sábado, 28 de fevereiro de 2015

Óperas, guia para iniciantes. O BARBEIRO DE SEVILHA, Resenhas. Final


Histórico
A crítica à Sociedade foi uma vertente muito ativa na literatura dos séculos XVII e XVIII, num reflexo direto das novas ideias Iluministas que escancararam as injustas condições em que vivia o povo, em contraponto aos privilégios gozados pela aristocracia, pelo clero e por outras camadas privilegiadas.
E dentre vários autores que se especializaram nesse segmento brilhou o talento de Beaumarchais (Pierre-Augustin Caronde, 1732-1799, França) que além de outros reconhecimentos, teve duas de suas três sátiras de costumes transformadas em óperas por compositores de escol como Paisiello (Giovanni Battista, 1740-1816, Itália atual) e Rossini que fizeram a primeira, “O Barbeiro de Sevilha”; e Mozart que se encarregou da segunda, “As Bodas de Fígaro”, uma continuação da primeira.
A obra de Beaumarchais foi publicada pela primeira vez em 1775 e já no ano seguinte, 1776, foi levada à cena lírica por Paisiello que à época desfrutava de muito prestígio, embora hoje esteja semiesquecido, tal qual a sua versão.
Porém, quando Rossini, em 1816, pretendeu fazer nova Ópera sobre a comédia de Fígaro, foi naquela primeira versão que ele buscou o suporte de que necessitava para compor uma das óperas que mais se destacaram em todos os tempos, como bem se vê nos dias atuais pelo arrebatamento que ainda causa em críticos especializados, em simples diletantes e, até, no público leigo.
O processo de recriação da peça de Paisiello não foi uma tarefa fácil para Rossini em razão do prestígio daquele compositor e das inevitáveis cobranças e comparações que o seu trabalho suscitava.
Todavia, graças a sua genialidade, ele concluiu parcialmente o trabalho em apenas uma quinzena. A exiguidade de tempo não foi uma opção sua, devendo-se mais ao curto prazo que lhe foi concedido pelo Duque Cesarini que contava estrear duas* peças no Carnaval daquele ano, previsto para meados de fevereiro.
E a pressa no processo deu azo para a ocorrência de vários acontecimentos singulares e até hilários, como, por exemplo:
1)      Embora trabalhasse arduamente, Rossini não conseguiu apresentar para a noite de estreia a “Abertura” da Ópera e usou, então, a “Abertura” de outra obra, “Elizabeth, Rainha da Inglaterra”, que havia sido encenada anos antes, com pouca repercussão e que estava esquecida na ocasião. O fato hilário foi que vários autoproclamados “entendidos”, “eruditos”, “especialistas” etc. viram (sic) naquela Abertura postiça, vários elementos e personagens de “O Barbeiro”. Note-se, pois, que a prepotente jactância por presumida erudição não é um fenômeno dos dias de hoje, sendo um pecado tão antigo, quanto à história do homem...
2)      E as “trocas”, os “empréstimos” não se restringiram a esse fato, pois algumas Árias de outras obras também foram usadas, como, por exemplo, “Ecco Ridente in Ciello” que originalmente pertence a “Aureliano em Palmira” e a famosa “La Calunnia” que compõe o acervo de “Sigismondo”...
3)      Ademais a ária cantada na cena “Lição de Música” acabou tendo a sua partitura extraviada e como Rossini recusou-se a escrever outra, até hoje os Sopranos são liberados para executarem a ária que lhes agradar, com a única exigência de que tenha alguma relação com o contexto.
Improvisações que acrescentaram um sabor mais picante ao prazer de se escutar a obra-prima de um jovem de vinte e quatro anos de idade que soube, como raríssimos, dar ao Mundo um de seus mais belos momentos.
Nota do Autor – A primeira obra para o evento foi “Torvaldo e Doliska” que atualmente está esquecida; sendo a segunda a inesquecível “O Barbeiro de Sevilha”, que desde a sua estreia no Teatro Argentina, em Roma, conquistou a admiração geral.
São Paulo, 28 de fevereiro de 2015.
Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, Verão de 2015.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Óperas, guia para iniciantes. O BARBEIRO DE SEVILHA, resenhas. Parte II


Continuação...
Nesse ínterim, chamados por Bartolo, adentra a cena um grupo de soldados para expulsar o oficial bêbado que insiste impertinentemente em se alojar na residência; mas, disfarçadamente, Almaviva apresenta a sua condição de nobre ao Comandante do pelotão que, por isso, relaxa a sua prisão.
Bartolo protesta, o Conde retruca e a soldadesca fala descompassadamente. Nesse clima “buffo” encerra-se o primeiro ato.
§§§
Ambientado no mesmo cenário, um sala no casarão do doutor Bartolo, o segundo ato inicia-se com ele aproveitando o silêncio e o vazio da sala para colocar os seus pensamentos em ordem.
Após algumas conjecturas, compreende que a farsa do oficial bêbado tinha alguma relação com Rosina, mas antes que possa tomar alguma medida é surpreendido com batidas à porta.
Ao atendê-la, depara-se com um jovem que se apresenta como Professor de Música substituto que veio fazer às vezes de Don Basílio, acometido de grave enfermidade. Trata-se, claro, de nova investida de Almaviva que usa esse novo disfarce em atenção à sugestão de Fígaro.
A princípio, Bartolo não lhe dá crédito, mas quando o jovem diz que acabou de lecionar para o Conde e como confirmação mostra uma carta que o mesmo teria recebido de uma moça (em verdade a carta é de Rosina), o velho tutor logo vê uma “prova” da volubilidade do “conde namorador” e prevê que a “comprovação da falha de caráter” de seu rival será utilíssima para o plano que ele e Don Basílio arquitetam para desmoralizá-lo, forçando-o a mudar-se de cidade e a desistir do casamento com Rosina.
Ávido em apossar-se daquela “prova”, o tutor nem questiona o falso professor sobre o fato de ele ter furtado a missiva. Alegre, recebe-o e tem início uma das cenas mais célebres do gênero operístico: a famosa “lição de música”, onde Rosina canta a ária da lição, Almaviva não lhe poupa elogios e galanteios, enquanto Bartolo canta e dança ridiculamente uma música que foi popular na época de sua juventude.
A jovem não tem dificuldades em reconhecer no falso mestre o seu amado Conde e ouve, envaidecida, os elogios à sua voz e à sua beleza, enquanto o seu tutor continua com a sua hilária expansão de alegria.
Nesse momento chega à cena o barbeiro Fígaro para cuidar das barbas de Bartolo, mas ele o dispensa, pois ainda está envolvido em sua comemoração e disposto a atentar para tudo que acontecer no ensaio. Para lhe pressionar, Fígaro diz que se não for naquela hora, ele não poderá cuidar de sua aparência por longos dias em razão de seus muitos compromissos “só Deus sabe o quanto estou ocupado...”.
Sem alternativa e a contragosto, Bartolo cede e entrega ao barbeiro o molho de chaves para que ele retire no armário os apetrechos necessários. Justamente o que Fígaro queria, pois será a oportunidade de surrupiar a chave do balcão para que posteriormente ele e o Conde tenham acesso a Rosina.
De volta ao salão ele inicia o barbear, mas espalha tanta espuma na face do tutor que lhe impede de ver que Almaviva e Rosina ultimam, junto ao cravo, os planos para fugirem nesse mesmo dia.
Porém, a situação fica tensa quando inesperadamente Don Basílio surge em cena, vendendo saúde.
Novamente o espírito “buffo” da peça se mostra explícito quando todos o rodeiam e se mostram aterrorizados “por seu tétrico aspecto” e pela “horrível doença que o está consumindo”. Pasmo, Basílio aceita a sugestão e começa a sentir-se mal e não se faz de rogado ao aceitar o generoso suborno que o Conde lhe dá para que volte à sua casa e se recolha ao leito até recobrar a “saúde”.
Fígaro volta às barbas de Bartolo que em meio ao tumulto destampou as orelhas e com isso consegue ouvir as confidencias dos amantes. Indignado, ele se levanta e protesta vigorosamente, denunciando a todos – inclusive Fígaro – como pérfidos traidores. Já não lhe restam dúvidas da participação do barbeiro nem da iminência da fuga de sua tutelada.
Todavia, as suas invectivas só causam risos e demonstrações de desprezo nos outros, que saem juntos da sala.
No auge da irritação, ele chama pela ama Berta e lhe ordena extrema vigilância para que ninguém entre na casa durante a sua ausência. Em seguida sai para exigir que Don Basílio apresse os papeis e faça o seu casamento para aquela noite, custe o que custar.
Sozinha, Berta se põe a cantar uma melodia que ironiza a pressa em casar que assaltou o velho e moça, ainda que os motivos de ambos sejam totalmente diferentes.
Quando retorna, Bartolo mostra a Rosina a carta endereçada a Almaviva e ela, por desconhecer que Lindoro e o Conde são a mesma pessoa, julga-se vitima de uma traição. Magoada, decide abandonar o amado e desposar o velho tutor.
Nesse trecho a orquestra executa uma peça que sugere com maestria uma violenta tempestade noturna, numa magnífica alusão aos tumultos que invadem a alma da jovem.
Quando a música termina, dois vultos assomam ao balcão: são Lindoro e Fígaro que vem executar o plano de fuga; porém, Rosina recusa-se a segui-los, ainda ressentida com a suposta traição. Apenas quando Almaviva esclarece a questão dos disfarces é que ela decide continuar a fuga. Fígaro os apressa, mas um novo empecilho surge quando a escada que os levaria do balcão ao solo é retirada por alguém, impedindo-lhes escapar.
Nesse momento chega o tabelião Don Basílio e como eles estão cientes de sua venalidade logo o cercam propondo-lhe, mediante alto suborno, que ele altere os nomes do noivo nos papeis de casamento. Novamente ele não titubeia em praticar o ilícito e as alterações são feitas.
Nisso chega Bartolo e já encontra o matrimônio sacramentado e oficializado. Tomado de ira, num primeiro momento quase sofre um colapso. Porém, com o correr dos minutos e graças às ponderações que os outros lhe fazem acerca da fortuna do Conde e do quanto isso pode lhe ser benéfico, ele se acalma e se junta aos demais nas comemorações jubilosas que encerram o espetáculo.
Nota do Autor* - Cavatina - ária curta, sem repetição nem segunda parte.
Nota do Autor** – “Largo Al Factótum” ou “Abra Caminho para o Factótum” é uma ária que se tornou um ícone de popularidade no meio operístico. O termo “Factótum” vem do latim e significa um “servente geral” ou, literalmente, um “faz tudo”.

Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, Verão de 2015.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Óperas, guia para iniciantes - O BARBEIRO DE SEVILHA - Resenhas, parte I


Barbeiro de Sevilha

AutoriaRossini (Giochino Antonio – 1792-1868 – Itália)
Libreto – Cesare Sterbini

Personagens:

Almaviva, o Conde – interpretado por um tenor.
Bartolo, Doutor – médico e tutor de Rosina. Interpretado por um Baixo.
Rosina – protagonista feminina. Interpretada por uma Soprano.
Fígaro, Barbeiro e “faz tudo” – interpretado por um Barítono.
Don Basílio – professor de música. Interpretado por um Baixo.
Fiorello – empregado do Conde Almaviva. Interpretado por um Baixo.
Berta – empregada de Don Bartolo. Interpretado por uma Soprano.
Ambrógio – servidor de Don Bartolo. Interpretado por um Baixo.

Época e local

Sevilha, Espanha, século XVIII.
Enredo

O primeiro ato dessa “Ópera Buffa” tem como cenário uma rua de Sevilha onde o jovem e galante Conde de Almaviva prepara uma serenata em homenagem a uma linda jovem por quem se apaixonou após tê-la avistado em algumas ocasiões.
Junto dele estão Fiorello, seu criado, e os músicos que se esmeram na execução das melodias, como, por exemplo, na ária para Tenores e guitarra, “Ecco Ridenti in Cielo”.
Além dessa outras músicas são tocadas e, então, o espectador assiste ao primeiro momento “buffo” da Ópera quando os músicos se recusam a parar a serenata, inoportunamente agradecidos pela excelente remuneração que o Conde lhes oferece. E, realmente, o fim da audição só acontece após certo tempo, quando fica claro para todos que a jovem não virá à janela ou ao balcão.
Enfim sozinho Almaviva se posta sob a marquise de sua amada até que um rumor de passos obriga-o a se esconder; porém, o temor é injustificado, pois quem se aproxima é Fígaro, com quem já havia travado relações noutra localidade.
Loquaz como de hábito, Fígaro entoa a popularíssima cavatina* “Largo Al Factótum** (Fígaro aqui... Fígaro ali... Fígaro lá...)”, com a qual conta que além de ser o barbeiro da cidade é, também, um verdadeiro “faz tudo” em Sevilha, graças às suas inúmeras habilidades e ao seu conhecimento quase total da cidade e de seus habitantes.
Após essa entusiasmada apresentação, ele e o Conde começam a traçar um plano para que Almaviva consiga adentrar o casarão e cortejar a doce Rosina. Fígaro lhe conta que a moça é discípula e não filha do velho doutor Bartolo e também fala sobre as qualidades, os sonhos e os desejos da mesma. Em resposta, Almaviva diz-lhe que adotará o pseudônimo de “Lindoro” e que ocultará, num primeiro momento, a sua posição de nobreza e a sua fortuna, pois almeja ser amado apenas por si mesmo e não por suas posses.
Enquanto ambos arquitetam o plano, Rosina e o doutor Bartolo surgem no balcão. A jovem traz um papel semioculto na mão que logo desperta o ciúme e a ira do velho, mas ela, ardilosamente, diz-lhe tratar-se apenas do enredo de uma Ópera muito popular chamada de “Precaução inútil (sic)”.
Sem atentar para a ironia da moça, ele ordena-lhe que se recolha e avisa aos criados para que proíbam a entrada de qualquer pessoa na casa, com exceção de Don Basílio, o professor de música da jovem. Em seguida, Bartolo sai apressado rumo ao Tabelião para pedir urgência nos trâmites dos papeis de seu casamento com a tutelada.
Antes de lhe obedecer, Rosina deixou cair o papel que segurava, no qual convida o romântico seresteiro a visitar-lhe, avisando-o da saída de seu tutor.
Através da ária “Se Il Mio Nome”, Almaviva aceita o convite e já usando o falso nome de Lindoro, apresenta-se como um homem pobre, incapaz de lhe proporcionar uma vida de luxo e riqueza. A jovem começa a responder-lhe falando da iminência de seu casamento, mas é bruscamente interrompida.
Aflito, ele pede auxílio a Fígaro, pois entende a urgência de se impedir aquele nefasto arranjo matrimonial. O “Factótum” lembra-se, então, da chegada de um batalhão à cidade e sugere que Almaviva se faça passar por um oficial e que, nessa posição, busque alojamento na casa, conforme a praxe da época.
O dueto relativo a esse estratagema encerra a primeira cena.
A segunda cena desse primeiro ato é ambientada em uma das salas do casarão onde Rosina entoa a ária “Una Voce Poco Fá”, que conta uma história símile a que está vivendo: uma voz que há pouco escutou, já toca o seu coração. Em seguida a música passa a fazer menção ao seu tutor e às suas intenções e ela se despe de cerimônias e se autodefine como alguém gentil, doce e pacífica, mas, também, aguerrida em defesa de seus interesses e de suas vontades. Uma víbora impiedosa se lhe forem contrariados os sonhos e desejos.
Finda a ária, ela se retira do recinto que, então, passa a ser ocupado pelo velho Bartolo e por Don Basílio, que além de professor de música, também é o Agente Matrimonial que está cuidando do casamento. O ancião explica-lhe que tem muita pressa em realizar o casamento, pois teme que sua tutelada se apaixone por um de seus vários pretendentes.
E o casamenteiro lembra, a propósito, que um desses admiradores é o próprio Conde de Almaviva, a quem urge afastar, já que ele é um concorrente de muito peso.
Concorde com o risco, Bartolo pede-lhe auxílio para afastar esse risco e o professor entoa a célebre ária “La Calunnia” que sugere a maneira mais eficaz de afastar uma pessoa: a calúnia, a intriga, a maledicência. Será preciso, segundo seus pérfidos argumentos, lançar calúnias sobre o nobre pretendente até que ele se sinta acuado e não lhe reste alternativa a não ser mudar-se de localidade, vez que a sua reputação foi jogada na lama. Afinal, ninguém resiste a uma intriga, já que a mesma é como uma brisa suave que se insinua sorrateira entre o populacho e vai se avolumando com os acréscimos que as pessoas lhe colocam, até que, no fim, torna-se um tufão que a tudo arrasa. Ao pobre caluniado, resta apenas o desprezo e o ódio de todos e, em consequência, a vontade de morrer.
Essa ária, além da beleza superior, também se notabilizou por ser extremamente descritiva do comportamento humano. Para muitos, é uma variante do “Realismo” que, então, vicejava na literatura da época.
Ao fim da mesma, os dois idosos se retiram e a cena fica vazia por alguns instantes. Na sequência, Rosina recebe a visita de Fígaro que se diz primo de Lindoro e lhe pede que escreva um bilhete confirmando o seu interesse no rapaz. Ela finge hesitar, mas, na verdade, ela já havia feito tal bilhete e o mesmo é de tal modo explicito que Fígaro deixa de ter qualquer dúvida em relação aos seus sentimentos. Ela está pronta para o amor e não há nada mais que ele possa ensinar-lhe.
Nesse entretempo, Bartolo regressa a casa e ao perceber a falta de uma folha de papel adivinha que Rosina usou-a e se põe a pressioná-la para que ela confesse a quem escreveu. Ela resiste às suas investidas e ele se irrita com as suas negaças, censurando-a asperamente, através de uma ária extremamente vigorosa.
Ela não responde aos seus insultos e abandona a cena que, em seguida, é ocupada por Almaviva, disfarçado em um oficial bêbado que insiste em se hospedar ali, apesar da tenaz resistência que lhe opõe o velho Bartolo. Uma pantomima que o Conde sustenta por algum tempo, enquanto busca meios para entregar um novo bilhete para sua amada...

Continua...

Nota do Autor* - Cavatina - ária curta, sem repetição nem segunda parte.

Nota do Autor** – “Largo Al Factótum” ou “Abra Caminho para o Factótum” é uma ária que se tornou um ícone de popularidade no meio operístico. O termo “Factótum” vem do latim e significa um “servente geral” ou, literalmente, um “faz tudo”.


Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, Verão de 2015.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Ana e a Bala Perdida


Perdida,
a bala te fez mãe desvairada
que uiva de dor
nas esquinas desse tempo
que não devia.

A preta mão pequena,
pouca é, para conter a vida que foge
enquanto fundamentalistas babam por vingança
e acadêmicos suspiram por compreensão.

O pouco vermelho sangue
já não pode suster teus sonhos inúteis
de que, depois, outro Rio haveria.

Caído, o corpo pobre
berra em silêncio
o fracasso que somos.
Os muros que erguemos
não protegeram
a menina que ousou existir.


Para ANA CLARA, cinco anos, vitima de "Bala Perdida" em Belfort Roxo, Baixada Fluminense.


Letré, l´art et la Culture, Rio de Janeiro, verão de 2015.


 

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Óperas, guia para iniciantes - CARMEN - Resenhas



Autoria – Georges Bizet (Alexandre Cesar Leopold – 1838-1875 – França)
Libretto – Henri Meilhac e Ludovic Halévy

Personagens

Carmencigana, protagonista. Interpretada por uma Mezzo Soprano.
Don José – Cabo dos “Dragões de Alcalá”  e um dos apaixonados por Carmen. Interpretado por um Tenor.
Escamillo – toureiro, amante e amado por Carmen. Interpretado por um Barítono.
Micaela – jovem camponesa e noiva de Don José. Interpretada por uma Soprano.
Frasquita – uma cigana, companheira de Carmen. Interpretada por uma Mezzo Soprano.
Mercedes – idem.
Zúniga – Tenente dos “Dragões de Alcalá”. Interessado em Carmen e rival de Don José. Interpretado por um Baixo.
Morales – Sargento dos “Dragões de Alcalá”. Interpretado por um Barítono.
Dancario – malfeitor, companheiro de Carmen. Interpretado por um Tenor.
Remendado – idem, interpretado por um Barítono.

Época e Local

Sevilha, Espanha, século XIX.

Enredo

Talvez não seja exagerado afirmar que essa Ópera seja a mais popular entre todas. Sua temática, sua ambientação e o vigor de suas Árias e Coros exercem um enorme fascínio entre as pessoas, quer sejam diletantes do gênero ou apenas ouvintes ocasionais.
O seu primeiro ato é passado em uma praça da cidade de Sevilha, por volta do meio-dia, quando, rotineiramente, dois acontecimentos aumentam o movimento de transeuntes.
O primeiro acontecimento é a troca de guarda no Quartel dos “Dragões de Alcalá”, situado em um dos cantos da praça; e o segundo fato, no lado oposto, é a saída para o almoço de um grupo de operárias de uma fábrica de cigarros. São eventos diários e corriqueiros que animam o ambiente.
Nesse dia, a jovem camponesa Micaela aguarda a saída de seu noivo, o Cabo Don José; porém, o encontro entre ambos é parcialmente triste devido a noticia que ele recebe acerca da doença que acomete a sua mãe, que clama por sua presença.
Contudo, apesar disso, acontecem alguns momentos carinhosos entre ambos ao som de festivas marchas militares, acompanhadas por garotos extasiados que são representados por figurantes do elenco.
Findas as marchas marciais, a calma volta a reinar no local, mas logo é quebrada em virtude de uma briga entre uma cigana, Carmen, e uma operária, que acaba sendo ferida.
Agressiva, sensual, bela e independente, Carmen encarna o protótipo da nômade aventureira e da “famme fatale”, capaz de fazer qualquer homem apaixonar-se perdidamente. Contudo, seus encantos não bastam para livrá-la das acusações e o Tenente Zúniga vê-se obrigado a ordenar que o Cabo Don José a prenda.
Todavia, enfeitiçado por seus encantos, Don José alivia os nós e laços que a prendem, sob o pretexto de que a estariam machucando. Em seguida, concorda em fingir que ela o derruba e ludibria, deixando-a escapar para os esconderijos nas montanhas, junto com os seus companheiros.
Um erro gravíssimo, cometido com a perspectiva de que ela retribua a ajuda tornando-se sua. Mas antes que tal recompensa possa acontecer, a falha lhe custa uma temporada na prisão do Quartel.

§§§

O segundo ato é encenado na “Taberna de Lillas Pástia (taberneiro, personagem fictícia)” onde Carmen e seus amigos malfeitores bebem e se divertem enquanto ela aguarda a chegada do Cabo Don José para, enfim, recompensá-lo.
Nesse momento entra em cena o famoso toureiro Escamillo que não demora a arengar sobre os riscos de seu oficio através da célebre “Canção do Toureador”, que é acompanhada por todos.
Imediatamente Carmen sente-se fascinada por Escamillo, que, também, não esconde o seu desejo por ela. Contudo ela se resguarda e espera por Don José que, após algum tempo, surge em cena, sendo, então, convidado a seguir com ela e com a trupe de seus amigos em suas andanças e aventuras.
A princípio ele hesita em abandonar a sua vida militar, a sua noiva e a sua mãe, mas quando o Tenente Zúniga adentra o recinto e o expulsa rispidamente, deixando-lhe claro que também deseja a sua amada, ele não se contém e após desafiar o superior para um duelo, fere-o com gravidade. Esse novo delito não lhe deixa alternativa que não seja seguir Carmen para os esconderijos nas montanhas.
Assim, junto dela, de Frasquita, de Mercedes, de Dancario e de Remendado, embrenha-se em um novo mundo.

§§§

O terceiro ato é encenado no esconderijo dos ciganos, onde Don José sofre a saudade de sua família, de seus amigos, de sua noiva; e sofre o arrependimento por ter abandonado o Quartel. É grande a sua dor e ele já nem tenta escondê-la de Carmen, que, em contrapartida, sente uma aversão cada vez maior por ele. A atração que ela havia sentido pelo toureiro não lhe abandonara completamente e ressurge a todo instante.
Em certo momento, ela e as amigas ciganas “leem a sorte nas cartas”, as quais só profetizam maus presságios para ela e para Don José, indicando, inclusive, a proximidade da morte.
Findas as “leituras”, a cena se esvazia e em seguida adentra o toureador Escamillo que veio em busca de sua desejada Carmen. Sua súbita aparição provoca o ciúme e a ira de Don José e ambos se engalfinham em uma luta feroz, que só a muito custo é apartada pelos demais e, também, pela chegada da jovem Micaela com a triste noticia do agravamento da doença da mãe de Don José.
Ainda transido de ódio, ele se prepara para partir em visita a mãe, mas antes vocifera que voltará em breve e que espera que Carmen o aguarde, pois irá matá-la caso isso não aconteça.
Mas tais ameaças não amedrontam a cigana e não surtem o efeito que ele esperava, pois o interesse dela pelo toureador é mais forte que qualquer temor. Ademais, se ela já lhe tinha aversão, essa só aumentou, tornando-se ódio verdadeiro.
A segunda cena desse terceiro ato acontece no pátio fronteiriço à Arena das Touradas. O clima festivo impera enquanto se espera o início da tourada. Pouco depois, em atitude triunfal, chegam num carro aberto Escamillo e Carmen. Logo depois, começa o duelo entre o homem e animal.
Nesse ínterim Don José reaparece à procura de sua amada.
O encontro entre ambos é marcado pelas súplicas dele e pelo desprezo dela, que reafirma veementemente o asco que ele lhe causa. Por fim, para lhe causar a máxima humilhação, ela atira no lixo um anel que ele lhe presenteara. A violência do gesto, a dor da rejeição, do orgulho ferido e a vergonha pelo menosprezo sofrido cegam o amante, que, então, investe e a golpeia fatalmente.
Enquanto isso, Escamillo obtém novo triunfo na Arena e chega carregado em triunfo pela multidão em delírio, mas a euforia logo é substituída pelo horror quando se vê Don José entregando-se à “justiça divina”, junto ao corpo sem vida de Carmen.

Histórico

As personagens principais da Ópera, Carmen e Don José, foram foram criados originalmente pelo escritor Prosper Mérimée (França, 1803-1870) que em um longo romance contou a história de Don José Lizarrabengoa, que após se envolver em um sangrento episódio em sua terra natal, no País Basco, reaparece na região da Andaluzia, no posto de oficial dos “Dragões de Alcalá” e com o nome alterado para Don José Navarro. Sediado em Sevilha, ele conhece a cigana Carmen, sendo, então, conduzido novamente para o caminho da violência e da marginalidade que resulta na tragédia final.
Os libretistas Halévy e Meilhac ao fazerem a adaptação descartaram os fatos precedentes ao encontro com a cigana Carmen e com isso rebaixaram a personagem de Don José para um plano inferior, já que todos os holofotes iluminam a voluptuosa beleza exótica da mulher que tantas paixões despertou.
Hoje, seria difícil imaginar a obra sem essas alterações, pois de tal forma ela foi acolhida pela crítica e pelo grande público que se tem a impressão de que a sua forma foi sempre essa, sem vínculos com trabalhos anteriores.
Carmen, tornou-se, sem dúvidas, a embaixatriz do gênero, sendo, geralmente, a porta de entrada para todos que desejam aventurar-se pelo universo da “Grande Arte” ou da “Arte sem limites”.

Anápolis, 19 de fevereiro de 2015.

Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, Verão de 2015.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A Quaresmeira


A fotografia é implacável:
nossos sonhos envelheceram.
Brancos cabelos,
brancos esquecimentos.

Mas a quaresmeira
insiste na florada,
como se ainda houvesse
Lua na calçada.

Tempo de leve poesia.
Dessas que se ouvia,
logo após a melodia.

Tempos de leve soneto.
Desses que se fazia,
na ante-sala da nostalgia.


Para minha doce e amada Olga Vince Barreto.


Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, verão de 2015.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Óperas, guia para iniciantes - AÍDA - Resenha.



Autoria – Verdi (Giuseppe Fortunino Francesco – 1813-1901 – Itália)
Libreto – Antonio Gislanzoni

Personagens

Aída – princesa etíope, feita escrava pelos egípcios. Interpretada por uma Soprano

Amnéris – filha do rei egípcio. Interpretada por uma Mezzo Soprano.

Radamés – comandantes das forças egípcias. Interpretado por um Tenor.

Amonasro – rei da Etiópia e pai de Aída. Interpretado por um Barítono.

Ramphis – Grão Sacerdote egípcio da deusa Isis. Interpretado por um Baixo Barítono.

Faraó – interpretado por um Baixo Barítono.

Mensageiro – interpretado por um Tenor.

Época e Local

Egito à época dos faraós.

Enredo

Ao se abrirem as cortinas para o primeiro ato, o espectador sente o primeiro deslumbramento com a grandiosidade do cenário que retrata o palácio imperial, na cidade de Mênfis, no Egito.

Em seguida percebe a enorme tensão existente, devida ao conflito entre o Egito e a Etiópia, que faz o fundo para a conversa entre duas personagens principais, o general Radamés e o grão sacerdote Ramphais, que, a certa altura, diz ter tido uma revelação da deusa Isis indicativa de que ele, Radamés, deveria ser o comandante das forças egípcias na guerra; e que, por isso, o recomendaria ao Faraó.

Embora procure manter a fria postura marcial, o experiente militar sente-se invadido por ondas de orgulho e pela expectativa de que o seu eventual triunfo seja recompensado com a mão de sua amada, a escrava etíope Aída, que serve como dama de companhia da princesa Amnéris.

E os seus sentimentos e as suas projeções esperançosas avolumam-se a tal ponto que ele não consegue retê-los e os libera entoando emocionado a belíssima ária, “Celeste Aída”, na qual expõe o seu amor pela bela e desejada mulher.

Enlevado, canta a sua felicidade e não nota que é observado pela princesa Amnéris que percebe, então, que o amor que lhe dedica não é correspondido.

Enciumada, triste e furiosa ela compreende que ele ama a sua escrava, sendo por ela é correspondido. Melancólica, deixa-se amofinar enquanto Aída passa a temer o agravamento da guerra contra o seu país.

Nesse ponto, a cena é tomada por novas personagens. Entram o Faraó e o seu séquito e a nomeação de Radamés, como comandante chefe, é proclamada oficialmente. Belicosos sentimentos ufanistas explodem e se vive o paroxismo da tendência guerreira do homem.

Até Aída, que num primeiro momento sentira-se horrorizada ante a perspectiva de que o conflito poderia ocasionar a morte de seu pai e de seus irmãos – o rei e os príncipes etíopes– logo compreende ser impossível deixar de amar o “seu” general e, apesar de sentir-se confusamente arrependida, entoa a vibrante ária “Ritorna Vincitor (Volte vitorioso)”, expressando o desejo de que o amado Radamés subjugue a sua pátria e o seu próprio sangue.

Contudo, passada a euforia inicial, a sua alma volta a oscilar entre essa vontade e o remorso por trair aos seus, condenando-os à escravidão e até à morte. Um tenebroso conflito se instala em seu coração e ela busca o perdão dos deuses ao entoar a melancólica “Numi Pietá (Piedade deuses, aproximadamente)”.

Na sequência, tem início a segunda parte desse primeiro ato.
Agora, o magnífico cenário reproduz o “Templo do Vulcão”, também em Mênfis, onde acontece a preparação espiritual de Radamés através dos cânticos das sacerdotisas em louvor ao grande guerreiro e das súplicas para que os deuses o protejam dos perigos do combate. Pouco depois, o grão sacerdote Ramphis e os sacerdotes menores se juntam aos louvores e aos pedidos e todos entoam solenemente um Coro repleto de devoção.
Entrementes, danças rituais são executadas ao pé do altar e Ramphis entrega ao general a espada consagrada que haverá de lhe assegurar o triunfo final. Radamés repete a oração e renova a sua promessa de só retornar com a vitória assegurada.

E nesse ambiente solene, triunfal e guerreiro, termina o primeiro ato.

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O segundo ato inicia-se no cenário que representa os aposentos da princesa Amnéris, onde algumas escravas a consolam entoando cantigas românticas.

Após poucos minutos, ela as dispensa e ordena que apenas Aída permaneça em sua companhia, pois ela pretende confirmar se a etíope ama Radamés efetivamente. Usando de falsidade, diz à escrava que o Egito venceu a luta, mas que o Comandante Chefe tombou em combate.

Aída não consegue esconder a sua comoção e o seu desespero e chora convulsivamente, provocando o ódio da filha do Faraó que, então, já não tem dúvidas de que ela seja uma inimiga a ser humilhada e vencida. Passa, então, a agredir e a humilhar Aída dizendo, entre muitas maldições e ofensas, ser uma insolência a sua pretensão de disputar o amor de um homem com uma princesa como ela, já que ela não passa de uma reles escrava.

Aída sente-se sufocar e num primeiro momento cogita revidar dizendo que também é uma princesa, haja vista ser filha do rei etíope; porém, com muito esforço, controla-se e pede apenas que Amnéris tenha compaixão por sua desdita. Mas a egípcia deixa claro que lhe tem apenas desprezo e ódio.
Um dueto dramático sonoriza a tensa situação até que se escutam os acordes de um hino triunfal anunciando o regresso vitorioso das forças do Egito.

O palco se esvazia, permanecendo apenas Aída que entoa uma triste oração na qual roga que os deuses tenham-lhe piedade.

A segunda cena do ato dois é ambientada na cidade de Tebas e para muitos críticos e apreciadores é a mais espetacular da história da Ópera. Trata-se, nela, da entrada triunfal das forças vitoriosas, numa encenação repleta de suntuosidade, com inúmeros figurantes, engenharias teatrais magníficas, além de vários outros artifícios* que, ao cabo, criam um momento inesquecível para todos que o assistem.
Representa-se o júbilo da grande multidão egípcia, reunida na praça à espera do desfile triunfal de Radamés diante do palanque real. À mis en scéne é acrescida a vigorosa execução de um hino em louvor a deusa Isis e um frenesi contagia inclusive aos espectadores.

Após alguns instantes, soam os clarins e entre flâmulas e bandeiras coloridas, tem início o grande desfile ao som da empolgante “A Grande Marcha”. Sucedem-se os batalhões e as máquinas guerreiras e, depois, as tristes hordas dos etíopes derrotados.

Andrajosos e mutilados carregam o peso de sua derrota e de seu infortúnio, tendo à frente o velho rei Amonasro a quem, com dificuldade, Aída reconhece. Penalizada, ela tenta socorrer-lhe, mas ele pede que ela não revele a sua identidade, pois seria melhor ser considerado apenas como um oficial idoso e não como um símbolo da derrota de sua pátria.

Enquanto isso, Radamés fecha o cortejo ostentando toda a glória dos vencedores. Do Faraó recebe provas de reconhecimento, estima e gratidão, sendo saudado como um verdadeiro herói nacional.
Como recompensa o Imperador lhe concede o direito de pedir qualquer coisa e ele, magnânimo (ou talvez para agradar a amada Aída), pede a alforria dos prisioneiros que fez. O Faraó cumpre o prometido e promove a libertação dos cativos, exceto do velho Amonasro, conforme lhe solicita o Grão Sacerdote que pretende, com isso, guardar um símbolo da grande vitória.

Concomitantemente prosseguem os bailados e as canções. Contagiado pelo clima vitorioso, o Faraó anuncia que concede a mão de sua filha, a Princesa Amnéris, ao General Radamés para que eles se casem e reinem no Egito após a sua morte. O casal troca afetuosos olhares e gestos e por fim se recolhe.

Então, o desespero assalta completamente a alma de Aída e de seu pai. Ela, por perder o grande amor e, ele, por temer o fim de seu reinado. É o final do segundo ato.

Nota do Autor – em algumas apresentações, por exemplo, chega-se ao requinte de se colocar almofadas nas patas dos cavalos para evitar que as suas pisaduras interfiram na melodia.

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O terceiro ato tem como cenário as margens do rio Nilo, alguns dias após a festa pela vitória.

Inicialmente a suavidade toma conta da cena. Ao longe, por entre as sombras da noite, avista-se um barco que segue em direção ao “Templo de Isis”, situado em uma das margens do grande rio. Ocupam-no, Ramphis e Amnéris que irão fazer as preces rituais que antecedem aos casamentos. Além deles, segue um numeroso séquito de donzelas.

Acobertada pela escuridão noturna, Aída também está no local atendendo a um pedido de Radamés. Enquanto o aguarda, entoa a ária “Ó Pátria Mia”, num doloroso lamento pela perda de sua pátria.

De repente a suavidade inicial é quebrada com a chegada afoita de seu pai que, entusiasmadíssimo, conta-lhe que as forças etíopes remanescentes conseguiram se reorganizar e se preparam para um breve e fulminante contra-ataque ao Egito. Em seguida ele lhe pede que consiga obter de seu amado general alguns segredos militares que serão fundamentais para o sucesso daquela empreitada.

A princípio ela se recusar a trair o homem que ama, mas Amonasro argumenta apaixonadamente que o seu primeiro dever é com a sua pátria, com a sua família; e que dela depende a oportunidade de vingar todos os sofrimentos que os egípcios causaram a eles.

Contudo, ela resiste com firmeza e essa persistência provoca a ira do pai que, então, não hesita em amaldiçoá-la em seu próprio nome e em nome de sua mãe.

Aturdida diante de tamanha pressão, ela acaba sucumbindo e cede à chantagem paterna. Assim, quando Radamés chega, ela lhe fala de sua dor ao ver os preparativos do casamento dele e através do magnífico dueto “Fuggiam Gli Ardori” procura convencê-lo a partirem juntos, em busca de uma nova terra onde possam se esquecer de tantos sofrimentos.

Num primeiro momento ele hesita, mas quando ela diz que tal hesitação é uma prova de que o seu amor não é verdadeiro, ele se rende à proposta e se diz pronto a segui-la.

Então, ardilosa e dissimuladamente, ela pergunta-lhe sobre a posição das tropas egípcias alegando necessitar dessa informação para que ambos possam evitá-las durante a fuga. Ingenuamente ele responde com detalhes e, de um salto, Amonasro sai do esconderijo em que estava e proclama em tom provocativo e vingativo que graças àquelas informações, em breve os etíopes devolverão a derrota que sofreram.

Perplexo, Radamés demora alguns segundo para reagir e para compreender a extensão de seu erro e da traição que sofreu. Simultaneamente, ele percebe a magnitude da desonra que terá que suportar em meios aos cruéis castigos que lhes serão aplicados.

Aída e o pai tentam convencê-lo a seguir-lhes na fuga, garantindo que ele estará a salvo na Etiópia, mas o seu senso de honra e de dignidade não lhe permitem essa saída infame.

Nesse ínterim, terminaram os rituais promovidos por Amnéris e por Ramphis e o séquito se depara com o trio ao deixar o Templo. De chofre e com muita sagacidade, o Grão Sacerdote compreende o que se passou e não tarda em acusar o general de alta traição. Na confusão que se segue, Aída e o pai fogem, enquanto Radamés entrega sua espada ao Sacerdote, que lhe dá voz de prisão. É o fim do terceiro ato.

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O quarto ato é representado no subterrâneo do Palácio Imperial, na sala de julgamentos.

Abatida e desolada, Amnéris se posta à porta do recinto e quando Radamés chega ela implora-lhe que se defenda, mas ele sabe que se assim fizer a culpa recairá sobre a sua amada Aída que certamente será condenada à morte e prefere arcar com as consequências. E a sua negativa em se defender continua quando os sacerdotes voltam a lhe pedir que o faça. Novamente ele prefere assumir a culpa para que Aída viva e seja livre.

Entregue, então, à ferocíssima sanha de Ramphis, ele acaba condenado à morte por emparedamento, para profundo sofrimento de Amnéris, que escuta em cada lance do julgamento as vozes dos acusadores como se viessem do mais profundo inferno. Por fim, terminado o inquérito, os sacerdotes se retiram ouvindo as pesadas maldições que Amnéris lhes roga.

Nesse trecho, o espetáculo atinge um de seus ápices em termos de comoção e não é raro que o público chegue ás lágrimas.

A segunda cena tem como cenário o “Templo de Ftá (ou Ftás, deus do Egito Antigo, associado a Osíris e cultuado, sobretudo, em Mênfis)”, cuja montagem é dividida em dois pisos, sendo o superior paramentado com a riqueza típica daquele local; enquanto que no piso inferior, está sendo emparedado o valoroso Radamés.

Os rituais são executados e os sacerdotes assestam as últimas pedras, enquanto o condenado canta a dolorosa “La Fatal Pietra”.

Envolvido em um terrível cadinho de emoções, em certo momento ele julga estar tendo uma visão de sua amada Aída, mas, logo em seguida, percebe angustiado que não se trata de uma miragem, pois ela burlou o esquema de segurança e se colocou na mesma sepultura que ele, para que na morte, possam viver o amor que lhes foi proibido em vida.

Intensamente comovido, Radamés entoa “Morir Si Pura e Bella” enquanto deixa transparecer toda a dor que sente por ver morrer a doce e gentil Aída, feita para o amor e para a luz e, agora, condenada a perecer em fria sombra.

Nesse ponto é feito um minuto de silêncio e se ouve na parte superior do cenário o Coro das sacerdotisas entoando o “Cântico do Destino”.

Aída recomeça, então, o seu canto e extasiada de amor profere ternas palavras ao “Anjo da Morte” que já se deixa avistar. A ela se junta Radamés e ambos entoam o dueto “Ó Terra Adios” até que, abraçados, expiram o último suspiro.

No Templo, os Sacerdotes invocam solenemente os deuses que os conduzirão, enquanto Amnéris se prosta sobre o túmulo e reza pedindo-lhes perdão.

É o fim da encenação.

Histórico

Aída tem uma singularidade que pode desagradar alguns puristas, já que nasceu por encomenda e não como fruto de uma “inspiração superior”.

Contudo, esse fato em nada depõe contra a sua grandiosidade, como bem atesta a popularidade de que sempre gozou e que ainda hoje ostenta, mesmo entre o público não especializado.

Sua estreia aconteceu na véspera do natal de 1871, na cidade do Cairo, no Egito. E essa data e esse local não foram obras do acaso, haja vista que a obra foi composta para inaugurar o “Teatro de Ópera Italiana” na capital egípcia, como parte dos festejos pela conclusão do famoso Canal de Suez.

Essa conjugação de fatores, aliás, é que determinou o tema, baseado na história e na mitologia do Egito. O Khediva (vice-rei egípcio), Ismail Pachá, ao encomendar a Ópera a Verdi, deixou clara a sua preferência por assuntos relacionados à cultura milenar de seu país.

Para dar conta dessa exigência, Verdi recorreu ao célebre egiptólogo Auguste Édouard Mariette (Diretor do Museu Egípcio de Boulak e, depois, da Seção Egípcia do Museu do Louvre, em Paris) que lhe deu o argumento central, descoberto por ele mesmo durante as escavações* que havia realizado em Mênfis.

Com o argumento em mãos, Verdi pediu ajuda ao poeta Camille Du Locle (França, 1832-1903) e juntos criaram o esboço da obra, fato que ocasionou a particularidade da ópera ter sido encenada pela primeira vez no idioma francês.
O esboço foi levado para Antonio Ghislanzoni (Itália, 1824-1893) que o transformou em Libreto, dando a Verdi a oportunidade de finalizar o trabalho com as características que predominavam na época; ou seja, os cenários suntuosos, os figurinos luxuosos, os melhores intérpretes e, sobretudo, um drama denso e intenso.

O resultado final foi a obra-prima que ainda hoje é considerada por muitos como a que melhor reflete essa fabulosa manifestação cultural.

Nota do Autor* - além dessa linda Ópera, essas escavações também renderam a descoberta do magnífico Tempo de Serápis, pelo que recebeu o honorifico título de “Bey”.

São Paulo, 11 de fevereiro de 2015.

Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, Verão de 2015.