Tolstoi (1828 – 1910) nasceu no seio de uma rica família aristocrática e graças a isso desfrutou até a metade da vida de uma confortável e luxuosa condição de existência. Porém, após ter-se casado com uma mulher quinze anos mais jovem e ter sido pai de dez filhos, sofreu uma completa reviravolta em sua personalidade e tornou-se macambúzio, soturno e consciente das tristes condições em que viviam os pobres de sua pátria. No desenvolvimento dessa transformação vieram o divórcio, o recolhimento em sua propriedade, o afastamento da vida social e a leitura compulsiva dos grandes romancistas, especialmente Cervantes e Victor Hugo. Na sequência, chegaram o misticismo, o abandono das riquezas e o inicio efetivo da sua produção literária cujo mote principal focalizava os aspectos humanos e sociais. Seus textos retratavam aquilo que ele via, já que passou a visitar as áreas carentes da cidade e a manter um estreito convívio com as pessoas do povo. E foram essas aproximações e experiências que embasaram os enredos de obras como “Ana Karenina”, "Guerra de Paz" e desta, que, a exemplo das outras, mostram a crua realidade de uma sociedade injusta, egocêntrica, hedonista e dissoluta, embora, em paralelo, sempre com o contraponto de figuras nobres e de valores elevados.
Isto colocado,
passemos à resenha de “A Morte de Ivan Ilitch”:
Se tu queres cantar o Mundo, cantes a tua
aldeia...
A sentença acima
se tornou icônica e pode perfeitamente ser usada no presente caso, bastando
substituirmos a noção de espaço pela noção de tempo, pois, com efeito, os fatos
ali narrados e ocorridos em c. de 1800 são tão iguais aos que ocorrem nos dias
atuais, que não se pode observar a menor mudança no comportamento humano. Tanto
quanto naquela época, o que hoje impera é o interesse próprio e egoísta, ainda
que mal disfarçado e apenas para se atender às conveniências sociais.
O texto começa
com a conversa descontraída de três servidores da Justiça que debatem assuntos
banais de trabalho de carreira, tais como transferências, promoções, aumentos
de salários etc. A conversa segue descontraída até que chega a noticia da morte
de um dos juízes e automaticamente cada um dos presentes começa a imaginar o
que aquilo pode lhe render de beneficio, em termos de promoções,
transferências, aumentos de salários etc., além de sentirem o alivio pela foice
da morte ter atingido a outro e não a ele próprio. E tais pensamentos, convenientemente
disfarçados por hipócrita comiseração, também povoam as mentes de PIOTR
IVANOVITCH e FIÓDOR VASSILIEVITCH, cuja proximidade com o morto era mais
estreita e exatamente por isso o primeiro sente-se na obrigação de velar o
juiz. Assim, sacrifica o repouso costumeiro após o jantar e dirige-se até a
residência do falecido. Afinal, para ele o sacrifício pode ser compensador,
pois a vaga que se abrirá com a morte do juiz, poderá ajudá-lo a auxiliar seu cunhado,
funcionário inferior em uma estância sem importância, e com isso livrar-se da
cobrança que a sua esposa e a família dela lhe fazem. Movido, então, por esses
interesses, hipocritamente revestidos de solidariedade e piedade, dirige-se à
casa do amigo extinto e lá, em primeiro lugar, encontra-se com outro amigo
comum, SCHWARZ, que demonstrando completa indiferença com o ocorrido, não perde
a oportunidade fazer piadas e confirmar que o esperam para o carteado de
costume. Em seguida, finge um grande devotamento religioso e a custo consegue
disfarçar o asco que sente ao avistar o cadáver. Ainda chocado com o cheiro do
cadáver, com a sua aparência e com o horror da cena, sente-se reconfortado
quando a viúva pede-lhe que a acompanhe, pois ela precisa conversar em
particular um “assunto de extrema gravidade”. Ele a segue e logo percebe que as
lágrimas que ela derrama são falsas e que o que lhe interessa de fato é saber o
quanto ela pode exigir de pensão do Governo. PIOTR também percebe que ela já
fez extensas pesquisas a respeito e que conhece mais do assunto do que ele
mesmo e então responde que não há modo de fazer nada e que ela receberá apenas
o padrão, mas ela fingindo ignorância sugere algum tipo de falcatrua, com o que
ele não concorda e aproveitando-se do fato de que os serviços funerários estão
prestes a começar ele se desembaraça da mesma e segue lépido e feliz ao
encontro do jogo de baralho que lhe aguarda.
A outra metade
da obra narra a vida de IVAN ILITCH, cuja principal característica foi a
retidão profissional, familiar e social. Um indivíduo que primou em levar a
vida cumprindo religiosamente todas as regras e leis, dispensando-se de
aventuras e de bruscas mudanças. Uma vida recompensada por pequenas alegrias no
trabalho, na aquisição e decoração de uma nova casa, vitórias no carteado e
outras alegrias que são típicas de espíritos pequenos que desse modo compensam
as frustrações advindas do casamento fracassado, da insuficiência do dinheiro
que nunca é bastante para ostentar junto aos parentes e amigos mais pobres, da
inquietude pressentida etc. E dentro dessa rotina prossegue-lhe a vida até que
uma dor inesperada anuncia a chegada da doença que, ao cabo, o matará. Com a
chegada da enfermidade, ele passa a pesquisar sofregamente os aspectos da mesma
e devora todos os textos médicos buscando motivos de esperanças e tentando
embasar a sua nova condição de enfermo e, portanto, “digno” e merecedor de
atenções especiais, principalmente dos familiares; mas, ao contrário do que
pretendia, logo ele começa a sentir o asco e o incômodo que causa em sua esposa
e em sua filha, a despeito da tentativa que ambas fazem para parecerem atenciosas,
amorosas e dedicadas. Ressente-se da indiferença das mesmas e, principalmente,
do fato de sua esposa debitar-lhe a culpa por estar doente, não perdendo
ocasião de falar para qualquer um que a sua situação é decorrente de sua
indisciplina em não tomar os remédios como deveria; ou, então, que ele está
nesse estado por ter comido aquele alimento, ou por ter usado aquela roupa e
coisas similares. E o ressentimento em breve transforma-se em ódio e num
crescendo de tensão, TOLSTOI relata as minúcias do cotidiano em que os mais
diversos momentos causam dor, sofrimento, solidão e mais ódio, mais
ressentimento, mais asco e mais vontade de que “ele descanse” e “descanse a
pobre família” que por ter que suportá-lo vê-se privada de sua rotina.
É um texto duro,
até cruel. E, pior, verdadeiro. É claro que existem exceções e há enfermidades
e mortes que são suavizadas pelos cuidados e pelo amor que o paciente recebe,
mas infelizmente são casos excepcionais e que ocorrem, geralmente, quanto a
doença é breve e a morte não tarda, evitando que o trabalho e o incômodo dado
pelo paciente atrapalhe a rotina daqueles que lhes são próximos. Mas TOLSTOI
contou o que ocorre na aldeia, no Mundo e
tanto no seu tempo, quanto no atual. Contou o que acontece com a maioria.
Contou o que acontece quando a doença é empecilho ao lazer e à paz da família;
quando as dores e os gritos do paciente impede-lhes o sono; quando a sua
alimentação, a sua medicação e a sua higiene aumentam o trabalho; quando a sua
demora em morrer retarda os planos com a herança; quando a sua degeneração
física causa asco e a mental causa raiva e impaciência. Contou, enfim, o que
são os homens.
Um texto esplêndido e uma leitura essencial. Um clássico!
Resenha feita a partir da Edição - "Biblioteca da Folha", Editora "Ediouro", com tradução de
Marques Rebelo.
Produção e divulgação de YARA MONTENEGRO, assessoria de RP, desde Ouro Preto, MG, no Verão de 2014
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