“Os homens só serão livres quando o último rei for estrangulado com as tripas do último padre”.
Antes de falarmos a respeito da obra de Voltaire, será oportuno traçarmos uma breve panorâmica da vida intelectual daquela época.
O reinado de Luis XIV foi permeado pelas ideias revolucionárias de alguns dos mais brilhantes intelectuais que a França deu ao mundo, apesar da rigida intransigência e das sórdidas pressões exercidas por setores conservadores da sociedade, especialmente no segmento religioso (qualquer semelhança com a atualidade será mera coincidência...).
Horrorizava o grupo religioso e conservador a hipótese de que as “Luzes” acesas pelo grupo de intelectuais pudessem aclarar a mente das massas ignotas que eles exploravam e dominavam, através de ameaças mundanas e celestiais.
Afinal, se tal acontecesse, seria impossível manterem as suas sinecuras, os seus privilégios e as suas “doces vidas” de ócio, festas, caçadas, banquetes e luxúria, financiados pelos dízimos e pelos tributos escorchantes.
Porém, na verdade, esse risco nunca existiu, pois, tal como agora, as “massas exploradas” nunca tiveram grande interesse em se libertar, já que lhes era mais cômodo “não pensar, não estudar, não aprender, não ousar”. Aprender, estudar, ousar etc. parecia-lhes, como lhes parece ainda hoje, algo extremamente difícil, trabalhoso. E, assim sendo, havia, como ainda hoje, certa acomodação entre as duas pontas da situação; isto é, entre explorados e exploradores.
Com isso, a admiração que aqueles Intelectuais prestavam ao “homem comum”, soava como um elogio prestado a um “Ser apenas idealizado” e não ao individuo supradescrito; ou seja, aquele que se sujeita a outrem apenas para não assumir sua própria responsabilidade em face da vida.
O pensamento filosófico e conceitos como dignidade, independência, igualdade etc. pareciam àqueles elementos exóticos, inatingíveis e até quiméricos, já que lhes era (e ainda é) comum a falaciosa argumentação de “as coisas são assim, porque Deus quer que sejam assim”.
E essa resignação e servilidade eram mais evidentes nas culturas latinas e, especialmente, na França, por conta do relativo fracasso que a “Reforma Protestante” ali obteve, ao contrário da Grã Bretanha, da Alemanha e doutras nações.
Desse modo, a evolução do intelecto francês não manteve nenhuma sintonia com a melhora ética que a Reforma introduziu na teologia, como a que se verificou nas terras onde a doutrina de Lutero passou a imperar.
Houve, até mesmo, um recuo às posições católicas mais conservadoras e foi por conta dessa desarmonia entre o avanço intelectual e o retrocesso teológico que a hostilidade contra o clero acabou sendo mais radical e agressiva.
Exemplo dessa ira pode ser vista, por exemplo, na obra de La Mettrie (1709-1751), “História Natural da Alma”, que traz um Mecanicismo muito mais ousado do que o proposto por Descartes, já que para ele, a “alma” seria apenas matéria, enquanto que a matéria corporal seria apenas “sentimental (dos Sentidos, sensações)”. Ambas crescem, influenciam-se mutuamente e se deterioram em conjunto. Características, óbvio, que não deixavam espaço para Deus ou para qualquer outra figura religiosa. Ademais, a Ética não proviria de outra fonte que não fosse a necessidade, que, no homem, assume a forma sofisticada dos “desejos”. Também é óbvio que, novamente, não haveria espaço para Deus ou qualquer figura Metafísica. Assim, o “divino” não passaria de uma reles fantasia.
Como seria de se esperar, as autoridades civis e religiosas moveram-lhe uma cruel perseguição e ele teve que se exilar na Corte de Frederico, o Grande, que não perdia oportunidade de enriquecer a sua Academia com os talentosos intelectuais que fossem perseguidos.
Porém, nem a ferocidade da perseguição desencadeada contra La Mettrie foi capaz de silenciar o filósofo Helvétius (Claude Adrien – 1715-1771 – França) que se baseou em suas teses, para escrever o livro “Sobre o homem”, onde colocou a Ética como um produto exclusivamente do egoísmo humano.
Para ele, toda ação resulta do interesse pessoal, do amor próprio. A Consciência não seria a “voz de Deus”, mas o “dedo da Polícia”. Um tipo de depósito, onde se guarda todas as proibições que são impostas ao homem desde o seu nascimento, através dos genitores, professores, governos etc.
Por isso, as questões Éticas ou Morais não deveriam ser tratadas pela Teologia, mas, sim, pela Sociologia, já que são as circunstâncias sociais que modelam e classificam os comportamentos.
Moral e Ética não seriam, portanto, “dogmas inalteráveis”, determinantes em definitivo do que seja “Bom” ou “Mal”.
Apenas as vicissitudes de uma época é que poderiam fazer essa análise e classificação.
Concepções que certamente receberam a aprovação de Denis Diderot (1713-1784, França), a estrela mais fulgurante dessa plêiade, cujas ideias foram expostas por sua própria pena e por outros Pensadores de escol, fiéis admiradores de seu virtuosismo.
Dentre esses, destacava-se o Barão d´Holbach (1723-1789) que expôs várias teses de Diderot em sua célebre obra, “Sistema da Natureza”, como, por exemplo, a seguinte:
“Veremos que a ignorância e o medo criaram os deuses; que a imaginação, o entusiasmo ou o embuste os adornou ou desfigurou; que a fraqueza os venera; que a credulidade os preserva; e que o costume os respeita, e a tirania os apoia a fim de fazer com que cegueira dos homens atenda aos seus interesses”.
Esta ideia, aliás, era uma das mais caras a Diderot, que a resumiu na célebre sentença:
“Os homens só serão livres quando o último rei for estrangulado com as entranhas do último padre.
Contudo, apesar da ojeriza que demonstrava aos religiosos, Diderot não era adepto do Materialismo, vendo no mesmo apenas um valioso instrumento na luta contra o Clero. Para ele, aliás, seria impossível reduzir a Consciência à reles matéria, pois isto equivaleria a se fazer uma indevida supersimplificação.
Portanto, o Materialismo só deveria ser utilizado até que fosse encontrada uma ferramenta melhor para a luta contra a Igreja; devendo-se, enquanto isso, estimular o Conhecimento nas massas populares, pois o Saber, per si, poderia, ao menos, impedir o aumento das hordas supersticiosas e má intencionadas.
Compartilhava essa visão o filósofo d´Alembert (1717-1783, França), coautor da “Encyclopédie”, sobre a qual, aliás, é preciso fazer mais algumas considerações, tal é a sua importância:
A Encyclopédie foi escrita por vários eruditos de 1752 a 1772 e é formada por vários capítulos, que trazem concepções e saberes filosóficos destinados às massas populares, cujo esclarecimento faria com que se libertassem da opressão religiosa e política.
Seus primeiros volumes foram proibidos pela Igreja e repudiados pelos devotos mais fanatizados. Além disso, passou a sofrer pressões por parte da Nobreza e do Governo e até no meio intelectual surgiram objeções, como as de Jean Jacques Rosseau (1712-1778, Genebra) que discordava da glorificação dada à Razão, ao Raciocino, em detrimento das sensações, dos sentimentos, das intuições. E até a genialidade de Immanuel Kant foi citada para contrapor alguns dos argumentos dos enciclopedistas, ainda na questão do endeusamento da Razão, já que o gênio alemão havia questionado qual seriam o real limite e potencial da mesma.
Esse conjunto de opositores fez com que vários autores iniciais do projeto o abandonassem, ficando apenas Diderot e alguns outros eruditos que lhe compartilhavam as ideias e a coragem. E neles, a determinação e a virulência de suas críticas e censuras contra os alvos prediletos: o clero e o governo, só aumentaram em decorrência das oposições.
Dessa sorte, enquanto as contra-argumentações e as perseguições religiosa e oficial não se tornaram um obstáculo intransponível, a Encyclopédie e seu ideário reinaram absolutas no panorama intelectual francês, meio ambiente em que a figura de Voltaire era reverenciada. E ele, sempre pronto para os bons combates, nunca deixou de frequentar o círculo dos enciclopedistas, chegando mesmo a escrever vários verbetes da mesma.
Essa experiência despertou-lhe o desejo de fazer uma “Enciclopédia” pessoal, apenas sua, e logo batizou o projeto de Dicionário Filosófico.
Assim, com o seu arrojo característico, escreveu sobre todos os assuntos, impregnando cada trecho de sua erudita cultura e superior inteligência. Produziu uma obra que além da profundidade com que tratou os temas abordados, também cintila pela acessibilidade no estilo e na linguagem.
De inicio, escreveu sobre “dúvidas”, fazendo um sincero agradecimento ao filósofo Bayle (Pierre – 1647-1706 – França) por ter-lhe ensinado a “arte da dúvida”. Nessa linha, ele rejeita todos os Sistemas e desconfia que:
“Todo chefe de seita em Filosofia, seja um tanto charlatão, pois só os charlatães tem certeza (...) já que nada sabemos dos primeiros princípios. (...) Pois é realmente extravagante definir Deus, anjos e mentes, e saber exatamente o motivo pelo qual Ele criou o mundo, quando não sabemos (sequer) porque mexemos os braços quando queremos.”. “A dúvida não é um estado muito agradável, mas a certeza é um estado ridículo”.
Depois, escreveu sobre outros temas, com a profundidade necessária e com a leveza estilística que lhe eram próprias. São verbetes que elucidam os mais diversos temas filosóficos, sociológicos, antropológicos, históricos e até teológicos, compondo um vasto panorama do Saber humano. E já quase no final, narra a história do “Bom Brâmane1”, que reproduzimos a seguir:
“- Quem me dera, eu nunca tivesse nascido!
- Por quê? Disse eu.
- Porque há quarenta anos que venho estudando e, verifico que foi muito tempo perdido. (...) Creio que sou composto de matéria, mas jamais consegui me convencer do que é que produz o pensamento. Chego até a ignorar se a minha compreensão é uma simples faculdade como a de caminhar ou digerir, ou se penso com a cabeça da mesma maneira que seguro uma coisa com as mãos. (...) Eu falo muito, e depois de acabar de falar, fico confuso e envergonhado do que disse.
No mesmo dia tive uma conversa com uma velha senhora, vizinha dele. Perguntei se alguma vez se sentira infeliz por não compreender como sua alma era feita. Ela nem sequer compreendeu a minha pergunta. Não pensara, no mais curto instante da vida, naqueles assuntos com os quais o bom brâmane tanto se atormentava. Ela acreditava, no fundo do coração, nas metamorfoses de Vishnu2, e desde que pudesse arranjar um pouco da água sagrada do Ganges para fazer suas abluções, considerava-se a mais feliz das mulheres. Impressionado com a felicidade daquela pobre criatura, voltei para o meu filósofo, a quem me dirigi da seguinte maneira:
- Não tendes vergonha de vos sentirdes tão infeliz, quando, a menos de cinquenta metros de onde estais, existe um velho autômato que não pensa em nada e vive contente?
- Tendes razão, tenho dito a mim mesmo, mil vezes que eu deveria ser feliz se fosse tão ignorante quanto minha velha vizinha; no entanto, é uma felicidade que não desejo...
Essa resposta do brâmane me causou uma impressão maior do que qualquer outra coisa que acontecera”.
Com essa história, Voltaire ilustra com perfeição o fato de que não é possível existir uma paz efetiva na ignorância, pois nela, só existe uma resignação acomodada ou, pior, covarde. Existe apenas o medo de pensar, de refletir, de descobrir.
Com isso, ele termina sua obra tecendo considerações acerca da importância fundamental do verdadeiro Saber, pois, ainda que nunca produza verdades definitivas, a Filosofia é a maior e a mais nobre aventura que o homem pode alcançar.
E, seguramente, obras como o seu Dicionário Filosófico são como brados perenes que nos encorajam a nunca abdicarmos do uso da Razão, pois, talvez, seja isto que justifique a nossa existência.
Lettre la Art et la Culture
Enviado por Lettre la Art et la Culture em 28/03/2016
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