjetivo,
- Idealismo
objetivo,
- Idealismo
lógico,
- Idealismo
transcendental,
- Idealismo
crítico,
- Idealismo
fenomenológico etc.
Não detalharemos esses
tópicos para não fugirmos do objetivo original, o Idealismo Alemão, mas convidamos
os interessados a visitar outra obra de nossa autoria, Filosofia Sem Mistérios (vide Bibliografia),
onde cada um deles é considerado em particular.
Aqui, adentraremos,
especialmente, no universo do Filósofo Immanuel
Kant, sem, no entanto, deixar de
recomendar o estudo de Filósofos como Fichte, Schelling, Hegel, Leibniz, Malebranche,
devido à importância dos mesmos. E, novamente, sugerimos a nossa obra anterior,
Filosofia
sem Mistérios, onde cada um desses sábios recebeu a merecida atenção.
O Idealismo caracteriza-se por seguir para a reflexão filosófica a
partir do “Eu” (ou da alma, espírito, mente etc.)
e não a partir das “coisas exteriores”, isto é, dos objetos, dos Seres, dos fatos etc. que estão “fora”
do indivíduo.
Essa preferência pelo
“Eu (ou
pelo sujeito, pelo indivíduo)” baseia-se no fato de
que o homem é, fundamentalmente, um “ideador” ou “representador”, por
representar em sua mente (“fazer uma ideia”),
as coisas que capta através dos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e
olfato).
Vendo, por exemplo, uma
fruta, o indivíduo não processa diretamente aquela percepção visual. Ao contrário,
assim que o estímulo lhe chega, a sua mente primeiramente o “desenha” ou “representa”,
para só então prosseguir com o restante das operações mentais.
Essa é, aliás, a razão
de cada coisa do universo ser diferente para cada um dos Seres humanos. Para uns, aquela fruta pode estar madura, para
outros, nem tanto etc.
E porque o Idealismo começa com e no
indivíduo, alguns religiosos e agregados, afirmam que o mesmo não teve inicio
com a Filosofia, mas, sim, com o Cristianismo, particularmente com Santo Agostinho, já que a doutrina
religiosa equipara a criatura com o Criador e o torna o “centro do universo”.
Porém, maioria dos
estudiosos rebate tal afirmativa, lembrando-os de que foi o Cristianismo que
derivou da Filosofia grega (onde a noção do “Idealismo” já estava consolidada)
e não o inverso. Portanto, dar-lhe a paternidade é um equívoco absurdo.
Outros eruditos, também
desdenham do argumento eclesiástico e insistem na associação do Idealismo com a Gnosiologia. Afinal, sendo
o indivíduo o ponto de partida do Idealismo,
nele reside a chave para responder a uma das principais questões filosóficas: “como, em geral, as coisas podem ser conhecidas?”.
Outros sábios vão além
e afirmam que o “Idealismo” não
pertence apenas ao campo da Gnosiologia, mas, também, ao da Metafísica, haja
vista que o fato de se conhecer a uma coisa de forma verdadeira e absoluta,
implica que se chegou ao “numeno, à essência” da mesma.
E nesse ponto é que se
chega a Kant, já que a investigação
sobre os limites e a possibilidade de se conhecer a “coisa-em-si” é que forma a
estrutura do seu pensamento.
Rejeitando as formas de
Idealismo propostas por Pensadores
como Descartes e Berkeley, Kant criou o seu próprio sistema, o Idealismo
Transcendental, cuja principal característica reside no destaque dado à
função de “posto (ou colocado)” no conhecimento, já
que para ele, a existência dos objetos externos não é cognoscível apenas através
de seu percebimento direto pelos Sentidos, mas, sim, em razão daquele objeto
ter sido posto ou colocado no conhecimento; ou
seja, o objeto ter sido idealizado ou representado na mente. Não bastaria, por
exemplo, eu tocar (usar o tato) nesse computador para
conhecê-lo. Eu necessitaria pensar, idealizar, para lhe conhecer verdadeiramente.
Alguns estudiosos,
contudo, observaram que o “realismo kantiano” desaparece em Fichte e, principalmente,
em Schopenhauer, que equipara o mundo à representação ou idealização do mesmo;
e, por isso, afirmaram que o autêntico “Idealismo
Alemão” seria, a rigor, pós-kantiano.
Além disso, graças ao avanço atual das tendências “Materialistas”, que
propugnam que apenas as coisas materiais constituem a “Realidade”, vários
estudiosos anunciaram o declínio do Idealismo
e até a sua extinção. E alguns sábios renomados como Ortega y Gasset e Heidegger
propuseram superar o Idealismo e o Realismo Materialista por alguma outra
sistemática.
Porém, a despeito das
críticas, outros célebres autores continuam adotando o “Idealismo kantiano”, por entenderem que no mesmo é que reside, de
fato, o verdadeiro “Idealismo Alemão”, já que nenhum outro se lhe equipara em
termos de profundidade e precisão. Apenas nele, afirmam, podem ser encontradas
as ferramentas necessárias para se tratar de questões metafísicas e/ou
cognitivas, as quais exigem o seu concurso para que, no mínimo, as
investigações sobre as mesmas possam prosseguir.
Desse modo, vê-se que esse
renovado e constante interesse pelo ideário kantiano reafirma a sua importância
didática e confirma o seu caráter de “libertador do homem” das amarras do Materialismo.
Introdução a Immanuel Kant
A vida e a forma de ser
do filósofo Kant foram objetos de estudos de vários eruditos e quase todos
destacaram os ecos que a religiosidade pietista de sua mãe deixou-lhe na alma,
a sua integridade moral, a sua entrega ao trabalho e ao dever e a extrema
regularidade de hábitos.
Idiossincrasias que
para a maioria das pessoas são virtuosas e que aliadas à sua coragem e genialidade,
fizeram-no ser considerado como o maior filósofo alemão. E mesmo aqueles que
não compartilham dessa classificação, são prontos em lhe reconhecer como um dos
Pensadores mais brilhantes de todos os tempos.
Geralmente, o seu
sistema é dividido em três etapas:
- Período
pré-crítico. Anterior a 1781, quando foi publicada a primeira edição de
“Crítica da Razão Pura”.
- Período
crítico, que vai até 1790 quando foi publicada a “Crítica do Juízo”.
- Período
pós-critico, que se estende de 1790 até a sua morte.
Porém, é importante
observar que essa divisão é útil apenas como uma primeira apresentação de seu
ideário, não devendo ser considerada como uma espécie de “série”, pois o pensamento
kantiano é de tal grandeza e complexidade que não pode ser reduzido a divisões
formais.
Todavia, essas mesmas
“grandeza e complexidade” acabaram se tornando um fator limitante à popularização
de suas ideias; o que, com efeito, é um dado a se lamentar, já que através de
suas reflexões é possível elucidar várias questões filosóficas e apontar rotas
seguras para o desenvolvimento humano.
Por isso, no presente
Ensaio buscamos adaptar o seu modo de pensar ao discurso de nossos dias, com o
objetivo de trazer à luz toda a sua grandeza.
Temos consciência de
que, por isso, alguns aspectos deixaram de ter o aprofundamento adequado, mas
estamos certos de que o amável leitor (a) saberá entender o caráter de
“iniciação” que se pretendeu com esses escritos.
Breve biografia de Kant
Um século antes de seu
nascimento, seus antepassados deixaram a Escócia e seguiram para Konigsberg,
Prússia, em busca de redenção para a penúria que os castigava.
Ali, em 1724, nasceu
Immanuel, filho de uma devota pietista3,
cujo fanatismo religioso despertou-lhe severa aversão pela igreja e pelo clero,
embora tenha contribuído para que ele mantivesse até o fim da vida a postura de
um verdadeiro “puritano alemão”. Além disso, o fervor religioso materno foi tão
marcante em sua personalidade, que o fez buscar uma reaproximação com os pontos
essenciais do Cristianismo, quando já estava na idade madura. Em relação ao seu
pai, os dados são escassos e isso sugere certa desimportância em sua formação.
Kant viveu na era de Voltaire,
do Iluminismo
e da apologia ao Ceticismo
e à Razão; e não pôde escapar
dessa influência, embora, posteriormente, tenha refutado tais concepções.
Outra forte influência
que sofreu foi a de Hume, sendo, no entanto, a que mais combateu posteriormente.
Por outro lado, uma
figura que teve enorme importância para que ele desenvolvesse o seu ideário,
foi o Imperador Frederico, o Grande,
que lhe deu plena liberdade para compor, por exemplo, uma obra como “Crítica da
Razão Pura” que, em grande medida, colidia com os dogmas religiosos, então,
considerados sagrados e, portanto, inquestionáveis. Proteção que, também, lhe
foi útil quando ele, em sua fase de reaproximação com a religião, escreveu
textos claramente contrários à ortodoxia clerical.
Dificilmente, em
qualquer outro governo, um professor assalariado (funcionário público)
teria ousado escrever livros e artigos como os seus; como, aliás, confirma o
fato de ele ter de prometer ao sucessor de Frederico, que não mais trabalharia
nessa direção.
De todo modo, até que
essas coisas acontecessem, muito tempo já havia passado e, desse modo, será
necessário voltar o olhar para o ano de 1755, onde o encontraremos na função
subalterna de “conferencista particular” na universidade de Konigsberg, onde
permaneceu por quinze anos.
Nesse período, ele fez
duas tentativas frustradas de alcançar o posto de Professor, sendo recusado por
motivos menores. Apenas em 1770 conseguiu o cargo de Professor de Lógica e de
Metafísica e logo alcançou pleno êxito junto aos alunos.
Seu princípio de
centralizar toda a atenção nos alunos medianos (porque os “burros” não teriam
jeito mesmo e os gênios não necessitariam de mestres)
granjeou-lhe o apoio da maioria e, desse modo, a sua carreira acadêmica
transcorreu tranquilamente, dando-lhe, inclusive, matéria para o livro que
escreveu sobre Pedagogia, no qual, segundo ele, haveriam “vários preceitos excelentes”.
Aos quarenta e dois
anos, solteiro, sem filhos, com poucos amigos e hábitos modestos, vivia para o
trabalho e para os estudos. E, em tamanha placidez, que não se poderia imaginar
que de sua genialidade oculta brotaria um Sistema Filosófico que iria revolucionar
a Filosofia, a Moral e a Teologia.
Ele próprio parecia
acomodado à sua rotina, permitindo-se apenas alguns ataques teóricos e sem maiores
consequências à Metafísica, que lhe parecia “um
escuro oceano sem costas ou faróis” e aos adeptos da mesma, sobre quem
dizia serem “moradores nas altas torres
da especulação... onde há, em geral, muito vento”.
Uma tranquilidade
condizente com os seus interesses da ocasião: as coisas concretas, materiais,
físicas. Seus estudos e escritos da época, versavam sobre planetas, terremotos,
fogo, vento, éter, vulcões, geografia, etnologia e assuntos similares.
E mesmo quando se
permitia a alguma ousadia, como defender a ideia de vida extraterrestre, as
suas divagações embasavam-se, apenas, em dados empíricos ou racionais, como
ocorreu em sua “Teoria do Céu”, que buscava explicar os movimentos celestes
através das “Leis da Mecânica”, em clara alusão à “Hipótese Nebular” de Laplace.
Porém, a partir de
certo momento e noutro campo de estudo, a “Antropologia”, ele começou a emitir
sinais de seu desligamento com o antigo padrão, como se percebe no fato de ele
ter sugerido a possibilidade de o homem ter sofrido um processo evolutivo, ao
estilo, posteriormente, consagrado por Darwin.
Foi, certamente, o
inicio de suas reflexões menos convencionais, as quais redundaram nas teses que
abalariam o vetusto edifício em que se abrigava o Pensamento da época; pois, ao
admitir, por exemplo, o “processo evolutivo” e, até mesmo, ao especular sobre “Seres extraterrestres” mais inteligentes
que o homem, ele se opunha a dogmas religiosos como o “Criacionismo” e à ideia
de sermos “o ápice da Criação”, feitos “à imagem e à semelhança do Criador”.
Em suas palavras:
“Não
sabemos como a natureza provocou essa evolução e quais as causas que a
ajudaram. Essa observação nos leva muito longe. Ela nos faz pensar se o atual
período da história, por ocasião de uma grande revolução física, não poderá ser
o segundo de um terceiro, quando um orangotango ou chipanzé desenvolverá os
órgãos que servem para andar, tocar, falar etc. chegando à estrutura articulada
de um Ser humano, com um órgão central para o uso do entendimento e evoluir
gradativamente sob o treinamento das instituições sociais”.
Sinais, que se
consolidaram e cristalizaram o seu rompimento com as doutrinas hegemônicas da
época, bem como o avanço em sua determinação e em suas concepções.
Avanço, aliás, que o
fez enfrentar as dificuldades financeira, profissional e social, para continuar
o trabalho que rendeu, após quinze anos, a sua grande obra, “A Crítica da Razão
Pura”, publicada em 1781, quando ele tinha 57 anos de idade.
Depois, seguiu essa
nova trilha e produziu livros e textos que balançaram as normas sociais e
religiosas de forma tão significativa que ainda hoje são paradigmas.
Por fim, faleceu aos
oitenta anos de idade, de forma tão tranquila quanto viveu. Sua missão estava
cumprida.
Cronologia
Nasce em 22 de abril de
1724, em Konigsberg, Prússia.
Em 1763, publicação de “O
único argumento possível para uma demonstração da existência de Deus”.
Em 1766, publicação de “Sonhos
de um Visionário, interpretação mediante os sonhos da Metafísica”.
Em 1770, apresenta à
universidade de Konigsberg a Dissertação “Sobre a forma e os princípios do
mundo sensível e do mundo inteligível”.
Em 1781, publicação da
primeira edição da “Crítica da Razão Pura”.
Em 1783, publicação de
“Prolegômenos a qualquer metafísica futura que possa vir a ser considerada como
ciência”.
Em 1785, publicação de
“Fundamentação Metafísica dos costumes”.
Em 1788, publicação da
“Crítica da Razão Prática”.
Em 1790, publicação da
“Crítica da faculdade de julgar”.
Em 1793, publicação de
“A religião dentro dos limites da simples razão”.
Em 1798, publicação de
“O conflito das faculdades”.
Morre em 12 de
fevereiro de 1804.
-0-
As Obras
Antecedentes à primeira
Crítica
Com o advento do Iluminismo,
passou-se a delegar à Razão, à fria racionalidade, a incumbência de responder a
todas as questões filosóficas.
Ecoando o movimento de Voltaire,
Diderot e outros pensadores, Francis Bacon fez com que a Europa e o resto do
Ocidente outorgassem ao raciocínio, à Razão, a primazia de ser “o verdadeiro pensar”.
Fez com que se depositasse irrestrita confiança no poder das Ciências e da
Lógica para resolver em definitivo as dúvidas filosóficas e para ilustrar “o
quão perfeito é o homem”.
E Condorcert, Spinoza e mais alguns eruditos, não
hesitaram em seguir esse novo caminho, tornando a crença, a fé e a própria
divindade, em meras figuras míticas e místicas, nascidas em um Passado sombrio
e formadas apenas pelas trevas da ignorância e da superstição.
Assim,
quando os Filósofos Helvetius e Holbach desfecharam o ataque mais possante – que
fez “o próprio clero tornar-se ateu”
– , poucos duvidaram de que o novo padrão viera em definitivo.
Contudo,
ainda existiam aqueles que não se conformavam com o rumo proposto e, dentre
estes, destacava-se a imponente figura de Jean Jacques Rousseau, que nunca
deixou de acreditar na força e na importância dos sentimentos, das sensações,
das intuições e da fé, em contraponto ao “Deus Raciocínio” ou à “Deusa Razão”.
E
a sua pregação, mais a inexistência de provas efetivas de que a Razão fosse
infalível, fez com que outras vozes eruditas seguissem-no, como aconteceu, por
exemplo, com John Locke, que pela primeira vez analisou a Racionalidade segundo
as premissas da Filosofia; ou seja, de maneira lógica e criteriosa.
Ao
afirmar que todo conhecimento proviria necessariamente daquilo que foi captado
pelos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato) e que, ao nascer, a Mente seria um quadro em branco
(uma
tábula rasa), inexistindo, portanto,
as chamadas “ideias inatas”, Locke, de certo modo, reduziu-a a Razão à condição
de um “órgão com funções definidas” e dependente dos estímulos externos para
formar conceitos, pensamentos, julgamentos etc.
Outra voz que se
destacou nesse campo, foi a de George Berkeley ao afirmar que “o Real, a Verdadeira
Realidade” não é a matéria em si, mas a nossa percepção da mesma. Com isso, embora
refutasse a tese Materialista de Locke, ele reafirmou, de modo indireto, a
desimportância da Razão, haja vista que ela continuava dependente do que fosse
captado pelos Sentidos para formar seus conceitos, pensamentos ou juízos.
E ainda nessa trilha, David
Hume também advogou a dependência da Razão em relação aos sentidos, quando
exarou sua tese acerca da inexistência de qualquer Metafísica, advogando a
noção de que só existem, de fato, as coisas físicas, concretas.
Vê-se, portanto, que o
argumento inicial de Rosseau foi seguido, de modos diversos, por importantes
eruditos e se consolidou como uma tendência merecedora de assaz consideração.
E foi com esses avais que ele chegou até Kant.
-0-
Ao ler “Emilio”, obra prima do genebrino, Imannuel
Kant encontrou no autor um homem que também buscava escapar da maré “Racionalista
e Materialista” que predominava na ocasião e era vista com um símbolo de
“modernidade e esclarecimento”.
Descobriu um homem que
não tinha o menor pejo em afirmar a sua crença na superioridade do sentimento
em relação ao raciocínio e que, consequentemente, não hesitava em duvidar da
hegemonia da Razão.
Achou, ao cabo, alguém
que não temia ir contra a corrente.
Então, para expor as
suas próprias dúvidas sobre os limites e sobre a real capacidade da “Deusa Razão”,
ele viu que chegara o momento de iniciar a sua obra grandiosa.
Ali nascia o “Criticismo
kantiano”.
A Crítica da Razão Pura
Antes de tudo é
importante assinalar que o termo “Crítica” não tem o significado que vulgarmente
lhe é dado; ou seja, não se trata de um sinônimo de “censura”.
Kant não ataca a “Razão
Pura”; ao contrário, enaltece-a por considerá-la uma forma de Conhecimento que,
embora limitado, está isento de qualquer contaminação oriunda das captações imperfeitas
dos sentidos humanos.
Portanto, deve-se
entender este título como: o estudo crítico, minucioso e detalhado
dos limites e capacidades do “Saber Racional”.
Outro ponto importante
a ser esclarecido é a própria “Razão
Pura”. O que é exatamente esse elemento?
“Razão”, no contexto filosófico, equivale a raciocínio, juízo,
análise etc. É a capacidade ou a faculdade de se conhecer, analisar,
conceituar, definir etc. qualquer coisa com base nas evidências sensoriais (no que foi
captado pelos Sentidos), devidamente
organizadas pelas propriedades naturais da mente humana e de acordo com as regras
da Lógica.
Quanto ao adjetivo, “Pura”,
o sentido comum da palavra se mantém e indica a não contaminação por dados
falsos, incorretos, incompleto etc. que são próprios do saber adquirido apenas “empiricamente";
ou seja, através dos experimentos ou experiências físicas.
A “Razão Pura” é uma
faculdade ou capacidade que nos pertence, graças à inata estrutura e natureza
da mente humana.
-0-
Feitas essas preleções,
veremos que por acreditar na existência dessas capacidades naturais da mente e,
por consequente, no “Saber Inato”, Kant iniciou o seu livro, opondo-se à concepção
do filósofo Locke – e dos outros membros da chamada “Escola Inglesa” – que afirmava
que todo conhecimento seria proveniente das experiências sensoriais; ou seja,
do que fora captado pelos cinco sentidos humanos.
Hume, outro expoente
dessa tendência, afirmava, ainda, que a Mente seria apenas uma espécie “de marcha ou de procissão” de nossas
ideias e que as nossas certezas não passavam de simples expectativas de que um
determinado resultado voltasse a se repetir eternamente.
Kant contra-argumentou
dizendo que o Saber oriundo do que foi percebido pelos sentidos humanos não se
sustém pelo simples fato de ter sido originado por falsas premissas, já que os
dados coletados pelos sentidos estão longe de serem confiáveis; logo, para que
um Conhecimento seja “absoluto” é imperioso que outra habilidade humana complemente
o percebimento ou a captação. É preciso, pois, que exista a faculdade ou a
capacidade de racionalizar os dados coletados.
Apenas a junção do que
foi captado empiricamente (isto é, através de experiências percebíveis pelos
sentidos) com o respectivo “Processamento Racional” é capaz
de produzir o pleno Conhecimento ou o “Saber absoluto, verdadeiro e
necessário”.
Mas, qual serão a real
capacidade e o alcance deste “processamento mental, racional”?
Segundo Kant, o “Saber
Absoluto e Verdadeiro” não provém da experiência, pois a mesma só nos oferece
Sensações e eventos separados, que poderão ser alterados no futuro; e, tampouco,
estaria no simples Raciocínio, na Razão, já que ela depende das captações
sensoriais para que possa agir e produzir Conhecimento.
Logo, o “Saber Absoluto
e Verdadeiro” só pode ser oriundo da junção entre o que foi percebido empiricamente
com a racionalização do mesmo.
Em consequência, também
se pode concluir que como os “dados sensoriais” são indispensáveis para
chegar-se ao “Saber Absoluto e Verdadeiro”, a capacidade e o limite
da Racionalidade estão, justamente, nessa dependência. Com isso, Kant comprovou
a inexistência do “altar da infabilidade” da Razão, tão caro aos Racionalistas.
Nem os Sentidos (ou Experiências
Empíricas) nem o Processamento Racional são, isoladamente,
suficientes para que se “conheça verdadeiramente” qualquer coisa, Ser, objeto, fato etc. Tanto o Empirismo
da Escola Inglesa (Locke, Hume e outros),
quanto o Racionalismo (Voltaire e outros)
são limitados e incapazes de revelar o numeno
ou a coisa-em-si. O primeiro, por
atingir apenas a superfície dos objetos, dos Seres, dos fatos; e o segundo, por ser incapaz de agir sem esses
mesmos dados.
A
Filosofia Transcendental
Estética Transcendental
Noutra obra de nossa
autoria, mencionamos a questão de a semântica ser um poderoso fator inibitório à
popularização da Filosofia e aqui encontramos outro exemplo desse fato com a palavra
“Estética”, que, na atualidade, é vulgarmente associada com beleza física, corpórea.
Embora exista na Filosofia clássica a vinculação do termo “Estética” com o “Belo
(o
sentimento do belo)”; neste Ensaio, não usaremos o termo
nesse sentido e resgataremos o significado original da palavra grega
“Aisthetiké”, ou seja: Estética = Sensações ou Sentimento.
Outro ponto a ser
esclarecido é o fato de Kant ter chamado de “Filosofia Transcendental”
o estudo da estrutura da mente e das Leis inatas do pensamento. O motivo para
isso é que tais questões transcendem ou ultrapassam a experiência
sensorial.
Nas palavras de Kant:
“Chamo
de transcendental o conhecimento que se ocupa não tanto de objetos, quanto dos
nossos conceitos a priori de objetos”.
A partir dessa
definição, seu primeiro cuidado foi examinar o processo em que as Sensações
se transformam em Percepções ou Pensamentos. Observou, então, que
o processo se divide em dois estágios. A saber:
- O
primeiro estágio consiste em organizar a matéria-prima das Sensações com o
intuito de enquadrá-las nas chamadas “Formas de Percepção” que são o Tempo
e o Espaço.
- O
segundo estágio consiste em coordenar aquelas Sensações, já enquadradas no
Espaço e no Tempo, nas outras formas de concepção, as chamadas “Categorias
do Pensamento".
Assim, usando a palavra
“Estética” em seu sentido original, Kant chamou o primeiro estágio de “Estética Transcendental”.
E usando a palavra
“Lógica” com o significado de “Ciência das Formas de Pensamento”, chamou o
segundo estágio de “Lógica ou Analítica
Transcendental”.
Inicialmente, veremos a
seguinte questão:
O que se entende
exatamente por Sensações e por Percepções e como é que a mente
transforma as primeiras nas últimas?
A Sensação, em si, é
apenas a consciência de um estímulo ou, em outros termos, é sentir o efeito
provocado por algo que nos atinge, como, por exemplo, o doce sabor da uva que
comemos. O sentido “paladar” nos deu essa Sensação, como antes o “olfato” já
nos dera o odor da fruta etc.
A Sensação, portanto, é
o inicio bruto de qualquer experiência e não pode ser considerada como “Conhecimento”,
exatamente por causa desse primarismo. Porém, quando várias Sensações sobre o mesmo objeto se
agrupam no Espaço e no Tempo, o individuo passa a ter consciência de que aquele
objeto existe realmente. Passa, então, a ter uma “Percepção” daquela existência.
É o caso da uva citada
no exemplo anterior, pois quando se juntam as Sensações de sabor, odor, visão
etc. têm-se a consciência (ou se sabe) de que existe “uma
coisa” que reúne ao mesmo Tempo e no mesmo Espaço todas aquelas Sensações.
Nesse ponto, a Sensação
transformou-se em “Conhecimento preliminar”.
Esse processo de
transmutação de Sensação em Conhecimento goza de aceitação pela maioria da
comunidade filosófica, mas o consenso não se repete sobre o motivo dele
ocorrer.
Filósofos empiristas
como Locke e Hume afirmaram que as Sensações agrupam-se natural e espontaneamente,
colocando-se automaticamente na ordem necessária para se transformarem em Percepções.
Kant, porém, rejeitou
esse automatismo, pois para ele as Sensações não passariam de uma tropa desorganizada
que chega à Mente através de inúmeros canais (ou
orgãos dos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato) e inúmeros nervos
aferentes que passam pelos olhos, pelos ouvidos, pela epiderme)
e que se deposita em suas câmaras à espera do necessário ordenamento para se
transformar em saber efetivo.
E a Mente, antes de
tudo, faz uma triagem nas Sensações chegadas, porque, nem todas as mensagens
são aceitas, vez que há uma multidão de estímulos indevidos que atingem inutilmente
o indivíduo (Um típico exemplo dessa situação é a do tique-taque
de um relógio que atinge continuamente a nossa audição, mas não é selecionado
para se transformar em conhecimento, exceto se o nosso objetivo for escutar-lhe
por algum motivo, como o de conferir o seu funcionamento regular).
No passo seguinte, inicia
o Processamento das Sensações que
podem ser transformadas em Percepções
adequadas ao propósito do sujeito, ou que lhe possam dar um aviso importante,
como o de perigo, por exemplo.
Depois, utiliza os
conceitos de Tempo e Espaço para classificar as Sensações, atribuindo-as a este
ou àquele lugar ou objeto; e a este ou àquele momento do Presente
ou do Passado, haja vista ser impossível notarmos a existência de algo se o
mesmo não puder ser relacionado a algum lugar (ou espaço)
e há algum tempo (se acontece, se aconteceu, se acontecerá, se está,
se esteve etc.).
Na verdade, apenas
através desses “órgãos de percepção – Tempo e Espaço” é que se consegue dar sentido
à Sensação, pois se elas não fossem organizadas segundo esses parâmetros, seria
como se recebêssemos mensagens abstratas, surreais, desfocadas, justapostas,
incompletas e, portanto, inaproveitáveis para a vida prática do indivíduo.
Depois, com as Sensações
devidamente classificadas em Tempo e Espaço, a Razão passa a
organizar-lhes de modo mais refinado, como se verá na sequência.
Filosofia
Transcendental
Analítica ou
Lógica Transcendental
Observamos na “Estética
Transcendental” os conceitos de Sensações
e Percepções. Aqui, na Analítica,
trataremos do Pensamento ou Concepção.
Assim como as Percepções organizam as Sensações
vinculando-as a objetos e a momentos no Tempo e no Espaço; as Concepções organizam as Percepções em
torno das noções de Causa, Unidade, Relação recíprocas, Necessidade,
Contingência etc., as chamadas “Categorias”, que formam a estrutura onde
as Percepções são recebidas, classificadas e modeladas segundo os parâmetros do
Pensamento.
Esse ordenamento das
“coisas” elucida como se dá o entendimento ou a compreensão; isto é, como se
estrutura o “Conhecimento efetivo”. Além disso, também esclarece outra questão
mais abrangente, como veremos a seguir.
Primeiramente, veremos o
curso dos elementos que formam o Pensamento e que agem como uma alavanca que ergue
o “Conhecimento Perceptual” para o nível de “Conhecimento Conceitual (ou definidor)”,
que, por sua natureza superior, proporciona a compreensão (o Entendimento)
daquilo que foi captado.
- Sensação
– é um estímulo desorganizado.
- Percepção
– é a sensação organizada.
- Concepção
– é a Percepção organizada.
- Ciência
– é o Conhecimento organizado.
- Sabedoria
– é a vida organizada.
Sabemos, através de
Kant, que as etapas acima não se
originam nas coisas exteriores, no mundo externo, já que o mesmo só passa a
existir quando, dele, tomamos conhecimento através das captações feitas pelos
nossos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato)
e/ou pelas Sensações trazidas pelos múltiplos canais aferentes que se
distribuem pelo corpo físico do homem. E também sabemos, graças ao mesmo, que é
a Mente que dá ordenamento a tudo que lhe chega.
Kant, a partir dessas
premissas, concluiu que o mundo não
é ordenado por si mesmo. A aparente e suposta “ordem do mundo” só existe porque
o Pensamento que se relaciona com ele – ou que o experimenta – é, em si, uma
ordem lógica, que se “esparrama” sobre as “coisas” que lhe chegam.
Logo, as Leis do
Pensamento são, também, as Leis das Coisas (físicas,
materiais, concretas) já que elas só passam a existir, após
terem sido “representadas” ou “idealizadas” pela Mente humana.
Assim sendo, é possível
dizer que os Objetos e os Pensamentos são, a rigor, a mesma coisa e essa
conclusão levou, entre outros, o filósofo Hegel a elaborar a sua tese acerca da
“Dialética”, pretendendo explicar o funcionamento do mundo, como um espelho do
que ocorre em nível mental.
Nas palavras de Hegel:
“As
Leis da Lógica (do pensamento) e as Leis da Natureza são a mesma coisa e a
Lógica e a Metafísica se fundem. Os princípios generalizados da Ciência são
necessários (isto é – só podem ser daquela maneira) porque constituem, em ultima análise,
as Leis do Pensamento envolvidas e pressupostas em toda experiência passada,
presente e futura”.
No próximo item,
avançaremos no estudo dessa conclusão de Kant e, também, sobre a noção de
“Dialética”, sob o ponto de vista kantiano.
A Dialética
Transcendental
Uma das faces mais
conhecidas do pensamento kantiano é a diferenciação que ele fez entre a “Essência
da Coisa, do objeto ou do Ser (a “coisa em si”
ou o “numeno”)”
e o seu “Fenômeno”; isto é, aquilo que pode ser captado pelos humanos.
Segundo Kant e outros
pensadores, o mundo que conhecemos é uma construção mental que erguemos a
partir da Idealização ou Representação, das coisas (objetos, Seres,
fatos etc.) que captamos ou percebemos; os chamados
“estímulos”.
O objeto captado é uma
“aparição”, um “fenômeno” e, talvez, muito diferente do que seja “em si, em
essência”.
E disso decorre a nossa
eterna incerteza sobre “a coisa em si”, a qual, inclusive, pode ser apenas um
“Objeto do Pensamento”, existente na própria Mente.
Nas palavras de Kant:
“Continua
inteiramente desconhecido para nós o que os objetos podem ser por si só e fora
da receptividade dos nossos Sentidos. Nada conhecemos, exceto a nossa maneira
de percebê-los; maneira peculiar a nós e não necessariamente partilhada por
todos (já
que um animal, provavelmente, a percebe doutro modo – nota do autor) embora o seja, sem dúvidas, por
todos os Seres humanos. A Lua que conhecemos, por exemplo, é meramente um feixe
de Sensações, unificado pela nossa estrutura mental inata, através do processo
de transformação dessas Sensações em
Percepções e, destas, em Concepções ou Ideias. Por isso se pode
dizer, que para nós a Lua é apenas as nossas Ideias”.
Em verdade, essa
distinção entre a Essência e o Fenômeno foi um resgate do antigo ideário platônico
da “Ideia”, enquanto modelo ou padrão para as “cópias” individuais e físicas
que existem no mundo concreto, ou no “mundo das aparências”.
E dela nasceu o conceito
da Dialética
Transcendental,
que ao examinar as premissas colocadas pela Ciência e pela Religião
como “absolutas, necessárias e verdadeiras” comprovou a falácia das mesmas, já
que:
A Ciência, não
consegue chegar à “coisa-em-si”, embora se intitule “transcendental” e,
portanto, capaz de ultrapassar a Sensibilidade (ou Sensação).
A Religião, tampouco,
pois, embora tenha pretensão igual à da ciência, limita-se a paralogismos (raciocínios
falsos), exarados por ingenuidade ou por má fé.
As antinomias (a contradição
entre dois Princípios ou entre duas Leis) que se repetem na
Ciência apresentam-se para muitos estudiosos como um problema insolúvel. Todavia,
para Kant existe uma saída para esse
impasse, bastando que se procure socorro na Filosofia, já que ela ensina que o Tempo e o Espaço são “modos de percepção e de concepção”, ou seja, maneiras
inatas de se assimilar, racionalizar e compreender; e não “coisas” que estão sujeitas às Leis antagônicas da
matéria, que causam as contradições.
E processo semelhante se
verifica na Religião, onde os paralogismos da chamada “Teologia Racional”
tentam provar cientifica e logicamente:
- A
existência de um “Ser Necessário (Deus)”
- Que
a alma é uma substância indestrutível
- Que
o livre-arbítrio está acima da Lei de Causa e Efeito
- Etc.
Esquece-se (sic)
que a Forma, a Causa, o Efeito etc. são elementos que estão relacionados apenas
aos Fenômenos e às experiências sensoriais e não ao mundo das
essências, da “coisa-em-si”. Escamotea-se, por inocência ou por má fé, que a
Religião, portanto, não pode ser comprovada cientifica, racional e logicamente;
sendo, apenas, um “objeto da fé”. Algo em que se acredita, ou não. E,
justamente por isso, muito longe de ser uma “Verdade” universal e
inquestionável, como desejam os que nela acreditam, ou que dela dependem
emocionalmente, ou que nela trabalham, ou que nela se locupletam.
Por isso, o mestre
alemão, em sua “Dialética Transcendental”, condensou de forma crítica as suas
argumentações contra as pretensões dos homens da Ciência (os Racionalistas
e os Materialistas); e, também, as censuras aos “Idealistas
extremados”, que descartavam toda existência objetiva, concreta, e aos adeptos
da “Teologia Racional” que tentavam vestir a religiosidade com a túnica
científica e lógica.
Afinal, como ele
demonstrara inelutavelmente, para se chegar ao âmago do Conhecimento, não
bastaria a Tese de uns nem a Antítese de outros, pois a
“Verdade Final” estará sempre na Síntese
que se fizer do que foi captado e, depois, racionalizado (representado ou
idealizado).
-0-
Por fim, é chegado o
momento de se verificar os resultados efetivos que Kant logrou com a sua A
Crítica da Razão Pura.
Considerando-se que
proposta inicial do livro era responder às questões metafísicas e salvar o que
há de genuíno e absoluto na Ciência e na Teologia, pode-se dizer que o sucesso
foi alcançado, pois ao estabelecer a transcendência da Estética, da Analítica e
da Dialética, Kant adentrou ao campo da Metafísica para, num segundo momento,
buscar as soluções para os problemas da mesma. E, por destruir a jactância da
Ciência ao comprovar a sua limitação ao mundo fenomênico, ele a teria salvado
de sua própria ingenuidade. E de maneira similar teria salvado a “Essência” da
Religião ao comprovar que os seus objetos de fé (Deus, alma incorruptível etc.)
nunca poderão ser comprovados pela Razão, já que a crença não pode ser racional
sob o risco de se extinguir.
Afinal, como bem disse
o Mestre Eckart (sec.XIII,
Alemanha): “Creio porque é absurdo” (Ou seja, se não
fosse absurdo, se fosse mensurável eu não precisaria crer, pois eu poderia
compreender).
-0-
É claro que as suas
ponderações causaram muito descontentamento entre os homens da Ciência e os da
Religião, além de várias censuras de outros filósofos que chegaram a dizer que
o seu sistema seria apenas uma cópia do de Hume, ou uma derivação do de Bekerley
etc.
Os homens da Ciência
ressentiram-se por verem evaporar as suas “Verdades Cientificas”. Por ter sido
demonstrado que lidavam apenas com a superfície, com a “casca das coisas” e que
os seus enunciados seriam tão corruptíveis quanto os seus objetos de estudo.
E se ressentiram os
Religiosos por ter ficado provado que a sua “Verdade” era apenas sua e de quem
lhes compartilhasse a crença, não podendo pretender-se que fosse geral e
inquestionável. Foi, é certo, um grande abalo que sofreram, pois, até então, a
existência de Deus não podia sequer ser colocada em dúvida, sob a pena de
sanções eclesiásticas, sociais e judiciais. Ademais, foi-lhes tirado o status
de “Arautos da Verdade”, pois a “Verdade” já não existia como antes.
Contudo, tais reações
poderiam ser esperadas, pois toda genialidade tira os medíocres e os maus intencionados
da sua “zona de conforto” e em vista desse abalo, só lhes resta protestar, ou
pior, caluniar.
O fato é que Kant, em sua
grandeza, contrapôs-se ao Materialismo, mas sem cair em um Idealismo
ingênuo ou radical.
Ao contrário, elevou-o
ao patamar das “Essências”, à Metafísica e com isso escreveu o seu nome de
forma perene entre os grandes sábios da humanidade.
Veremos na sequência,
as suas ponderações sobre a religiosidade e sobre o Poder Político.
A Crítica da Razão
Prática
Antes de tudo será
necessário desvincular dois conceitos que são confundidos com frequência: a Teologia
e a Religião.
A Teologia, como
se sabe, é o estudo sobre a (s) divindade (s), enquanto que a Religião é
o exercício da crença irracional em algo ou em alguém (geralmente em Deus,
em suas diversas representações, tais como: o judeu-cristão, Tupã, Oxumaré
etc.).
Segundo Kant, a
Religião não pode ser baseada na Ciência nem na Teologia. Na primeira,
pelo natural e inevitável confronto com o Materialismo empírico dos estudos e
conclusões científicas. Em relação à segunda, a Teologia, em virtude da
inconsistência dos argumentos, conceitos e conclusões teológicos, os quais, não
raro, beiram à reles superstição, aos argumentos mitológicos, ao animismo
primitivo etc.
Mas, então, em que base
a Religião poderá ser lastreada?
Segundo o filósofo,
apenas a “Lei Moral” seria adequada para lhe servir como fundamento.
Contudo, essa “Base
Moral” deve ser “absoluta”, ou seja, não resultar de experiências sensoriais duvidosas,
tampouco de raciocínios ou reflexões incorretos ou mal intencionados.
Há que ser a Moral
proveniente apenas da Intuição inata, a priori, que nos “diz” o que é
bom e o que é mau. A Moral que tenha os seus princípios tão absolutos, tão
certos e tão necessários quanto são, por exemplo, os Princípios da Matemática (afinal, 2+2=4,
independentemente de qualquer circunstância, condição etc.).
E para tanto, é preciso
que o homem encontre uma “Ética Universal (isto é, para
todos e tudo) e Necessária (isto é, aquilo
que só pode ser daquela forma)”,
através da qual se chegue ao pleno e constante exercício dessa moralidade.
É preciso, pois,
estabelecer que a base da Religião seja um Imperativo Absoluto Categórico, o
qual, Kant definiu da seguinte maneira:
“O
Imperativo Categórico é agir como se a máxima de nossa ação fosse
tornar-se, por vontade nossa, uma lei universal da natureza”.
Ou seja, deve-se agir
de tal maneira que as nossas ações possam ser repetidas pelos demais, sem que
isso cause qualquer malefício a outrem. Deve-se, portanto, evitar todo
comportamento, que se fosse adotado pelos demais impossibilitaria o convívio
social.
Sabemos, por exemplo,
que uma mentira poderia ser-nos ser útil em determinada situação, mas ainda que
se pense em utilizá-la, nós a rejeitamos por não desejar que ela se transforme
em uma Lei ou Regra geral, haja vista que se tal acontecesse não se poderia
confiar em mais nada.
O “Imperativo
Categórico” aproxima-se de algumas prédicas religiosas como, por exemplo, a célebre
“Regra de Ouro (não faças ao outro o que não desejas para ti)”; e, também, da apologia ao “caráter nacional
alemão”, no tocante à seriedade, eficiência e regularidade.
Contudo, a aproximação
com a “moralidade cristã”, não tornou o clero simpático a Kant; e ele, tampouco,
avalizou a religião que se praticava (e que se pratica), escorada
apenas em dogmas vazios e numa liturgia fantasiosa.
Afinal, para ele, com
evidente influência do Hinduísmo, o homem deveria retornar
a uma divindade desvinculada dos laços eclesiásticos e obedecer apenas a “Lei Moral”,
ao invés da “Lei da Igreja”, pois só assim passaria a desfrutar da mais genuína
independência frente ao império dos desejos físicos e das coisas “menores”. Libertado
do “mundo dos fenômenos”, ele compreenderia que essa liberdade é a sua
verdadeira essência e saberia que está além e acima das Leis que regem o mundo
material, empírico, sensorial. Passaria, então, a sentir a sua própria
transcendência.
É claro que essas teses
soaram ameaçadoras para os “homens da Igreja”, principalmente, porque ao afirmá-las,
Kant não estava tomado por um ingênuo fervor místico nem por um ódio gratuito.
Sua argumentação baseava-se apenas na evidência a que qualquer raciocínio mediano
poderia chegar.
E o contra ataque não
demorou a chegar, mas Kant estava preparado para suportar-lhe, como veremos na
sequência.
A
Razão e a Religião
Crítica
da Faculdade de Julgar e A Religião dentro dos limites da Razão Pura
No tópico anterior, e
mais solidamente a partir deste, o leitor (a) perceberá que o “Idealismo Kantiano”
assumiu o outro significado do termo que citamos no preâmbulo, “Idealismo em Geral”,
e, com isso, passou a ser mais voltado aos “Ideais”, enquanto norma de conduta
desejável para os assuntos religiosos e políticos.
Quando Kant proclamou a
sua teoria acerca da “Lei Moral”, ele se opôs de modo direto, e talvez intencional,
ao clero ortodoxo e aos adeptos da chamada “Teologia
Racional”, que buscavam vincular a crença com a racionalidade. Os “doutores
da igreja” alegaram, em contrapartida, que a religiosidade proposta por Kant,
baseada apenas na fé, na ética e na esperança, não passaria de um reles
animismo primitivo, indigno da civilização de que eles se julgavam o ápice, por
serem os “representantes de Deus”.
É claro que essa reação
furiosa não foi motivada por zelo teológico, mas, sim, pelo temor de que seus
privilégios e sinecuras fossem questionados e, com o tempo, extintos.
E também os Governantes,
que tinham na Religião um poderoso instrumento de controle social, sentiram-se
incomodados com o discurso kantiano, vendo-o como uma semente para futuros
questionamentos sobre a legitimidade de seus próprios poderes.
Eram, com efeito, duas
forças contrárias de terrível magnitude com que Kant teve que se confrontar.
Todavia, não obstante
os seus sessenta e seis de idade, a sua frágil compleição física, a sua pequena
fortuna e a sua personalidade tímida, ele não se intimidou e nem recuou em suas
opiniões.
Ao contrário do que
imaginavam aqueles que tentaram intimidá-lo, ele escreveu mais dois livros
sobre o assunto e com isso criou, ou reforçou, as bases para o futuro laicismo
do Estado e para a relativização dos dogmas religiosos.
A seguir, analisaremos
brevemente esses textos.
A
Crítica da Faculdade de Julgar ou
A Crítica do Juízo.
Nesse livro, Kant retomou
a discussão que havia iniciado na “Crítica
da Razão Pura” sobre a chamada “Prova Teleológica4” da existência de Deus, para tornar a rejeitá-la por
julgar-lhe insuficiente.
Sua argumentação, de
fato, pulverizou a suposta “conclusão lógica” que os seguidores da “Prova ou Argumento
Teleológico” haviam extraído de suas equivocadas ilações acerca das noções de
“Planejamento” e “Beleza”, já que imaginaram que por ser “Belo (isto é: simétrico,
unificado etc.)” o Mundo fora planejado por “alguma
inteligência”, o quê comprovaria a existência de Deus.
Kant admitia que muitos
objetos da natureza exibissem, de fato, essa “Beleza (utilidade,
propriedade)” e que isso pudesse criar a sensação de
haver um verdadeiro projeto (divino) na construção do
mundo.
Argumentava, porém, que
também não se pode deixar de ver, que existem na natureza várias anomalias, desperdícios,
repetições, inúteis multiplicações, deformidades, etc. e, com isso, se percebe
que o imaginado “projeto divino” não existe realmente, já que seria ilógico afirmar
que um suposto “Ser Perfeito” pudesse ter feito algo repleto
de erros.
Portanto, seria
inquestionável que aquele “simulacro de projeto” não serviria como prova
indubitável da existência do divino.
Essa continuidade da negação
custou-lhe algum constrangimento, pois Frederico Guilherme II, ao contrário
de seu antecessor, o Imperador Frederico,
o Grande, não demorou em aplicar-lhe
algumas sanções governamentais, haja vista a sua aversão às políticas e ideias
liberais, que ele taxava de “impatrióticas
e eivadas do Iluminismo francês (sic)”.
Porém, essas
reprimendas não o fizeram calar-se e após três anos, já então com sessenta e
nove de idade, ele escreveu o que alguns consideram o seu livro mais ousado. É
o que veremos a seguir.
A Religião dentro dos
limites da Razão Pura.
Prosseguindo em sua
censura contra a equivocada e/ou má intencionada ortodoxia eclesiástica, Kant
reafirmou nessa obra que a Religião só poderia ter como embasamento a “Razão
Prática”, a do senso moral, e que, por isso, qualquer Bíblia ou “Revelação”
deveria ser julgada apenas por sua moralidade.
Além disso, a Religião
não teria qualquer direito de se arrogar o posto de “juiz dos homens”, já que os
seus dogmas só teriam algum valor se servissem como auxiliares ao desenvolvimento
da ética humana.
Para ele, quanto mais
liturgias e cerimônias usurpassem a prioridade da excelência moral, menos sincera
seria a crença, haja vista que “igreja verdadeira” deveria ser uma comunidade
em que as pessoas se unem pela devoção à Lei Moral; ou seja, em favor da ética,
da tolerância, da solidariedade etc.
Aliás, a seu ver, foi
para criar esse tipo de comunidade que Jesus Cristo teria vindo ao mundo. Fora
essa a igreja que ele planejara contra eclesiasticismo dos fariseus. Todavia,
depois, outro eclesiasticismo soterrou essa nobre intenção.
Nas palavras de Kant:
“Cristo
trouxe o reino de Deus para mais perto da Terra; mas foi mal interpretado, e em
lugar do reino de Deus estabeleceu-se entre nós o reino do padre (pastor, pai de
santo, monge etc. nota do autor)”.
Credo e ritual
substituíram a “Boa Nova (Os Evangelhos)” e em vez dos
homens ficarem unidos pela religião, dividiram-se em mil seitas.
Além disso, não se tem
o menor pejo em se “exigir” milagres, como se Deus fosse um mero doador de
benesses e de nada servissem as Leis da Natureza, as quais estariam sujeitas ao
poder das orações e dos interesses individuais.
Porém, para Kant, o
nadir (o
ponto mais baixo) da Religião ainda não era esse; pois,
em seu modo de ver, esse “fundo do poço” acontece quando ela se vende ao Poder
Político e se torna um sórdido instrumento de repressão e de controle, nas mãos
de um governo corrupto, maléfico, ilegítimo etc.
Opiniões contundentes e
provocativas, certamente. E por conta delas, Wollner5, o Ministro
da Educação, não tardou em iniciar uma feroz perseguição contra Kant, que, novamente,
não se intimidou e nem deixou de buscar meios para expor as suas ideias.
Assim, ante a
impossibilidade de o jornal Berliner
Nonatsschrift fazer a publicação devido à interdição ministerial, ele remeteu
o manuscrito para amigos em Jena (cidade e universidade na Prússia)
e, através deles, publicou-o na imprensa daquela universidade, ao abrigo do
liberal duque de Weimar.
A publicação acirrou os
ânimos do governo e em 1794, Kant recebeu a seguinte reprimenda:
“Nossa
altíssima pessoa ficou muitíssimo contrariada ao observar que fazeis mau (mantida a
grafia original - na.)
uso de vossa filosofia para solapar e destruir muitas das mais importantes e
fundamentais doutrinas das Sagradas Escrituras e do Cristianismo. Ordenamos uma
imediata explicação correta e esperamos que, no futuro, não mais provoqueis uma
ofensa dessas, mas, isso sim, de acordo com o vosso dever, que empregueis
vossos talentos e autoridade a fim de que o nosso propósito paternal possa ser
alcançado cada vez mais. Se continuardes a vos opor a esta ordem, podereis
esperar consequências desagradáveis”.
Ele nada respondeu. Não
era necessário.
A Política e a Paz
Como se viu, as
reflexões, as opiniões e a exposição de Kant acerca da Religião, renderam-lhe repreensões
e perseguições. Porém, esses incômodos não atingiram limites extremos, graças à
sua idade e à sua respeitabilidade; e é provável que as suas posições acabassem
sendo esquecidas pelo Governo, se ele não juntasse às mesmas as suas lucubrações
a respeito da Política.
Ardoroso adepto de uma
revolução na política e de outra nos costumes sociais, as suas ideias revolucionárias
foram expostas pela primeira vez em 1784 com a publicação de seu livro “O Principio Natural da Ordem Política
Considerado em Conexão com a Ideia de uma História Cosmopolita Universal”.
Posteriormente, ele não
hesitou em aplaudir a “Revolução Francesa”, que em 1788 aterrorizou as
monarquias europeias. Demonstrava, então, uma faceta inesperada para alguém de
sessenta e cinco anos de idade e pacata personalidade.
Ao contrário, diga-se, da
quase totalidade de seus colegas professores, que não titubearam em demonstrar
apoio à monarquia e, em particular, ao seu soberano Frederico Guilherme II.
Em suas reflexões, ele
discordava de seu ídolo Rosseau nalguns
pontos, pois, a seu ver, era a luta de cada indivíduo que faz o homem desenvolver
as suas habilidades.
A disputa, portanto, seria
indispensável para o progresso humano por imposição da própria Lei Natural, já
que se os homens vivessem “na paz dos cemitérios”,
nenhum desenvolvimento haveria.
Porém, a par dessa
apologia à competição, Kant lembrava que a luta entre os homens teve de ser
regulada em certos padrões e limites para evitar que o seu excesso destruísse
os benefícios que havia proporcionado.
Em suas palavras:
“Demos
graças, pois, à natureza por essa insociabilidade, por esse ciúme e essa
vaidade invejosos, por esse insatisfeito desejo de posse e poder. (...) O homem
deseja a concórdia, mas a natureza é quem sabe o que é bom para a sua espécie;
e ela deseja a discórdia, a fim de que o homem possa ser impelido a um novo
emprego de seus poderes e a um maior desenvolvimento de suas capacidades naturais”.
Enquanto a sua teoria
tratava apenas dos indivíduos, as censuras que granjeou embutiram-se naquelas
de ordem religiosa, haja vista que ela se contrapunha à ideia de um homem dócil
aos ditames dos “Superiores” e/ou aos dogmas bíblicos de ter sido feito “à
imagem e semelhança de Deus” e de que faria parte de uma “espécie eleita”, que
paira acima das “Leis da Natureza”.
Todavia, quando ele
equiparou o comportamento das Nações com o dos indivíduos e elevou esse mesmo
principio para as chamadas “Questões de Estado”, as investidas governamentais
não tardaram, já que ele afirmava que, a exemplo dos indivíduos que se
organizaram em uma “Sociedade”, as Nações também deveriam se organizar para que
lhes fosse disciplinado o comportamento, evitando-se, assim, a barbárie da
exploração, da guerra e das outras mazelas que a belicosidade interesseira dos
Estados promovia (e promove) amiúde (uma previsão
para ONU?).
Não é difícil imaginar
o mal estar que essa pregação causou, pois além de atacar a tolice de alguns
valores abstratos como o de “honra lavada em sangue”, “patriotismo ufano” etc.;
ele atacava, também, questões de ordem prática, já que a guerra atendia (como ainda hoje
acontece) aos escusos interesses concretos de soberanos,
militares, clero e outros, que através da luta auferiam (e auferem)
poder e riqueza, graças ao aumento na taxação, na produção e no comércio de
armas, na partilha dos despojos conquistados etc.
Mas, Kant não se
intimidou com as pressões e prosseguiu com suas críticas aos gastos militares
em prejuízo das verbas destinadas à Educação, colocando uma questão que ainda
hoje não foi solucionada.
Em suas palavras:
“Nossos
governantes não tem dinheiro para gastar na educação pública (...) porque todos
os seus recursos já estão aplicados na conta para a próxima guerra”.
E, assim, com uma coragem
que beirava a audácia, censurava asperamente a sua própria Alemanha natal pela
iniciativa de formar exércitos permanentes, os quais, aliás, mereceram-lhe a
seguinte definição:
“Exércitos
permanentes excitam os Estados, levando-os a sobrepujar uns aos outros no
número de homens armados, que não tem limite. Devido às despesas provocadas por
essas situações, a paz se torna em longo prazo mais opressiva do que uma guerra
curta; e os exércitos permanentes são, assim, a causa de guerras agressivas
feitas com o fim de acabar com esses ônus”.
Posteriormente,
seguindo em sua cruzada, ele publicou, em 1795, o Ensaio intitulado “A
Paz Eterna” que se constitui de um belo desenvolvimento do tema.
A República
Para Kant, um dos
motivos para o incremento do militarismo e da belicosidade era o aumento da natural
ganância humana, com a descoberta das enormes riquezas da África, das Américas
e da Ásia.
Comportamento
beligerante que lhe causava uma enorme repulsa não só pelo próprio, mas, também,
por escancarar a hipocrisia daqueles que se autoproclamavam “civilizados” e
“religiosos”. Ademais, a ambição desmedida dos “Senhores da Guerra” também se
mostrava ávara, vez que o resultado da exploração colonial era reservado apenas
à elite, restando ao homem comum a duvidosa honra de matar e morrer “por seu Rei ou por sua pátria”.
Em suas palavras:
“Se
compararmos os casos bárbaros de inospitabilidade (...) com o comportamento
desumano dos Estados civilizados e, em especial, comerciais de nosso
continente, a injustiça cometida contra eles, mesmo em seu primeiro contato com
terras e povos estrangeiros, nos encherá de horror; a mera visita a esses povos
era considerada por eles como o equivalente a uma conquista. A América, as
terras dos pretos, as ilhas das especiarias, o cabo da Boa Esperança etc., ao
serem descobertos, foram tratados como países que não pertenciam a ninguém,
porque os habitantes aborígines eram considerados como se nada fossem (...). E
tudo isso tem sido feito por nações que fazem um grande alarde sobre a sua piedade
e que, enquanto bebem a iniquidade como se fosse água, consideram-se os
próprios eleitos da fé ortodoxa”.
Para ele, tal
comportamento provinha diretamente da típica forma de governo da época, a
Monarquia Absolutista, amparada no falacioso argumento do “Direito Divino”.
Assim sendo, seria
indispensável substituir o regime Monarquista
pelo Republicano, pois se todos
participassem do “Poder Político”, os espólios das roubalheiras e explorações coloniais
seriam individualmente menores e isto reduziria a cobiça dos mandatários.
Passaria, pois, a ser uma tentação resistível. Além disso, se aqueles que são
forçados a matar e a morrer tivessem o direito de optar, o caminho das armas
seria, certamente, menos trilhado; ao contrário da situação em que se vivia,
quando quem decidia pela guerra não sofria as suas agruras nem as suas consequências
diretas.
A esse respeito, aliás,
o “Primeiro Artigo Definitivo” de sua obra “A
Paz Eterna” proclama que:
“A
constituição civil de todo Estado será republicana e a guerra só será declarada
por um / plebiscito de todos os cidadãos”.
E a pregação de Kant
revigorou-se quando em 17956
a Revolução venceu as forças reacionárias e ele pode imaginar que o Sistema
Republicano se espalharia pelo continente, plasmando o seu desejo de que não
mais se privilegiasse o indivíduo por conta de sua origem e nem que a ele
fossem concedidos os Direitos usurpados aos demais.
Ter-se-ia, então, uma Sociedade
que garantiria oportunidades iguais a todos, através de um ensino universal de
qualidade; de melhores condições de saúde, de infraestrutura e de bem estar
alimentar e cultural etc.
Uma sociedade, que
tendo as suas necessidades básicas convenientemente atendidas, pudesse praticar
a sua natural solidariedade e generosidade, tornando-as parte integrante do Imperativo Categórico.
Infelizmente, grande
parte de seus sonhos e desejos ainda não se realizaram, mas é importante reconhecer
que alguns passos foram dados no bom caminho, pois há, no mínimo, o crescimento
da conscientização da validade dessas aspirações.
Na sequência, para
finalizarmos o capítulo, faremos algumas observações acerca das ideias
kantianas.
Considerações finais
Iniciaremos nossos
comentários com o seguinte questionamento: serão, realmente, o Espaço e
o Tempo apenas “Formas de Sensibilidade” desprovidas de
qualquer realidade concreta, objetiva?
Por um lado, pode-se
dizer que sim, já que o Espaço é um conceito vazio até que venha a ser
preenchido por algo (coisas, Seres etc.)
percebido ou captado pelos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato)
e entregue à mente para ser classificado e organizado. A mente, por si, não tem
a capacidade de perceber nada que esteja fora dela mesma e, por isso, é
indispensável que Espaço lhe seja introjetado. Por outro lado, é indubitável
que existem “fatos espaciais” que independem de qualquer percepção para
existirem efetivamente, como, por exemplo, o circuito anual que a Terra efetua ao
redor do Sol.
No tocante ao Tempo,
também se pode dizer que o mesmo não
é apenas uma construção mental, uma “Forma de Sensibilidade”, feita através da
coordenação de Sensações, haja vista que a sua efetiva existência pode ser
observada no ciclo de nascimento, duração e morte de uma árvore, de um homem
etc. Também é importante notar as diferentes formas de percepção entre os dois
elementos: o Espaço é percebido através da percepção simultânea de objetos diferentes e de vários pontos; enquanto
que com o Tempo, a percepção acontece pela sucessão
de momentos, de modo que ele nos chega como uma Sensação de “antes” e de
“depois” ou como uma medida do movimento.
Dessa sorte, pode-se
dizer que a Kant se deve a “descoberta” dessa outra classificação para o Tempo
e o Espaço; pois, se antes ambos já eram conhecidos pelos seus aspectos
objetivos, foi graças a ele que as sua condição de “formas de percepção” passou
a ser considerada.
Contudo, essa nova
forma de encarar os dois elementos não foi aceita unanimemente, sendo alvo de
críticas sérias de Pensadores sérios e de censuras menores por parte de
pseudointelectuais. Abaixo, expomos algumas das mais significativas sobre esse
tópico e sobre outras de suas afirmativas:
A respeito da motivação
que levou Kant há colocar o Tempo e o Espaço apenas como simples
“elementos para organizar as Sensações recebidas”, alguns estudiosos sustentam
que a sua intenção seria a de se opor ao Materialismo que, então, predominava;
e, paralelamente, opor-se à ideia de um tipo de Deus que fosse tão objetivo,
concreto, quanto eram o Espaço e o Tempo na visão dos Materialistas. Opor-se,
portanto, à noção de que tal divindade pudesse vir a ser conhecido
racionalmente, como propunham o clero e os adeptos da “Teologia Racional”.
Para outros eruditos, a
sua insistência levou-o ao erro, pois já seria mais que suficiente a sua afirmativa
de que toda realidade (física, concreta) só nos é
revelada através das idealizações (ou representações mentais)
que fazemos da mesma, após tê-la captado ou percebido pelos sentidos, pelas
Sensações.
Outro ponto que lhe é
contestado diz respeito à “Verdade Cientifica” e a sua obsessão pela “Verdade
Absoluta”, já que algumas linhas da própria Ciência, inclusive na Matemática,
reconhecem-se apenas relativas em suas verdades e se contentam com um alto grau
de probabilidade.
No tocante ao seu
questionamento sobre o conceito “Categorias” (que desde Aristóteles reinava sem qualquer investigação mais atenta),
foram raríssimas as vozes contrárias. Dessa sorte, as suas indagações sobre o
tema, ainda hoje são pertinentes. A saber:
- As
Categorias ou “formas interpretativas de pensamento” seriam, de fato, anteriores
às Sensações e às experiências?
- Ou
seriam adquiridas pela memória da espécie e repassadas ao individuo?
- Ou
seriam como “sulcos” onde se encaixam as Sensações chegadas?
- Ou
seriam apenas hábitos de Percepção e Concepção, provocados pelas Sensações?
- Etc.
-0-
O fato é que nem as discordâncias
de Pensadores sérios, capazes e honestos; nem as impróprias divergências de pseudointelectuais
foram capazes de empanar o brilho de Kant; assim como, tampouco diminuiu o seu
mérito, o rude tratamento que foi dado à sua Ética no século XIX e o fato de os
homens da época, rejeitarem peremptoriamente a sua ideia de que o Senso Moral
seria inato, a priori, absoluto. Afinal, vivia-se o auge da concepção Evolucionista
que proclamava ser o Senso Moral uma espécie de “depósito social” instalado em
cada indivíduo. O homem até poderia ter uma inata propensão a viver em
comunidade, mas isso não o tornava uma “Criação Divina”, dotado automaticamente
da sabedoria sobre o “certo” e o “errado”, já que tais conceitos são relativos
e alteráveis, conforme as condições concretas ou objetivas de cada situação.
Aliás, paradoxalmente,
na atualidade, após um longo período de Liberalismo, importantes segmentos
sociais dão mostras de aceitarem o discurso de Kant, como se ansiassem pela sua
proposta de maior rigidez de costumes, de comportamento, de observação extrema
de certos parâmetros e de cumprimento de deveres, ainda que a custa de sacrifícios
pessoais. Para muitos, esse “chamamento kantiano ao dever” não estava equivocado.
Por outro lado, mudando
o prisma de nossas considerações, deparamo-nos com um dos pontos altos do
Sistema kantiano ao observarmos a sua maravilhosa guinada em direção às ideias
religiosas, que ocorre na segunda “Crítica”, a “da Razão Prática”.
Ideias sobre “Deus,
liberdade e imortalidade” que se poderia imaginar enterradas na primeira “Critica”
– “da Razão Pura” – ressurgiram como se Kant fosse um mágico que tira coisas de
uma cartola vazia. Vê-se, maravilhado, o filósofo tirar daquelas ideias, o
conceito de “Dever”.
A esse respeito, o
filósofo Schopenhauer disse acreditar que Kant continuava, na realidade, tão cético
quanto antes, mas que hesitava em destruir a fé popular por temer as consequências
dessa falta de um poderoso freio moral.
Alguns pseudofilósofos,
porém, entenderam o posicionamento de Schopenhauer de maneira errada ou má
intencionada e não tardaram em debitar a Kant tentativas de “racionalizar Deus”
e outras sandices do gênero.
Porém, ainda segundo a
visão de Schopenhauer, o que Kant tinha em mente era derrubar os antigos erros,
mas tomando o cuidado de manter em pé, através de sua “Teologia Moral” alguns
suportes temporários que sustentassem o homem, enquanto ele não atingisse a
idade em que se veria desnecessitado das superstições religiosas.
De todo modo, essas
observações adversas de inimigos menores não merecem muita consideração, pois a
magnitude do Ensaio “A Religião dentro
dos Limites da Razão Pura” não deixa dúvidas sobre a sinceridade de
propósitos de Kant, que ao substituir a base da Religião, passando-a da “crença
litúrgica e supersticiosa” para a “conduta ética”, fez com que a mesma se tornasse
uma manifestação legítima de transcendência e Metafísica.
Um Sistema como o de
Kant, cuja grandeza permite até aparentes contradições, não poderia passar
incólume pela inveja de muitos; pelas bem intencionadas censuras de outros e,
também, pelas evidências advindas do progresso cientifico.
Nada, porém, foi capaz
de lhe tirar o posto de referencial para todo o pensamento filosófico do Século
XIX. Depois dele, a Europa em geral, e a Alemanha em particular, passaram a
falar amiúde sobre a Metafísica, a Transcendência, o Númeno ou “coisa-em-si”
etc.
Graças a ele,
revalorizou-se o “Mundo das Ideias” de Platão. E por obra de sua genialidade, Schiler
e Goethe acrescentaram mais conteúdo às suas obras magníficas; enquanto que Fichte,
Schelling, Hegel e Schopenhauer produziram, em rápida sucessão, grandes
Sistemas de Pensamentos assentados em suas teses.
Além disso, a sua
crítica à Razão e a sua exaltação ao Sentimento, à Intuição prepararam o
terreno para o “Voluntarismo” do já citado Schopenhauer e o de Nietzsche e para o “Intucionismo” de Bérgson.
E coube à sua
afirmativa sobre a igualdade entre as “Leis do Pensamento” e as “Leis da
Realidade” o ilustre papel de servir como alicerce para o Sistema de Hegel.
Ademais, deve-se citar,
ainda, o hodierno movimento “Neo Kantista”
que busca a aplicação de seus enunciados na realidade contemporânea.
Por fim, pode-se dizer
que apesar do apego do homem atual ao Materialismo e de sua crença no poder
quase místico das Ciências, graças a Kant, o Idealismo permanece tão
vigoroso quanto antes.
E se nada mais
tivéssemos a agradecer-lhe, a conservação dessa janela, por onde escapamos dos
estreitos limites da matéria, já seria um justo motivo para dedicarmos-lhe o
nosso eterno reconhecimento.
Notas do Autor
Aspecto
Metafísico1 - propõe uma teoria sobre a estrutura do real ou
realidade na medida em que está ligado à consciência.
Aspecto
Gnosiológico2 - vinculação ao estudo das condições do
Conhecimento. Não propõe nenhuma tese sobre a estrutura da realidade.
Pietista3 – seita
religiosa que tal qual o Metodismo da Inglaterra primava pelo rigor na
observação dos preceitos religiosos e nos modos de comportamento.
Prova
Teleológica4: a que afirma a existência de Deus alegando que a
finalidade das coisas, dos Seres, comprovaria que foram planejados por algo ou
alguém.
Wollner5, um fanático
pietista mal intencionado, que subiu ao posto em 1788 e logo em seguida proibiu
todos os colégios e universidades de ministrarem qualquer ensinamento que
pudesse confrontar as “Sagradas Escrituras”.
Revolução
em 17956 – período da Revolução Francesa em que se instaurou
o “Diretório” e se promulgou a Constituição Revolucionária que vigorou até
1799.
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