terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

A Morte de Ivan Ilitch - Tolstói - Resenha





Tolstoi (1828 – 1910) nasceu no seio de uma rica família aristocrática e graças a isso desfrutou até a metade da vida de uma confortável e luxuosa condição de existência. Porém, após ter-se casado com uma mulher quinze anos mais jovem e ter sido pai de dez filhos, sofreu uma completa reviravolta em sua personalidade e tornou-se macambúzio, soturno e consciente das tristes condições em que viviam os pobres de sua pátria. No desenvolvimento dessa transformação vieram o divórcio, o recolhimento em sua propriedade, o afastamento da vida social e a leitura compulsiva dos grandes romancistas, especialmente Cervantes e Victor Hugo. Na sequência, chegaram o misticismo, o abandono das riquezas e o inicio efetivo da sua produção literária cujo mote principal focalizava os aspectos humanos e sociais. Seus textos retratavam aquilo que ele via, já que passou a visitar as áreas carentes da cidade e a manter um estreito convívio com as pessoas do povo. E foram essas aproximações e experiências que embasaram os enredos de obras como “Ana Karenina”, "Guerra de Paz" e desta, que, a exemplo das outras, mostram a crua realidade de uma sociedade injusta, egocêntrica, hedonista e dissoluta, embora, em paralelo, sempre com o contraponto de figuras nobres e de valores elevados.

Isto colocado, passemos à resenha de “A Morte de Ivan Ilitch”:

Se tu queres cantar o Mundo, cantes a tua aldeia...

A sentença acima se tornou icônica e pode perfeitamente ser usada no presente caso, bastando substituirmos a noção de espaço pela noção de tempo, pois, com efeito, os fatos ali narrados e ocorridos em c. de 1800 são tão iguais aos que ocorrem nos dias atuais, que não se pode observar a menor mudança no comportamento humano. Tanto quanto naquela época, o que hoje impera é o interesse próprio e egoísta, ainda que mal disfarçado e apenas para se atender às conveniências sociais.
O texto começa com a conversa descontraída de três servidores da Justiça que debatem assuntos banais de trabalho de carreira, tais como transferências, promoções, aumentos de salários etc. A conversa segue descontraída até que chega a noticia da morte de um dos juízes e automaticamente cada um dos presentes começa a imaginar o que aquilo pode lhe render de beneficio, em termos de promoções, transferências, aumentos de salários etc., além de sentirem o alivio pela foice da morte ter atingido a outro e não a ele próprio. E tais pensamentos, convenientemente disfarçados por hipócrita comiseração, também povoam as mentes de PIOTR IVANOVITCH e FIÓDOR VASSILIEVITCH, cuja proximidade com o morto era mais estreita e exatamente por isso o primeiro sente-se na obrigação de velar o juiz. Assim, sacrifica o repouso costumeiro após o jantar e dirige-se até a residência do falecido. Afinal, para ele o sacrifício pode ser compensador, pois a vaga que se abrirá com a morte do juiz, poderá ajudá-lo a auxiliar seu cunhado, funcionário inferior em uma estância sem importância, e com isso livrar-se da cobrança que a sua esposa e a família dela lhe fazem. Movido, então, por esses interesses, hipocritamente revestidos de solidariedade e piedade, dirige-se à casa do amigo extinto e lá, em primeiro lugar, encontra-se com outro amigo comum, SCHWARZ, que demonstrando completa indiferença com o ocorrido, não perde a oportunidade fazer piadas e confirmar que o esperam para o carteado de costume. Em seguida, finge um grande devotamento religioso e a custo consegue disfarçar o asco que sente ao avistar o cadáver. Ainda chocado com o cheiro do cadáver, com a sua aparência e com o horror da cena, sente-se reconfortado quando a viúva pede-lhe que a acompanhe, pois ela precisa conversar em particular um “assunto de extrema gravidade”. Ele a segue e logo percebe que as lágrimas que ela derrama são falsas e que o que lhe interessa de fato é saber o quanto ela pode exigir de pensão do Governo. PIOTR também percebe que ela já fez extensas pesquisas a respeito e que conhece mais do assunto do que ele mesmo e então responde que não há modo de fazer nada e que ela receberá apenas o padrão, mas ela fingindo ignorância sugere algum tipo de falcatrua, com o que ele não concorda e aproveitando-se do fato de que os serviços funerários estão prestes a começar ele se desembaraça da mesma e segue lépido e feliz ao encontro do jogo de baralho que lhe aguarda.

A outra metade da obra narra a vida de IVAN ILITCH, cuja principal característica foi a retidão profissional, familiar e social. Um indivíduo que primou em levar a vida cumprindo religiosamente todas as regras e leis, dispensando-se de aventuras e de bruscas mudanças. Uma vida recompensada por pequenas alegrias no trabalho, na aquisição e decoração de uma nova casa, vitórias no carteado e outras alegrias que são típicas de espíritos pequenos que desse modo compensam as frustrações advindas do casamento fracassado, da insuficiência do dinheiro que nunca é bastante para ostentar junto aos parentes e amigos mais pobres, da inquietude pressentida etc. E dentro dessa rotina prossegue-lhe a vida até que uma dor inesperada anuncia a chegada da doença que, ao cabo, o matará. Com a chegada da enfermidade, ele passa a pesquisar sofregamente os aspectos da mesma e devora todos os textos médicos buscando motivos de esperanças e tentando embasar a sua nova condição de enfermo e, portanto, “digno” e merecedor de atenções especiais, principalmente dos familiares; mas, ao contrário do que pretendia, logo ele começa a sentir o asco e o incômodo que causa em sua esposa e em sua filha, a despeito da tentativa que ambas fazem para parecerem atenciosas, amorosas e dedicadas. Ressente-se da indiferença das mesmas e, principalmente, do fato de sua esposa debitar-lhe a culpa por estar doente, não perdendo ocasião de falar para qualquer um que a sua situação é decorrente de sua indisciplina em não tomar os remédios como deveria; ou, então, que ele está nesse estado por ter comido aquele alimento, ou por ter usado aquela roupa e coisas similares. E o ressentimento em breve transforma-se em ódio e num crescendo de tensão, TOLSTOI relata as minúcias do cotidiano em que os mais diversos momentos causam dor, sofrimento, solidão e mais ódio, mais ressentimento, mais asco e mais vontade de que “ele descanse” e “descanse a pobre família” que por ter que suportá-lo vê-se privada de sua rotina.

É um texto duro, até cruel. E, pior, verdadeiro. É claro que existem exceções e há enfermidades e mortes que são suavizadas pelos cuidados e pelo amor que o paciente recebe, mas infelizmente são casos excepcionais e que ocorrem, geralmente, quanto a doença é breve e a morte não tarda, evitando que o trabalho e o incômodo dado pelo paciente atrapalhe a rotina daqueles que lhes são próximos. Mas TOLSTOI contou o que ocorre na aldeia, no Mundo e tanto no seu tempo, quanto no atual. Contou o que acontece com a maioria. Contou o que acontece quando a doença é empecilho ao lazer e à paz da família; quando as dores e os gritos do paciente impede-lhes o sono; quando a sua alimentação, a sua medicação e a sua higiene aumentam o trabalho; quando a sua demora em morrer retarda os planos com a herança; quando a sua degeneração física causa asco e a mental causa raiva e impaciência. Contou, enfim, o que são os homens.
 
Um texto esplêndido e uma leitura essencial. Um clássico!


Resenha feita a partir da Edição - "Biblioteca da Folha", Editora "Ediouro", com tradução de
Marques Rebelo.

Produção e divulgação de YARA MONTENEGRO, assessoria de RP, desde Ouro Preto, MG, no Verão de 2014

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